prefácio   
escrevo, com o grão de meus dedos,
minúsculas partículas
minúsculas.
 
 
rebúsculas.
 
 
obscurezas que eu dou.
 
 
escrevo,
com o grão de meus dedos,
e eu sou.
 
 
- qualquer coisa que não seja escura
nem clara
nem certa nem torta demais.
 
 
nem velha.
 
 
escrevo, pelas frestas das mesas,
poemas mortais.  despencam;
 
 
estrelas.
 
 
não temo não tê-las,
leais,
desiguais.
 
 
escrevo, com a ponta dos nervos,
meus versos praquês
sem ter
eu por quês, - com o grão de meus dedos,
cegamente, correndo as paredes
sem poder lhes passar
 
 
no entanto
por quê?.
 
 
eu não tenho suavidade alguma. 
eu não tenho verdade, nenhuma.
escrevo,
com o tempo da espuma.
 
 
escrevo, e meus desalentos são todos coisais.
 
 
escrevo, com a faca da rua,
secretas verrugas,
 
 
venusas,
 
 
meninas doentes e ninfas senis.
 
 
eu escrevo como aquele remido,
mêndice, esquálido e fa-
minto.  escrevo e
não
qui-lo.
 
 
eu não vejo.
 
 
com o grão de meus dedos
escrevo
e não volto atrás.
 
 
não volto,
renego e enfureço,
depois eu me deito, me dispo e mevou,
e mevou,
e mevou sem jamais.
                                                        
(André)
                                           

Fonte:  http://olivrodaspretensoes.blogspot.com/
                             


                                     ***      ***     ***
 
                                  Comentário do Jô:   
     No Aulete, temos:

     – “Obscureza - s. f. (pouco usado) o mesmo que obscuridade. F. Obscuro.

     – “Remido - 1. Que, após remição, está isento de dívida ou culpa: remido do cumprimento da pena. 2. Resgatado, libertado: remido do cárcere. 3. Em clubes, diz-se de sócios isentos de pagar mensalidade (sócio remido).”
 
     E não constam no Aulete nem no Michaelis (neologismos, portanto): coisais, mêndice, mevou, qui-lo, rebúsculas e venusas. Procurando desvendar, aclarar as razões do seu emprego no texto, anotei:
coisais“escrevo, e meus desalentos são todos coisais”
     Aqui, o vate nos acena com uma impressão de desânimo, de lassidão, de “nada mais vale a pena”...  Ao cristalizar esse estado de espírito em declínio, ele minimiza e relativiza tudo, nivelando-se por baixo, deprimido, aflito, inquieto, ansioso, vencido. 


     Nesse momento entra o “coisais” (plural do adjetivo coisal), significando “coisinhas”, “coisas mínimas, insignificantes, miseráveis”, “sentimentos menores, irrelevantes, sem solução nem grandeza”, "ah, deixa pra lá...".  

     Lembro a existência ativíssima, mormente na língua falada, do verbo “coisar”:
(coisa+ar2) vtd e vint gír Imaginar. Var: cousar). (Michaelis)
 
(coi.sar) (Bras.) Verbo usado em lugar de qualquer outro verbo que o falante desconhece, não lembra ou prefere não dizer. [td.: Coisa logo essa marcha!] [int. : Meu computador não está coisando.]
[F.: coisa + -ar2. Hom./Par.: coisa (s) (fl.), coisa (s) (sf.[pl.]).] (Aulete)


     Acresço aqui mais um exemplo: o emprego de coisar suprindo, na fala cotidiana, um outro verbo que exprima uma ação. Ou ainda que resuma, sintetize (esse é o espírito de qualquer língua viva!) uma ação que se expressaria por várias palavras ou conceitos. Ex.: “Você não coisou direito!” (para dizer que alguém não amarrou uma fita nos cabelos de uma menina, por exemplo, corretamente, como deveria, com perfeição).

mêndice – “mêndice, esquálido e faminto.”
      Tem conotação com mendigo, mendigar, mendicância, fome/carência (física ou espiritual)...
 
mevou – “depois eu me deito, me dispo e mevou, e mevou, e mevou sem jamais.”
     Note-se a sequência de verbos de ação: escrevo, não volto, não volto, renego, enfureço, me deito, me dispo e mevou... Sugere esta sequência, a meu ver, um justo repouso, trazendo paz e sossego ao jovem, que se deita e dorme, dorme. E ele se vai em sono, descanso perpétuo ("sem jamais").  

