TRAIÇÃO OU FANTASIA?: Uma análise do triângulo amoroso na obra A confissão de Lúcio

RESUMO

Tomando como referencias teóricos os autores Massaud Moisés e Ligia Chiappini Moraes Leite e suas teorias acerca dos elementos narrativos, este artigo apresenta uma análise da obra A confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro, com a finalidade de desvendar os segredos da relação Lúcio-Marta-Ricardo.

Palavras-chave: Literatura Portuguesa. Modernismo. Mário de Sá-Carneiro.

INTRODUÇÃO

Iniciado no fim do século XIX, o modernismo surgiu com o intuito de romper com a maneira de se expressar - nas artes em geral - da época. Ou seja, a principal ordem era a liberdade de expressão. Os modernistas abusavam da linguagem cotidiana e dinâmica, do imprevisível e eram mais intimistas que seus antecessores. Este movimento atingiu diversos países e em cada um deles teve influências que lhe diferenciava quanto às características. Dentre os vários movimentos ocorridos em todo o mundo ater-se-á neste artigo ao modernismo português, em especial ao autor Mário de Sá-Carneiro e sua obra A confissão de Lúcio.

Escrito em 1913, o romance de Sá-Carneiro é um misto de romance psicológico e policial, que intriga e prende o leitor num labirinto de acontecimentos por vezes surreais para que possam ser considerados verossímeis. Sua trama desenvolve-se através do triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e Marta, e culmina na morte de Ricardo e na condenação de Lúcio.

Tendo em vista a importância da obra em questão para a literatura mundial, torna-se imprescindível uma análise apurada acerca dos mistérios que cercam a relação dos três protagonistas.

Deste modo o seguinte artigo divide-se da seguinte maneira: o modernismo português; Mário de Sá-Carneiro; Estruturação da obra; Um passeio pela mente nebulosa de Lúcio.

O MODERNISMO PORTUGUÊS

O modernismo surgiu no inicio do século XX, num período em que grandes transformações assolaram toda a Europa. Em Portugal, essas mudanças estavam ligadas principalmente à queda da monarquia e instauração da república e influenciou bastante a pintura e a arquitetura.

Assim, como a política portuguesa estava bastante instável, situação piorada com a entrada do país na primeira Guerra Mundial, a população não tinha espírito para apreciação às artes, fossem quais fossem. Somando à mentalidade retrógrada, resistente a qualquer mudança, resultou numa árdua tarefa para os intelectuais, conhecedores do movimento que se expandia em toda a Europa, implantá-lo no país. Pelo modernismo ter como grande característica a inovação, as ideais deste não foram bem aceitas inicialmente, ao contrário, houve muitas críticas ao movimento.

Quanto à literatura, o modernismo português se divide em duas gerações de intelectuais ligados a duas publicações literárias: sendo a primeira surgida em 1915, em torno da revista Orpheu; e a segunda organizada em 1927, em torno da revista Presença.

A revista Orpheu possuiu apenas dois números em março e junho de 1915, no entanto foi o bastante para introudzir o novo movimento em Portugal. Dentre seus fundadores estavam Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Fernando Pessoa. Já a revista Presença - também conhecida como Folha de Crítica - foi fundada em 1927, em Coimbra, por Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José Régio.

Alguns críticos acrescentam uma terceira fase intitulada neo-realismo - movimento que combateu o fascismo, e que defendeu uma literatura como crítica/denúncia social, combativa, reformadora, a serviço da sociedade. Contudo esta não teve muita força em Portugal.

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

O escritor Mário de Sá-Carneiro nasceu em 19 de maio de 1890, em Lisboa. Sendo filho único e tendo perdido a mãe aos dois anos de idade, Mário acabou tendo uma infância e consequentemente uma adolescência marcada por angústias e solidão. Em 1912 vai para estudar direito na Universidade de Sorbonne, em Paris, contudo não chega a se formar. Neste mesmo ano escreveu sua primeira peça Amizade com Tomás Cabreira Júnior e publica um conjunto de novelas nomeado Principio.

