O poder das palavras e as palavras do “poder”

    Inegavelmente há poder nas palavras. Melhor dizendo, o poder advém delas e nelas reside. Não é à toa que o cerne da tradição judaico-cristã assenta-se sobre a crença inarredável de que Deus, ao fazer uso da palavra, provocou a existência não só do homem, mas de todo o universo. (Gênesis, I) Aceitando-se ou não como válida a narrativa bíblica, não há como negar que a manipulação da palavra é sempre um flagrante exercício de poder. Bakhtin (1999), ao apontar novos horizontes para além das ideias linguísticas de Saussure, procura mostrar que a palavra é um campo de conflitos ideológicos, acentuando o caráter plurivalente, interacional e dialógico do signo, e invalidando a noção de neutralidade do mesmo. Dessa forma, ele traz à luz a constatação de que o uso da língua por um determinado grupo é regido pela gama de interesses desse mesmo grupo, não havendo, portanto, inocência na linguagem.
       Bourdieu (2008), estudando os diferentes efeitos de sentido no uso das palavras,
chamou de ilusão o fato de se pensar que a língua funciona como um mero instrumento de comunicação. Para ele, a língua é bem mais do que isso: é um instrumento de poder. Nesses termos, dialoga com Pêcheux (1997), para quem o lugar social de onde se fala tem muita relevância nas situações de interação pelo uso da língua. Essa visão pressupõe a existência do direito à palavra, que não pertence a qualquer individuo, mas emana da posição social ocupada por aquele que congrega prestígio e domínio de situações ideológicas.
     O romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, corrobora as reflexões aludidas acima, no que concerne ao comportamento linguístico e postural das personagens, do narrador e até do seu autor empírico, Graciliano. Em Vidas secas, a lei do mais forte impera inexoravelmente nas relações humanas. E o mais forte é, conforme se configura em suas páginas, aquele que melhor detém, domina e manipula a palavra.
     Aplicando ao romance de Graciliano o conjunto do arrazoado acima produzido por cientistas da linguagem, percebemos que não é à toa que ele seja um romance mudo, povoado de personagens mudas. A família de Fabiano, o protagonista, é alijada de qualquer mecanismo de poder. Em decorrência disso, não logram transitar no complexo mundo das palavras. O narrador, além disso, embora disponha de recursos para tal, não se permite criar formulas mágicas para envolver essas criaturas em peripécias heroicas, de forma a vencer as forças que sobre eles fazem pressão. E por não saberem lidar com as palavras, Sinha Vitória, Fabiano e os dois meninos têm como elo entre eles o próprio silêncio, que os impossibilita de alçar o olhar para além do cotidiano tedioso e mesquinho. A esse respeito, Sant‘Anna (1984, p. 176) considera que

"Era justamente a incapacidade de Fabiano e Sinha Vitória de se articularem como sujeitos que os reduzia a meros objetos horizontalizando-os com a própria natureza. A impotência existencial dos figurantes corresponde a uma impotência verbal diante da realidade. Comunicando-se através de gestos, ruídos guturais animalescos, incapacitados de organizar o mundo num sistema de representações e ideias, eles se portam como coisas que podem ser permutadas tanto no tempo como no espaço."
    