     O verbo ir pertence à terceira conjugação (como florir, partir, repartir...). Acha-se na primeira pessoa do singular (mevou, isto é, vou-me). Encontra-se no modo indicativo, pois expressa um fato real, como em: "Você lê pouco!" ou "Mansamente, Carla ressurge..."
      E expressa-se no tempo presente (ação ocorrente agora, neste momento), como em: "Eu abraço a brisa." ou "Joana chora tantos desencontros." 
      Nesse "mevou" (forma do verbo ir-me, no infinitivo preposicionado),  André "apenas" estilizou o tempo (pretérito perfeito) e o modo (indicativo). Ele assim ousou, criou, aceitou o que o inconsciente lhe propunha, ou lhe impunha, transcrevendo essa ousadia em termos literários: mevou e não vou-me 
      Ocorreu aí uma licença poética, porque o correto gramaticalmente é “vou-me” (não existe o verbo meir, e sim ir-me). Abaixo, a definição da Wikipédia:
 
      “Licença poética é uma incorreção de linguagem permitida na poesia. Em sentido mais amplo, são opiniões, afirmações, teorias e situações que não seriam aceitáveis fora do campo da literatura.
     A poesia pode fazer uso da chamada licença poética, que é a permissão para extrapolar o uso da norma culta da língua, tomando a liberdade necessária para utilizar recursos como o uso de palavras de baixo-calão, desvios da norma ortográfica etc.”
 

qui-lo forma verbal conjugada pronominalmente, significando:
      "Ele o quis, isto é, quis assim."
      Existem qui-lo (verbo) e quilo (substantivo).
      E mais: sê-lo e selo; fi-la e fila.

rebúsculas – ver observações logo abaixo.

venusas – Liga-se, pelo jeito, a “com a faca da rua, meninas doentes e ninfas senis.” 
     Venusianas, Vênus, venéreas (doenças)...

                                ***


     "escrevo, com o grão de meus dedos, 
     minúsculas partículas
     minúsculas.
     rebúsculas."

 
“com o grão de meus dedos” – o autor parece, aí, dizer que seus dedos são semelhantes a grãos que, esparzidos/escritos, germinarão páginas de deleite. Grão tem analogia com algo minúsculo, com partículas, com vida em espera...
      E “rebúsculas” lembra algo rebuscado, trabalhado, reescrito, elaborado. Na mesma linha, portanto, do grão dos dedos - algo fecundante.
     Uma espécie de re-busca, uma contínua procura pelo belo e perfeito, mesclado às agruras da vida feita arte.
 
                                                  
***
     "(e eu sou)
     - qualquer coisa que não seja escura
     nem clara
     nem certa nem torta demais."
 
     Procura o vate fornecer, aí, a medida de todas as coisas, um meio-termo conciliador, ponderador, carinho público.

                                        ***

     “eu não tenho suavidade alguma.  
     eu não tenho verdade, nenhuma.
     escrevo,
     com o tempo da espuma.”
 
     O aedo se põe a carpir, murmurar, sussurrar perdidamente, em solidão, seu desespero existencial, em tantos ais cósmicos quantas estrelas nascentes. 
     E declara não possuir nenhuma suavidade ou verdade. Dessa forma, ele se apequena, se anula, se diminui filosófica e intelectualmente, numa autoflagelação moral. Parece idiotice ou frescura dele, mas não: é a agitação dos sentimentos (euforia, 
mágoas, preces, blasfêmias, epifanias, fracassos...) no ato da criação.
     E escreve “com o tempo da espuma”: à sua escritura não se concederão, por conseguinte, um tempo ou um espaço próprios, podendo ela se desmanchar como a espuma, essa porção tão efêmera dos mares. 

     Do ritmo
     O ritmo é a sequência ou alternância de sílabas fortes e fracas, a intervalos sucessivos, num discurso; concretiza-se pela intensidade dos sons, resultando numa musicalidade melíflua, repousante, realizada. Corresponde à altura, ao tom da voz numa fala. O ritmo é a matiz sonora duma elocução, sua ênfase, sua entonação. 
     Levanto, aqui, um problema: falta ritmo ao poema. 
Infelizmente, é fato. 


     
                                        ***

                         
Figuras de Linguagem
     1
Aliteração (“consiste na repetição ordenada de mesmos sons consonantais”, conforme Ernani Terra). Exemplo dele:
     “Quem madruga sempre encontra 
       Januária na janela.” (Chico Buarque)
 
Exemplo do “prefácio”:
     
“estrelas. 
      não temo não tê-las”


      “esquálido / qui-lo”


      2 - Anáfora – repetição de palavra ou expressão no começo de algumas frases, orações ou versos de um enunciado, numa sequência:
     1 - "Tudo cura o tempo, tudo gasta, tudo digere." (Vieira, apud Ribeiro,  “Gramática Aplicada...”)   
     2 - "Grande no pensamento, grande na ação, grande na glória, grande no infortúnio, ele morreu desconhecido e só." (Rocha Lima, apud Cadore, “Curso Prático...”)
 