Anos depois publica os primeiros poemas, Dispersão, em 1914, mesmo ano em que escreve o romance A Confissão de Lúcio. Em 1915, retorna a Portugal para passar férias e lança a revista Orpheu em parceria com Fernando Pessoa, seu mentor e amigo. Também nesse ano reúne oito novelas num único volume intitulado Céu em fogo.

Em 1916, durante uma crise, suicida-se em Paris, com apenas 26 anos e alguns poemas inéditos os quais envia a Fernando Pessoa antes de morrer, e que foram publicados em 1937 sob o título Indícios de Ouro.

Sua correspondência com alguns dos membros da revista Orpheu também foi publicada em volumes póstumos: Cartas a Fernando Pessoa (2 volumes, 1958-1959), Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Luís de Montalvor, Cândida Ramos, Alfredo Guisado e José Pacheco (1977), Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (1980).

Sua obra, intimamente ligada à sua vida pessoal, suas aflições e sua inadaptação ao mundo, é bastante voltada para o mundo psicológico e seus poemas são repletos de sinestesia. Mário de Sá-Carneiro é um escritor notório e conseguiu inclusive atingir diversas tendências literárias com maestria e emoção.

ESTRUTURAÇÃO DA OBRA

O livro A confissão de Lúcio é uma narrativa em primeira pessoa, cujo narrador também é o protagonista da história. Esta forma de narrar, comum dos romances psicológicos, é denominada narrador-protagonista e é descrita por Leite (1993) – utilizando a tipologia de Norman Friedman - como sendo aquela em que o “NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.” (LEITE, 1993: 43). Este papel é exercido pela personagem Lúcio, que nomeia a obra.

Um aspecto relevante do romance e que irá influir em toda a narração é o fato de não obedecer a uma ordem cronológica. Sá-Carneiro prefere utilizar-se do tempo psicológico, descrito por Moisés (2008, p.130) como o tempo que desobedece a calendários, obedecendo apenas aos fluxos emocionais da personagem que narra. Este detalhe que a principio parece um pormenor revela sua importância no decorrer do enredo. Isso porque, a obra inicia-se com o personagem-narrador Lúcio Vaz afirmando sua inocência ante a morte de Ricardo de Loureiro dez anos após o crime ter acontecido. Lúcio então se compromete a esmiuçar os fatos que culminariam no crime exatamente como ocorreram. Contudo, o fato de ser um relato baseado em lembranças que ele já adianta serem incoerentes, perturbadoras e o menos lúcidas possíveis (p.18) abre-se espaço para que se percebam certas ideias fantasiosas.

Quanto ao elemento narrativo da ação, Massaud Moisés (2008) a classifica em duas categorias: ação externa - ações simples, como: viagens, encontro, passeios, etc. e ação interna - é aquela que acontece na consciência da personagem. Estas duas ações coexistem durante toda a obra, mas percebe-se que há um predomínio da segunda em relação à primeira, isso porque é a mente de Lúcio que nos elucida (ou confunde) os fatos.

Encerrando esse passeio pela estrutura narrativa da obra, tem-se o elemento espaço. Segundo Moisés (2008) “uma narrativa pode passar-se na cidade ou no campo, mas depende de seu caráter linear ou vertical a maior ou menor importância assumida pelo cenário.” (p. 136). A obra construída por Sá-Carneiro se passa na cidade, mas precisamente nas capitais francesa e portuguesa – Paris e Lisboa. Em se tratando de uma história urbana, o romance possui como plano de fundo a cidade, seus principais cenários são os prédios e locais típicos urbanos: as ruas de Paris e Lisboa, os teatros, os bares e mesmo as casas de ambos, sendo que de todos esses o que mais se destaca é o interior da casa de Ricardo, onde ocorre os principais encontros dos três protagonistas.

