Laços de Clarice

Não se pode iniciar a leitura de nenhum texto de Clarice Lispector inadvertidamente, sem um preparo prévio para uma incursão a regiões da alma humana que não se anunciam na aparente inocência das primeiras linhas.

Em Laços de Família, a autora nos apanha em armadilha sutil e vai nos enredando em uma teia irresistível, feito aranha mestra, com seu jeito único de nos surpreender com certas singelezas maldosas que saltam a nossos olhos como se tivessem surgido do nada. Clarice nos delicia com seu poder de nos entregar, em poucos segundos e súbitas pinceladas, preciosos segredos que ela pinça com precisão cirúrgica no meio desse emaranhado complexo que se oculta sob a superfície mais ou menos homogênea das aparências.

Em todos os seus contos nós nos deparamos com esse seu jeito inimitável de nos fazer rir de nós mesmos. De nós mesmos, pois é a humanidade inteira que ela atinge cada vez que seu fino alfinete toca infalível nos pontos mais nevrálgicos de seus personagens.

Rimos ao ler os contos de Clarice, mas rimos com certa angústia – a angústia de nos sabermos tão impotentes para realizar o projeto de fazer corresponder nosso miolo à nossa casca. E ela quase ignora essa casca quando, por exemplo, referindo-se à protagonista do primeiro conto, diz que esta, "já que os filhos estavam na quinta da titia, aproveitou para amanhecer esquisita...", ou que Antônio – personagem do conto que empresta seu título ao volume – "aproveitara sua gripe para tossir", num momento de flagrante embaraço diante da hipocrisia da sogra.

E qual é o leitor que, embora fascinado, não aguardaria com a mesma angústia de alguns personagens o término do conto "Feliz aniversário", pois, como não ser solidário com José e sua falta de jeito para levar a bom termo a farsa que coube a ele conduzir, filho mais velho "agora que Jonga tinha morrido"?

Esses laços de Clarice são irresistíveis precisamente por serem confeccionados com a mesma substância que eles capturam: a fascinante alma humana.