     O crítico refere-se, evidentemente, a uma incapacidade linguística que é perceptível em toda a obra. Pode ser percebida já no primeiro capítulo, quando o narrador põe em cena aquela família em penosa marcha, sem trocarem palavras. O filho mais velho, não conseguindo mais caminhar, lança mão do único recurso de que dispõe: senta-se no chão e se põe a chorar. A resposta do pai vem em forma de xingamentos e bofetadas sobre a criança. As únicas palavras que Fabiano consegue dizer equivalem a uma explosão de ódio contra aquele pequeno estorvo à caminhada: “Anda, condenado do diabo”. (RAMOS, 1977, p. 9) Ato contínuo, direciona o seu furor para a paisagem tórrida que o rodeia, desfiando um rosário de impropérios.
        No capítulo “Menino mais velho”, novamente é o primogênito da família que ocupa a cena, agora às voltas com a palavra inferno, que ouvira ser pronunciada por uma benzedeira. A curiosidade em saber o que significa a palavra move-o a perguntar o significado à mãe, que se encontra na cozinha. Esta explica-lhe que é um lugar “cheio de fogueiras e espetos quentes”, (RAMOS, 1977, p. 9) porém fica furiosa com o filho, que lhe devolve a pergunta: “A senhora viu?” (RAMOS, 1977, p. 9) O menino recebe a fúria materna em forma de murros na cabeça e, sendo expulso da cozinha, vai purgar sua humilhação e desprezo junto da cachorra Baleia, que também fora enxotada. Nesse instante extremo de solidão, a criança parece se entender melhor com a cadela do que com os seus semelhantes.
    Em outro capítulo, “Contas”, Fabiano aparece como meeiro, sendo descaradamente enganado pelo patrão. A comida, a roupa, os instrumentos de trabalho, tudo tinha que ser adquirido das mãos do fazendeiro, que impunha ao vaqueiro o preço que bem entendesse, de sorte que Fabiano ia se endividando cada vez mais, sem a menor perspectiva de resolver o problema. Tinha, então, que pedir dinheiro emprestado ao chefe, e se tornava vítima de mais tapeação. O fazendeiro descontava do salário já minguado os empréstimos acrescidos de juros, calculados ao seu bel-prazer. Fabiano sabia que estava sendo ludibriado, pois contava com a retaguarda de Sinha Vitória, que lhe fazia as contas. Sendo analfabeta, ela utilizava sementes e efetuava as somas e diminuições. Conseguia um resultado correto, mas o patrão rapinava nos juros. Ao perceber que estava sendo enganado, o vaqueiro esboçou um protesto, que foi prontamente sufocado com severa ameaça de despejo. Assim ele acabou tendo que aceitar a situação, por não ter para onde ir.
         Salomão, considerado por muitos como homem mais sábio de todos os tempos justamente pelo uso que fez das palavras, assegura em sua prédica que há tempo para todo propósito debaixo do céu, havendo, inclusive, tempo de falar e tempo de calar. (Eclesiastes, III) Porém, numa leitura detida de Vidas secas não é difícil perceber que essa regra áurea imposta pelo sábio não se aplica a Fabiano e toda a sua família, assim como não se aplica à vida de milhares de flagelados do Nordeste brasileiro e de tantos outros nordestes espalhados em vários quadrantes do planeta. Para estes, há apenas o tempo de calar, que se perpetua por força dos mecanismos de poder e opressão. Sem acesso ao mundo elitizado da escola, da leitura, da escrita e das contas, Fabiano aprendera desde muito cedo a obedecer sem reclamar. Resultava daí um misto de aversão e fascínio pelas palavras. Esse sentimento ambíguo direcionava-se aos homens que as manipulavam bem. Se eram bons de discurso é porque eram trapaceiros e sempre tinham más intenções, assim ele pensava. E restava para ele aquele desajeitamento em todas as tentativas de utilizá-las.
         O patrão, porque sabia usar as palavras, roubava Fabiano nas contas; o soldado amarelo, arrimando-se no poder que a farda emprestava, lançava mão das palavras para humilhar aquele trabalhador honesto; o fiscal da prefeitura, alegando cumprimento do dever, despejava repreensões sobre ele, simplesmente por tentar vender a carne do porco que abatera; enfim, o “governo” – utilizando palavras que ele não conhecia (bonitas mas perigosas) – subjuga-o, da mesma forma como já fizera com seu pai, com seu avô, e provavelmente viria a fazê-lo com os dois meninos. Assim Fabiano pensava. E acreditava mais nessa possibilidade do que mesmo nos seus vagos sonhos de fartura e felicidade, nos quais nem mesmo chegava a acreditar.
     Entre Fabiano e a desumana estrutura social erguia-se uma nociva e intransponível barreira de palavras. Quando tentava se valer dessas palavras era punido severamente: reagir contra a arbitrariedade do soldado amarelo resultou em prisão com requintes de injustiça e desumanidade; ao questionar as contas do fazendeiro, fez brotar juntamente com a ira deste a ameaça de expulsão da fazenda, tendo que se retratar; ânsia de vender a carne de porco na feira, recebeu do fiscal da prefeitura reprimendas, multas e insultos morais. São exemplos de penosas e malogradas tentativas de abrir caminhos de acesso à convivência social mediante o uso da palavra. Entre deslumbrado e assustado, gaguejava um discurso postiço, artificial, completamente desconexo, fruto de uma mistura aleatória de termos ouvidos da fala do seu Tomás da Bolandeira. Um discurso alheio fragmentado ao ponto da incompreensão.
     Notadamente, Fabiano e sua família não tinham o direito à palavra, o capital linguístico de que fala Bourdieu. (2008) Sendo o capital linguístico uma moeda de troca no mercado simbólico das relações sociais, quem o possui adquire o direito à palavra. Não tendo trânsito no mercado simbólico, Fabiano não detinha esse direito, e fazer uso dele equivalia a uma usurpação, a uma intromissão descabida, inaceitável, passível de punição. Por isso, os inomináveis castigos por reclamar, questionar, abrir a boca quando ela deveria ser mantida fechada diante dos superiores. É o próprio Fabiano que assim raciocina, pela via do discurso indireto livre: “Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo”. (RAMOS, 1977, p. 24)
Em casa, os meninos ouviam a conversa dos pais à noite e percebiam que

"Eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes, uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as palavras que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a situação falando alto." (RAMOS, 1977, p. 66-67)

       Fabiano não conseguia realizar um ato pleno de interação linguística nem mesmo dentro de casa, lugar onde ele – em tese – ocuparia o lugar social de maior preponderância, poderíamos dizer de mando. Essa impossibilidade o acompanhava e se ampliava quando, fora de casa, entrava em contato com pessoas que tinham poder de mando sobre ele. Na verdade, a escassez vocabular e a pobreza construcional faziam com que se apossasse de Fabiano um sentimento incontrolável de pequenez e impotência. Até a sua revolta era muda, como um silente e borbulhante caldeirão. Sonhar com seu Tomás da Bolandeira era uma forma de fugir da realidade, idealizando uma situação confortante.
          Castro (1997) frisa com propriedade que seu Tomás, por usar palavras bonitas, era tido como exemplo de sabedoria, era invejado por Fabiano como modelo de um indivíduo alfabetizado e ideal. “Até votava”. Assim, procurava imitar-lhe o vocabulário. Algumas palavras ele não entendia, as ideias ficavam truncadas; iludia-se com isso, achando que por imitá-lo melhorava a sua situação. Diz Castro (1997, p. 72) que “ao se referir ao seu Tomás, o narrador cria formas de linguagem culta, caracterizando-o pessoa de certa leitura que, por isso mesmo, transformou-se num arquétipo em que os demais personagens se espelham”.
     Assim é que, paralelamente à constatação de que as palavras têm poder, confirmamos também que o “poder” tem palavras, nelas reside e por elas se faz. As palavras são usadas para subjugar os que nãos as têm. Estes, por sua vez, angustiam-se por não saber manipulá-las em seu próprio benefício, como fazer os “poderosos”. O “governo”, por meio de suas múltiplas formas de representação, converte-se em agência social arbitrária, especialmente porque usa uma linguagem que está além das possibilidades de entendimento de um homem simples como Fabiano.
          No entanto, em que pesem essas considerações, gostaríamos de salientar que o lugar social de maior evidência dentro do romance não pertence ao “governo” e seus representantes, nem às pessoas da cidade armadas de sua sabedoria, muito menos ao seu Tomás, que embora tivesse leitura e uma boa linguagem, não soube manipular isso em seu próprio benefício e acabou “sumindo no mundo”. Esse lugar de proeminência pertence, evidentemente, ao narrador. É ele quem detém o maior acúmulo de capital linguístico no interior do romance. Paradoxalmente, é dele, o narrador, a mais plausível economia e contenção no uso desse capital simbólico. À guisa de demiurgo, esse narrador onisciente – magnífico criador de mundos – lança mão das palavras e provoca a existência de um universo fantástico, recriado a partir da tragédia nordestina. Mas Graciliano Ramos, que do lado de fora aciona o seu narrador, não permite que este se deixe arrastar pela soberbia perdulária face ao poder que a palavra lhe confere. É por isso que as palavras desse narrador possuem a medida exata da sobriedade.
     Há narradores que, ébrios do poder que emana das palavras, fazem das personagens marionetes que se comportam segundo os ditames de seus próprios caprichos e/ou ideologias. Graciliano, ao que se sabe, seria incapaz de gestar um narrador desse feitio. A este respeito, pronuncia-se Mercadante (1994, p. 25):
 
"O maniqueísmo fez surgir heróis artificiais, super-homens comunistas, vivendo em forma de chavões. Eram criaturas idealizadas, inconcebíveis, que transitavam como sombras nas histórias sempre iguais da chamada construção do Socialismo. À acusação de ser Vidas secas um livro antipartido porque agredia o papel histórico dos comunistas quanto aos levantes de Natal, Recife e Praia Vermelha, Graciliano reagiu dizendo que suas personagens não eram seres idealizados e sim criaturas que ele conhecia."
    