UM PASSEIO PELA MENTE NEBULOSA DE LÚCIO

O eixo central dA confissão de Lúcio é a amizade de dois artistas: o escritor Lúcio Vaz e o poeta Ricardo de Loureiro e a relação daquele com a esposa deste. Assim nos capítulos iniciais – do 1 ao 5, precisamente – esta amizade, fortalecida por meio da convivência, é destrinchada. Nestes capítulos, Ricardo aparece em evidência, são dele as confidências e lamentos, cabendo a Lúcio a missão de ouvi-lo, apreciá-lo.

No capítulo 6, o mais importante talvez, visto que trás à cena o terceiro vértice do triângulo que se constituirá posteriormente – Marta, a esposa de Ricardo. É neste capítulo que Ricardo estando em Paris decide retornar a Lisboa. Um ano depois Lúcio faz a viagem para a capital de Portugal. É importante ressaltar que neste tempo Ricardo já se encontra casado.

Deste capítulo em diante a trama ganha ritmo. A mulher que nunca fora mencionada antes e agora é esposa de Ricardo revela-se repleta de mistérios. Nada se sabe sobre ela: de onde veio? Onde conheceu o marido? Que sentimentos a ligam a ele? Nada.

No decorrer da trama, inclusive, o leitor passa a duvidar da existência dessa mulher. E uma frase em particular de Ricardo volta-nos à memória como um aviso dessa fantasia, quando em uma confissão a Lúcio, no capítulo 6, diz que:

– É isto só: – disse – não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afetos - já lhe contei -, apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…), para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo. (SÁ-CARNEIRO, 2006, p. 58, grifos do autor).

Lúcio, muito perturbado com a revelação, remoeu-a quase a ponto de torná-la uma obsessão (p.60). Logo após esta confissão, Ricardo aparece casado com Marta. Deve-se relembrar também que no momento do reencontro de Lúcio e Ricardo, o escritor descreve o amigo como feminilizado (p.61).

Relembrando as passagens descritas o leitor entende que a aparição de Marta é demais oportuna para ser real. É a solução para que a amizade de Ricardo e Lúcio continue depois da revelação do poeta. É o elo que os liga, que os faz cúmplices.

Aparece-se então a dúvida: esta mulher é real ou seria apenas uma fantasia da mente de Lúcio para explicar seu relacionamento com Ricardo? Se ela não existe, não haveria então traição. Ora, o próprio Lúcio chega a duvidar de sua existência de tal mulher. No capítulo 7, sendo que descobriu que nada sabia da esposa do amigo ele expõe seus conflitos inexistência: “a minha obsessão seria uma realidade, existiria realmente no meu espírito; ou seria apenas um sonho que eu tivera e não lograra esquecer, confundido-o com a realidade?”(p. 68, grifos do autor).

Tem-se ainda, como reforço à hipótese da inexistência de Marta, a entrevista feita por Lúcio aos amigos do casal sobre a origem da mulher. A reação expressa por estes não por serem interrogados sobre o assunto, a surpresa é por ele, Lúcio, indagar sobre o mesmo. Não seria esta uma evidencia de que o casal em questão era na verdade Lúcio e Ricardo. Não haveria, portanto traição, pois o próprio ser traído seria o amante traidor.

Essa ideia é reforçada ainda por Lúcio, quando tendo iniciado o suposto romance com Marta e não a percebendo longe dele e tentando evocá-la, só consegue trazer à lembrança as imagens de Ricardo.

Somando-se aos argumentos já citados, agregam-se dois episódios importantes para que se perceba que nunca houve traição efetiva e sim uma fantasia do protagonista e que se misturam: é quando Ricardo o beija e ele descreve o beijo como igual aos da amante e depois, quando Lúcio estando com Marta, começar a sentir “que nunca a possuíra inteiramente; mesmo que não era possível possuir aquele corpo inteiramente por uma impossibilidade física qualquer: assim como se ela fosse do mesmo sexo!” (p.89, grifos do autor).