     Na composição do André, as anáforas se sucedem, com opulentas variações:
     “escrevo, com o grão de meus dedos,"
 
     “escrevo,
       com o grão de meus dedos,”
 
     “escrevo, com a ponta dos nervos,”
 
     “eu por quês, - com o grão de meus dedos,”
 
     “escrevo, com a faca da rua,”
 
     “com o grão de meus dedos
       escrevo”



    3 - Assonância (sequência contínua de sons vocálicos iguais, visando - ou resultando em - efeito plástico):
     "escrevo, com o grão de meus dedos"

     "escrevo, pelas frestas das mesas"
     Fique esclarecido que há bem mais assonâncias no poema, ficando estes dois exemplos acima apenas como amostragem simbólica.

     

     4 - Metáfora ("Emprego de palavra ou palavras em sentido figurado, tomando-se por base a analogia (relação subjetiva): flor dos anos (juventude), coração de pedra (insensível)." (Adriano da Gama Kury) 
     No texto boniattiano, encontrei as seguintes:
     "o grão de meus dedos" (versos 1, 22 e 42)
     "com a ponta dos nervos" (verso 19)

     "o tempo da espuma" (verso 27)
     "a faca da rua" (verso 32)

                                                 
<<<:::>>>

                                            Conclusões

     A ordem não nasce da ordem, mas do caos. Veja o próprio Cosmos: quando do Big Bang, a dispersão de massas e gases, formando o Universo; daí em diante, o supremo ordenamento de tudo, dando lugar às galáxias, constelações, planetas, cometas... – para dizer o mínimo. 
     Exemplo a Terra: formada há 4,6 bilhões de anos, era lagos, pântanos fumegantes, regiões congeladas, desertos... E do Espaço veio o pólen da vida (células ou moléculas de DNA, bactérias, microorganismos alienígenas), que, achando clima favorável, proliferou na biosfera (isto
há cerca de 3,5 bilhões de anos). 
     E chegamos às Novas Iorques, às Pequins, às São Paulos... Quem imaginaria tanta gente?!
     Voltando ao “prefácio”, temos de admitir: é caos e permanecerá caos, sim. Só que um caos que, sob justas leituras e apaixonada interpretação, gerará entendimentos, sentidos, nexos polivalentes, enfim uma via de mão dupla interior: almatexto/textoalma. 
     (Talvez o leitor veja as coisas assim: se esta composição se apresenta como um prefácio, uma introdução, e não há um texto posterior correspondente, ele, leitor, é o texto...)       
     E esse leitor (ou interlocutário, interpretante, admirador das letras) enfim virará a página recompensado, feliz, gratificado. A literatura funciona assim...
 

      Da sozinhez patética
      Significativo o volume de sutilezas, de metáforas sugestivas, de afirmações contrastantes e conflitantes deste poema. Insensatez latente. Originalidade. Impiedade estética (escreve sem pensar no locutário, sem concessões fáceis).   
     André assume nesse discurso o "eu-lírico", ao contrário do seu costumeiro "nós-épico". Elocução íntima, pessoal, sofrente, angustial.
     Este seu poema dá a dimensão da incompreensão, da repulsa alheia. Dizendo mais claramente: desnuda sua mente, seu leme, seu barco, seu sentimento azul que ninguém quer, mulher alguma almeja. Repulsa, repito, dos outros ao seu trabalho "louco" na visão deles. 
     Não haverá resgate para sua alma náufraga. 
     
                   
                               { * }     


                         Fontes de consulta:
          Curso  Prático  de 
PortuguêsLuís Agostinho Cadore. 
          520 p. 7ª ed. Ilustrações: Cícero Soares
. Capa: Margarete
          e Soares. Editora 
Ática,  SP,  1998.

          Dicionário Aulete Digital. Lexicon Editora 
          Digital. SP, 2010.  Acesse: 
          
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital

          Dicionário de Português | Michaelis - UOL.
          Editora Melhoramentos Ltda., SP, 2009.
          Na internet:
          
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/


      Gramática Aplicada da Língua Portuguesa, de Manoel
          P. Ribeiro. 544 p. 16ª ed. Metáfora Editora. RJ, 2006.

          Licença poética - Wikipédia - a enciclopédia livre
          Acesso: 02/08/2012

          Minidicionário Gama Kury da Língua Portuguesa,
          de Adriano G. Kury. 862 p. Editora FTD, SP, 2001.
  

        


André Boniatti
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 22/07/2012
Reeditado em 23/08/2012
Código do texto: T3791903
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