     Justamente por causa das palavras o “partidão” resolveu “bater” impiedosamente no seu escritor mais ilustre, segundo atesta Mercadante (1994), atormentando-o com picuinhas e mesquinharias, enquanto o usava a todo vapor como figura de proa. Isto porque Vidas secas é um livro substantivo, e para os que concebem a literatura apenas como instrumento de propaganda ideológica, os adjetivos são essenciais. Além disso, Graciliano era antirretórico por temperamento e formação. Aborreciam-no as tiradas heroicas, as frases de efeito, o som e a fúria que nada significavam. (Mercadante, 1997) Embora tenha sido um militante fiel ao Partido Comunista, Graciliano negou-se a fazer uma literatura panfletária. A voz do narrador de Vidas secas sintoniza-se com sua própria voz e através do narrador fala ele, Graciliano, e não o Partido. Muitas obras, como um punhado dos livros de Jorge Amado, ao seguirem a trilha de uma literatura dita engajada, acabaram adquirindo ranços de panfletagem político-partidária sendo, por isso, adjetivas. Graciliano, optando por uma postura substantiva, sofreu na pele o resultado dessa opção. Segundo Mercadante (1994b), Graciliano desabafou que batiam nele duramente porque não fizera da gente nordestina, religiosa e conformada, duros combatentes de barricada ou rebeldes franciscanos do século XIV.
     Em Vidas secas, Graciliano criou um narrador artífice, um artesão da palavra. O resultado de suas reflexões é um texto enxuto, desprovido de qualquer espécie de adorno verbal. Conforme observa Castro (1997), as palavras têm encaixes milimetricamente calculados, de sorte que os excessos foram aparados e eliminados. O máximo de expressão no mínimo de vocábulos é a constante da obra, cujo predomínio de frases nominais e períodos construídos em parataxe, com orações justapostas, contribui para a perfeita simetria entre a forma e conteúdo. Sua linguagem é tão cortante quanto a aridez e infecundidade da terra nordestina. A agressividade da paisagem tórrida converte-se em aspereza lexical. A linguagem vai se secando como a paisagem que descreve. Teles (1996, p. 93) confirma essas considerações ao afirmar que as personagens pouco falam, a não ser no discurso indireto livre do narrador. Com este expediente técnico, o mundo se objetiva, as demais ações se tornam diretas e rápidas e a linguagem refletindo a própria essência do tema vai cada vez mais ficando nominal, paratática, secando-se também nas suas estruturas, tanto no plano do conteúdo quanto no plano da expressão.
     Dessa forma, o narrador de Vidas secas não é somente onisciente. É também onipotente: tudo pode através das palavras. Mas ao usá-las, recusa-se a pintar um quadro de idealizações. E com a mesma força rechaça a tentação do panfletismo. Mas como a linguagem nunca é inocente, ele tem uma meta ao utilizar as palavras, qual seja a redenção do homem, envolto em tragédias que, não raro, a natureza desencadeia e o próprio homem se encarrega de agravar. E o narrador faz isso sem devaneios sentimentais, sem arroubos discursivos, sem verborreia apaixonada. Apesar disso, e talvez por isso mesmo, Vidas secas é um libelo eloquente contra a insensatez humana e as injustiças sociais.
     Em síntese, palavra e poder são coisas indissociáveis. E se por um lado existe o poder das palavras, por outro existem as palavras do poder. Em ambos os casos está presente a ideologia, o que transforma as palavras num evidente sinal de perigo para aqueles que estão sob o seu domínio. Sendo o signo visceralmente ideológico, é necessário permanente estado de alerta diante dele. Vidas secas mostra isso na medida exata.


REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.

BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. 2. ed. Revista e atualizada no Brasil. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 2008.

CASTRO, Dácio Antônio de. Roteiro de leitura: Vidas secas. São Paulo: Ática, 1997.

MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1994.

_____. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. São Paulo: Topbooks, 1997.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; 38. ed. Rio de Janeiro: Record, 1977.

SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. 6. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.

TELES, Gilberto Mendonça. A Escrituração da escrita. Petrópolis: Vozes, 1996.