E depois das dúvidas que sente em relação às circunstancias que o levaram até Marta; da descoberta de que ela era amante de outros; que Ricardo o sabia e não se manifestava, vem o grande desfecho, as explicações e o fim trágico de Ricardo.

Ricardo torturado pela raiva de Lúcio lhe relembra da confissão feita anos atrás e admite:

(...) Achei-A... sim, criei-A... criei-A...Ela é minha (...) Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha alma. Pensamos da mesma maneira;igualmente sentimos. Somo nós-dois...(...) Na hora em que a achei – tu ouves? – foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. (SÁ-CARNEIRO, 2006, p. 115, grifos do autor)

Assim Ricardo transfigura-se em Marta, pois Marta é uma extensão dele mesmo para poder tomar o amigo. E depois quando o outro lhe foge diante da traição e reaparece insultando-o, decide que é o fim que nada mais pode ser feito e afirmando ser Marta apenas sua e que jamais se separaram, decide acabar com tudo através da morte. Mata-se e consigo leva junto a fantasis feminina de seu amigo-amante.

CONCLUSÕES

Após passear pelas linhas de um romance cheio de imagens e situações fantásticas, é comum que se fique um pouco perturbado com as informações despejadas sobre o espírito. E essa é uma das características primordiais da obra A confissão de Lúcio do modernista e jovem Mário de Sá-Carneiro. Tentar entendê-la é um desafio e uma surpresa, perceber pequenas pistas deixadas pelo autor, em seus grifos principalmente é viajar num mundo cheio de símbolos e de fantasias.

A construção do romance, narrado pelo ponto de vista de uma personagem cuja memória lhe prega inúmeras peças tanto pelo tempo que decorreu dos fatos como da própria lucidez do mesmo após dez anos numa prisão.

É assim que Sá-Carneiro apresenta a história de um suposto triângulo amoroso. O enredo, fundamentado nas suposições e percepções de Lúcio, é revelado lentamente e, aos poucos, atentos leitores percebem que há mais por trás de um envolvimento entre uma mulher e dois amigos. E apresenta-se então o enfoque principal do texto: a relação homossexual entre os amigos mediante o engodo Marta. Essa atração apresentada por pequenas frases espalhadas ao longo do texto aparecem de forma quase culpada, mas não oculta.

Deste modo, conclui-se que no final não houve traição por parte de Lúcio, não havia mulher para que ocorresse. Marta criada para encobrir a real relação, não passa de uma fantasia do protagonista. Tanto o é que sua existência está ligada à de seu inspirador, necessita de sua presença e quando este morre, ela já não tem mais razão para existir.

REFERÊNCIAS

Biografia: personalidades do mundo (Mário de Sá-Carneiro). Disponivel em: <http://www.passeiweb.com/saiba_mais/biografias/m/mario_de_sa_carneiro>. Acesso em: 18/06/2011.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 6ª ed., São Paulo: Ática, 1993.

Moderniso português. Disponivel em: <https://historia-geografia-portugal.wikispaces.com/Modernismo+Portugu%C3%AAs>. Acesso em: 20/06/2011.

MOISES, Massaud. A análise literária. 17ª ed. rev. e atualizada, São Paulo: Cultrix, 2008.

PUCCINI, Italo. O Modernismo Português e Fernando Pessoa. MAUÁ: Revista de literatura em meio digital. Santa Catarina, n. 8, 2008. Disponível em: <http://www.mafua.ufsc.br/numero09/ensaios/puccini.htm>. Acesso em: 19/06/2011.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. A confissão de Lúcio. São Paulo: Martin Claret, 2006.

Vany Soares
Enviado por Vany Soares em 29/09/2012
Reeditado em 29/09/2012
Código do texto: T3906715
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