LUCÍOLA: Maria e Lúcia dentro do projeto pedagógico de José de Alencar

1 – INTRODUÇÃO

A obra de José de Alencar está marcada pela sua intenção em auxiliar na consolidação da identidade nacional ainda em formação após o processo de Independência do Brasil. Para tanto, Alencar e os outros autores românticos irão buscar, principalmente, no indígena uma fonte de inspiração para comporem um passado mítico e grandioso para a nação que acabara de se tornar independente.

Será comum nesse período a busca de um passado histórico que incorporará as narrativas românticas para auxiliar na exaltação dos feitos e dos heróis nacionais. Também, a glorificação da natureza do Brasil irá fazer parte dos escritos românticos como forma de reforçar a ideia de beleza da terra natal e de pertencimento do povo a este país.

Sob essa perspectiva, pode-se compreender a afirmação de Antônio Cândido para quem as obras desse período podem ser caracterizadas como sendo “literatura empenhada”, isto é, os escritores desse período estavam focados em apresentar aos brasileiros a grandiosidade da sua nação.

Os romances de José de Alencar podem ser divididos em: indianistas, que procuravam retratar o índio como herói nacional, fazendo uso de expressões da língua tupi como forma de caracterizar o país pela construção de uma língua nacional; os romances regionalistas, que buscavam retratar figuras típicas do Brasil, mas que estavam distantes da corte no Rio de Janeiro; o romance histórico que tinha a intenção de mostrar o Brasil antes da independência e os romances urbanos, que retratavam a vida do Brasil próximo à corte imperial e buscavam retratar perfis femininos nesse ambiente.

É nesse último, o romance urbanista, que se encaixa “Lucíola”, romance alencareano que será a base deste artigo que busca entender como o perfil duplo da protagonista, Lúcia/Maria da Glória, estavam dentro da literatura pedagógica do autor.

2 – LUCÍOLA

O romance “Lúciola” foi publicado em 1862 e Narra a história do envolvimento do jovem Paulo com a cortesã Lúcia.

Toda a história é narrada em primeira pessoa, como se Paulo contasse sua história através de uma carta a uma senhora apresentada apenas pela sigla G.M.

Paulo é um jovem pernambucano que acabara de chegar ao Rio de Janeiro e faz um passeio pela capital imperial. Nessa caminhada, ele avista pela primeira vez Lúcia passando em um carro. No entanto, não suspeita de sua condição de prostituta.

Após a revelação de um amigo sobre quem é realmente Lúcia, Paulo decide procurá-la, mas surpreende-se com o recato da moça. Em outra visita a Lúcia, o jovem pernambucano decide ser mais ousado, mas a cortesã cai em prantos. Sem acreditar na moça, Paulo mostra-se aborrecida e ela atira-se nua em seus braços. Após esse acontecimento, ele quer pagá-la, mas ela recusa o dinheiro.

De Cunha, Paulo ouve descrições terríveis de Lúcia: avarenta, caprichosa, volúvel... Além disso, na casa de Sá, Paulo deprime-se ao ver a moça nua, imitando quadros em cima da mesa. Contrariado, o pernambucano sai da sala no que é seguido por Lúcia. No jardim, os dois trocam confidências amorosas e terminam fazendo amor.

Em seguida, a relação dos dois se estreita. Lúcia passa a amar Paulo e ele cada vez nutre uma estima maior por ela. Mas o amor de Lúcia é muito mais transcendente do que carnal, o que leva os dois a estarem em constantes conflitos.

Na sociedade, comenta-se que Paulo é sustentado por Lúcia e que ele a prende. Para salvar a reputação do amado, a jovem decide a voltar à prostituição, mas ele não aceita. Aos poucos o sentimento de Lúcia transforma-se em amizade.

Lúcia vai aos poucos se afastando dos sentimentos carnais e tornando-se mais sublime. Paulo passa a compreender que a suposta frieza de Lúcia e suas constantes recusas são, na verdade, uma mudança no perfil da moça que passa a ter cada vez ações mais nobres; ela recusa a dar-lhe o corpo para dar a ele seu amor espiritual. Além disso, descobre-se que a moça está doente.

Depois de uma crise de ciúmes, Lúcia revela a verdade de seu passado a Paulo. Conta-lhe que entrou para a prostituição para ajudar a família empobrecida por causa de uma epidemia de febre amarela. Após o pai descobrir as ações de Lúcia, ele a expulsa de casa e ela é acolhida por Jesuína, que a leva a prostituição juntamente com uma amiga. Essa moça, que faleceu pouco tempo depois, era a verdadeira Lúcia de quem a protagonista usa o nome. O verdadeiro nome da cortesã é Maria da Glória. Com o dinheiro ganho na prostituição, Maria da Glória, Lúcia, ajudava a pagar um colégio interno para sua irmã mais nova, Ana.

