Terra caída, a vingança da natureza
RESUMO: Propõe-se neste artigo uma leitura de um dos capítulos de Inferno Verde, de Alberto Rangel, focalizando uma das narrativas do livro, intitulada “Terra caída”. Com base nas imagens dessa narrativa, apresenta-se região amazônica como um inferno disfarçado de paraíso verde. A terra, antagonista do homem, é um contraespaço, que o estrangula e aniquila, tratando-o como um invasor indesejado. Enfim, a terra vinga-se do homem que a agrediu primeiro, perpetuando a sua vingança. É essa visão da terra, personificada e antagonista, que a narrativa veicula, em imagens impressionantes. Este artigo procura explorar essas imagens.
PALAVRAS-CHAVE: Inferno Verde, terras caídas, Amazônia.
Quando abrimos o livro Inferno Verde, de Alberto Rangel, deparamos com um sumário que nos oferece, à maneira de um cardápio, onze narrativas ambientadas na Amazônia. Essas narrativas podem ser lidas de forma horizontal ou de forma vertical. Na leitura horizontal, considerando cada narrativa como um todo individual, temos um livro de 11 contos dispostos em sequência, apresentando, cada um à sua maneira, flagrantes dos seringais e das brenhas Amazônicas; na leitura vertical, que é a de minha preferência, a individualidade das narrativas é apenas aparente, uma vez que cada relato é somente parte de um todo, formando no seu conjunto um romance de 11 capítulos. A verticalidade da obra justifica-se por dois fios condutores que interligam todas as narrativas: o primeiro é o narrador viajante, que percorre a Amazônia como topógrafo, explorando, reconhecendo e medindo a terra, e ao mesmo tempo registrando os flagrantes observados nas diferentes paragens; o segundo é a própria Amazônia, alçada sempre à condição de personagem, personificada e antagonista do homem caracterizado como invasor.
Euclides da Cunha, que lavrou o preâmbulo de Inferno Verde (2001, p. 29), vê os relatos do livro como “comoventes lances de uma deplorável agonia coletiva, em onze capítulos, que são onze miniaturas de Rembrandt, refertas de apavorante simbolismo”. Ou seja, são narrativas que, pelo teor lúgubre que possuem, justificam muito bem o título da obra, que metaforiza a região amazônica como um inferno disfarçado de paraíso verde. O autor de Os Sertões parece entrar em contradição ao dizer que a Amazônia é apavorante assim mesmo, sugerindo que Alberto Rangel registrou em seu livro a região tal qual ela é, sem alterar nada, copiando-a como quem faz um decalque. Mas logo em seguida assegura que o que Rangel escreveu, na verdade, foi o registro de suas vertigens de homem “assombrado” diante daquelas cenas e cenários, movido por uma “tristeza exasperada”. A contradição se configura na antítese subentendida entre a fidelidade de Rangel à realidade observada, por um lado, e a abundância de hipérboles que traduzem o assombro do viajante intruso na região, por outro lado.
Uma das cenas de “apavorante simbolismo” é o capítulo intitulado “Terra caída”. O caboclo José Cordulo, personagem central dessa narrativa, era agricultor, homem muito trabalhador, a ponto de ganhar a fama de “caboclo onça”. Criava algumas cabeças de gado e cuidava de um roçado ao redor de sua tosca barraca, às margens do Amazonas, onde utilizava o sistema primitivo de queimar e encoivarar, a fim de dar curso ao trabalho de plantio. Casara-se com Rosa, moça rio-grandense do norte, e tiveram 4 filhos. Vivia contente com os filhos, para os quais sempre reservava expressões de carinho. Era feliz, mesmo diante das privações que enfrentava. A peste acometia o gado, a saúva comia a roça, o “mal” atacava as fruteiras. Mas nada disso abatia a felicidade do caboclo. É nas palavras abaixo que tomamos conhecimento da sua incansável faina:
“Sempre de terçado em punho, do nascer do sol até quando descambasse o poente, o Cordulo não largava o trabalho. O descanso era para a caça ou o ‘marisco’ , ou para entaniçar o tabaco, ou calafetar a canoa... só se afastava da lavoura e criação raramente, quando obrigado pelo ajuri, ou por servir de padrinho em Itacoatiara, ou então por motivo excepcional ou grave; porque a terra, de tão fecunda, prejudicava...” (RANGEL, 2001, p. 63)
É possível ao leitor “visualizar” a casa de José Cordulo, a que o narrador chama de “barraca”, situada nas barrancas do rio. É um cenário que o narrador faz questão de “marcar” topograficamente, como que preparando o leitor para a tragédia que se abaterá sobre esse mesmo cenário: à frente da casa há uma mongubeira (árvore); de um dos lados, algumas plantações que o caboclo cultiva: laranjeiras, coqueiros, um cupuzeiro, bacabeiras e pupunheiras. A maioria das plantas estão estorricadas e amarelecidas pelas mazelas do clima e das pragas; do outro lado, o curral destinado às poucas cabeças de gado.
Após identificar José Cordulo e sua condição de ribeirinho extremamente pobre mas trabalhador obstinado, o narrador passa a focalizar a relação do caboclo com a natureza, configurada como uma relação de antagonismos extremados. De um lado, está o homem que, favorecido pelo verão, avança contra a floresta, tendo como auxiliares o machado, o terçado e o fogo, seu colaborador mais eficaz. É a faina devastadora do homem em ação, em nome da sobrevivência. Seu sistema de plantio é extremamente primitivo, valendo-se da queima e do encoivaramento após cada derrubada. Trata-se, portanto, de um sistema predatório, mas é a única metodologia possível ao caboclo. O mês de setembro, por exemplo, “é o mês fuliginoso e crepitante das queimadas. Rasgam a floresta amazônica as labaredas de milhares de incêndios. Parece que o delírio da chama vai converter num só mar ígneo os plainos de entorno. E nada subsistirá. Nem mais uma verde copa de árvore nessa algara de fogo...” (RANGEL, 2001, p. 64) Mas, chegadas as primeiras chuvas que anunciam o inverno, ocorre o milagre reverdecente da terra. A terra se defende, procurando se regenerar: Se o Cordulo fechasse os olhos, quando os abrisse, a floresta pertinaz tornaria a ocupar o lugar donde fora repelida. (RANGEL, 2001, p. 63)
"A mata faz do lavrador uma sentinela alerta. Abandone o homem o seu posto e ela vigorosamente irrompe pelas linhas do roçado, deste apoderando-se de novo. E, então, a dificuldade aumenta. A floresta ressurgida atabafa-se de rebentos e espiques, vergônteas e pedúnculos, vem em capoeira, isto é, mais adensada de ramas e de hastes finas, mais impenetrável portanto.” (RANGEL, 2001, p. 64)
Há, como se percebe, um clima constante de enfrentamento entre esses dois seres: a floresta (personificada) e o homem (um intruso que a ameaça). Isto nos leva a entender a Amazônia não como um espaço, mas como um “contraespaço” (melhor seria dizer um “não-espaço”?) ao longo da narrativa. Ela é uma antagonista do homem, chegando a sufocá-lo e estrangulá-lo. É por isso que Euclides da Cunha, em um À margem da história (1909), um livro anterior a Inferno verde, cuja primeira edição veio a lume em 1927, vê o homem, na região, como “um ator agonizante” agitando-se e vivendo miseravelmente em meio aos cenários vivos de rios e floresta.
Feita essa digressão a respeito da antinomia homem x natureza, o narrador deixa no leitor a impressão de que esta vai, em algum momento, vingar-se das investidas do caboclo. E na verdade isto é o prenúncio da referida tragédia que logo será comunicada ao leitor.
Sintomaticamente, o narrador remove José Cordulo de sua casa, o espaço trágico, promovendo uma separação entre homem e terra. A família foi convidada para uma festa (pagode) na casa de outro caboclo, de nome Pacu, no sábado à noite. Uma festa que atravessou toda a noite e continuou no domingo, sem a menor pressa para terminar, atravessando mais uma noite. Cordulo, enfastiado com o frenesi das danças e movido pela preocupação com o trabalho do dia seguinte na lavoura, despedia-se de todos a fim de voltar a sua terra, quando a agitação da festa foi paralisada por um barulho assustador, como um trovão. Era o fenômeno das terras caídas, comum na região, já sobejamente conhecido dos caboclos ali reunidos.
Esse fenômeno das “terras caídas” é descrito por vários cronistas viajantes, e também por cientistas que estiveram a serviço ao longo dos grandes rios. O próprio Euclides da Cunha refere-se a ele várias vezes em Amazônia, um paraíso perdido, quando focaliza o rio Purus, como no fragmento que transcrevemos a seguir:
"O fato é vulgaríssimo. Conhecem-no todos os que por ali andam. Não raro o viajante, à noite, desperta sacudido por uma vibração de terremoto, e aturde-se apavorado ouvindo logo após o fragor indescritível de miríades de frondes, de troncos, de galhos, entrebatendo-se, rangendo, estalando e caindo todos a um tempo, num baque surdo e prolongado, lembrando o assalto fulminante de um cataclismo e um desabamento da terra. São, de fato, as ‘terras caídas’... (CUNHA, 2003, p.69)
Por ser sobejamente conhecido, o acontecimento não mais causava maiores preocupações para os caboclos. Para os navegantes sim, era um entrave dos maiores, pelo fato de as barrancas arrancadas pela voracidade das águas formarem verdadeiros “bancos” ou “barreiras” de terra nos canais de navegação.
O certo é que Cordulo não dera muita importância ao “barulho de trovão” que ouvira anunciando mais um espetáculo de terras caídas. Navegando pelo rio revolto, empreende a volta para casa em meio à escuridão. Mas ao aproximar-se de seu terreno percebe que alguma coisa estranha acontecera. Em meio à escuridão, descobre que a casa tinha sido arrastada pelo rio, que na correnteza levara todos os seus pertences.
Aquele cenário, “marcado topograficamente” no início da narrativa, em que se encontrava a sua barraca, desaparecera: a mongubeira, a barraca, o curral, as laranjeiras, o cupuzeiro, os coqueiros e bacabeiras, tudo havia sido levado pelo rio, na sua gula esfaimada:
"Escapara o Cordulo de um alçapão, com o prejuízo de cinco anos de trabalho incessante. Tanto esforço, dia a dia, hora a hora, e os sonhos, o suor e os seus bens, aniquilados com o absurdo, o sumiço da própria terra! Quando o futuro se lhe arquitetava no que há de mais sólido, ruía essa mesma base! Fundar na terra seria construir nas nuvens..." (RANGEL, 2001, p. 70)
Cordulo, após se refazer um pouco do susto e da desagradável surpresa, procurou uma encosta menos íngreme no barranco e subiu determinado, às apalpadelas. Mesmo nesse momento, a natureza o repelia e agredia, como se fora um inimigo que se aproximasse: “no alto rostrado as árvores da queimada receberam o homem, agredindo-o a chuçadas”. (GEL, 2001, p. 70)
Era a vingança da natureza.
Mas Cordulo era obstinado. “No dia seguinte, a vítima era um vencedor, plantando no chão, no alto da terra caída, o esteio de sua nova habitação”. (RANGEL, 2001, p. 70)
Evidentemente, o narrador construiu, com esta narrativa, uma alegoria do Amazonas, tomando Cordulo e seu pedaço de terra como metonímias, ou seja, partes que simbolizam o todo: Cordulo representa o caboclo, de forma genérica, e seu pequeno terreno representa a Amazônia.
O narrador, que deveria deixar ao leitor o trabalho de perceber a alegoria e explorar o seu sentido, toma para si essa prerrogativa e explica:
"a 'terra caída' bem pode ser a definição do Amazonas. Por vezes, no seu terreno aluvial tudo repentinamente vacila e se afunda, mas reconstitui-se aos poucos. Cai a terra aqui, acolá a terra se acresce. Resulta que, nesse jogo de erosões e de aterros, o esforço do homem é o de Atlas sustentando o mundo e a sua luta é a de um Sísifo invertido. (RANGEL, 2001, p. 70)
É claro que essa explicação desnecessária traduz-se como uma falha, pois o texto literário deve deixar sempre o espaço do leitor. Cabe ao escritor criar as imagens, mas a atribuição de sentido às imagens criadas é papel do leitor.
Ao afirmar a sua narrativa como uma alegoria do Amazonas e sua situação de instabilidade, o homem é engrandecido. Seu esforço é comparado ao de Atlas que, segundo a mitologia grega, foi punido por Zeus com a dura tarefa de carregar o mundo nas costas, porque liderou o exército dos Titãs numa revolta contra seu domínio, a pedido de Cronos (líder mais antigo dos deuses gregos). Ser Atlas é carregar sempre uma expressão de angústia, refletindo o pesado fardo que se é obrigado a carregar, mas é também carregar o peso com obstinação.
Ainda navegando nas águas da mitologia, a faina do caboclo é comparada à luta de Sísifo, o mais astuto de todos os mortais, que enganou até mesmo a morte e, por causa de suas ofensas aos deuses, recebeu como castigo a condenação de, por toda a eternidade, empurrar sem descanso um grande rochedo de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, tarefas que envolviam esforços inúteis passaram a ser chamadas "trabalhos de Sísifo", ou seja, trabalho inútil e sem esperança. Mas o Sísifo amazônico é invertido: seu sacrifício nada tem a ver com rochedo ou montanha, mas com erosões e aterros que materializam a vulnerabilidade da região.
Trata-se, é claro, de uma visão visceralmente negativa e pessimista sobre a Amazônia, mas essa é a proposta do livro: a metáfora do inferno disfarçado de paraíso. Assim o autor utiliza nesta narrativa um fenômeno comum do rio Amazonas e grandes afluentes, em todo o seu percurso de planície, que são as “terras caídas”, resultantes do solapamento das margens. As águas do rio provocam o desprendimento das terras, levando-as para outros lugares. E junto com as terras arrastadas, o rio leva também tudo que nelas foi plantado ou construído, deixando para trás um rastro de desolação e tristeza. Rangel retira de sua oficina literária as tintas mais escuras para pintar, a partir daí, uma das muitas faces do “inferno” que o livro se propõe descrever: a terra vinga-se do homem que a agrediu primeiro. É realmente a “vertigem de um homem assombrado”, como Euclides da Cunha classificou o livro e seu autor, Alberto Rangel.
REFERÊNCIAS
BRUNEL, Pierre. (org.) Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
CUNHA, Euclides da. Amazônia, um paraíso perdido. Manaus: EDUA, 2003 (Poranduba).
RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 5ª ed. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2001 (Resgate II).
TOCANTINS, Leandro. O Rio comanda a vida – uma interpretação da Amazônia. Rio de Janeiro: Record, 1968.
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