Ciente de toda a verdade sobre Lúcia, Paulo a compreende e passa a ter pela moça um amor sincero e carinhoso. Lúcia passa a viver em uma casa modesta e busca sua irmã no internato. Paulo ainda tenta, reconquistar o amor de Lúcia, mas ela se recusa a viver o amor carnal para poder matar, de alguma forma, seu passado. Maria da Glória, agora sem mais nenhum traço da cortesã Lúcia, pede a Paulo que case-se com sua irmã. Mas ele recusas-se.

Grávida de Paulo, a jovem aborta o filho, mas nega-se a tomar o remédio para expulsar o feto morto. Prestes a morrer, Maria da Glória tem de Paulo o juramento de que irá cuidar de Ana como uma filha. Por fim, morre nos braços do jovem que ao encerrar sua narrativa afirma que servirá de pai a Ana até seu casamento.

3 – MARIA DA GLÓRIA E LÚCIA: DUAS MULHERES NUM MESMO CORPO

Dante Moreira Leite em “O Amor Romântico e Outros Temas” afirma que Maria e Lúcia remetem a perfis de mulheres diferentes e não conciliáveis de acordo com os ideais da época e do estilo literário no qual Alencar se insere: “A solução de Alencar consistiu em colocar, na mesma mulher, as duas imagens femininas da época: a virgem pura e a cortesã. Essas duas mulheres (Maria e Lúcia), embora reunidas, são pessoas diferentes: Maria é alma, Lúcia é o corpo” (LEITE, pg. 56).

Isso fica evidente pela separação que Alencar faz nos dois nomes adotados pela protagonista: Lúcia e Maria da Glória. O último nome é referência à mãe de Jesus, a virgem Maria, o segundo nome é parafraseado por Rochinha com Lúcifer: “– Como trata-se de nomes, eu também proponho uma mudança, bocejou o Rochinha. Em lugar de Lúcia, diga-se Lúcifer” (ALENCAR, pg. 40).

Ainda é interessante notar em outra passagem essa separação entre Lúcia e Maria da Glória, quando Paulo vê pela manhã uma mulher diferente da que vira à noite: “A noite a vira bancante infrene, calcando aos pés lascivos pudor e a dignidade, ostentar o vício na maior torpeza do cinismo, com toda a hediondez de sua beleza. À manhã a encontrava tímida menina, amante casta e ingênua, bebendo num olhar a felicidade que dera, e suplicando o perdão da felicidade que recebera” (ALENCAR, pg. 40).

Faz-se visível durante todo o romance que Lúcia e Maria da Glória, embora sejam a mesma personagem, não convivem juntas, onde uma se faz presente a outra está ausente. Como afirma Leite, não há espaço no romantismo para o meio termo entre a bondade e a maldade. Assim, as duas são mulheres independentes que vivem em ambientes separados, Maria da Glória não pode viver na mesma casa luxuosa que Lúcia vivera, por isso muda-se para um ambiente mais simples e recatado. Maria da Glória de alguma forma permanece pura e casta, não é ela que entrega-se aos homens, nem mesmo a Paulo. A esse, Maria oferta um amor casto, puro e sem contato físico. Somente assim, ela pode purificar-se das ações indignas de Lúcia.

4 – LUCÍOLA E PROJETO DE PEDAGOGIA DE JOSÉ DE ALENCAR

Os romances urbanos de José de Alencar caracterizam-se por retratar situação da vida ao redor da corte, a moral burguesa, perfis femininos e por não economizar críticas a alguns dos costumes da população dentro desse círculo de convivência.

Lucíola não é a primeira obra de Alencar a abordar a temática da prostituição. Em 1858, ele estreou a peça “As Asas de um Anjo” que narra a história da heroína Carolina que após perder-se numa vida de prostituição acaba resgatada pelo amor. Porém, apenas três após a estreia a peça foi censurada, sendo Lucíola a retomada de Alencar sobre o tema da prostituição.

Ao ler Lucíola pode-se facilmente identificar que Alencar está apresentando dois perfis de mulher: a prostituta, que permite a si os prazeres do corpo e a mulher virtuosa que se nega a se entregar mesmo ao homem que ama. Uma é corpo, a outra é alma. Essa visão maniqueísta não é novidade na literatura alencaeana, o que chama a atenção em Lucíola é que esses dois extremos convivem em um mesmo indivíduo. Essa dualidade que a heroína vive não pode nunca ser harmonizada, em Maria da Glória não espaço para Lúcia: ambas estão em ambientes opostos, Maria vive na simplicidade, Lúcia no luxo. Uma é o dia, a outra a noite.

Ainda mais interessante é notar que Alencar mostra em Lúcia uma mulher capaz de regenerar, de converter-se em Maria da Glória. Se as condições adversas obrigaram a moça simples e de família a se transformar na luxuriosa cortesã, o amor sublime é capaz de resgatá-la. Maria da Glória e sua conversão é o ideal que Alencar que apresentar à sociedade. O caminho seguido por ela é mesmo caminho pelo qual todas as mulheres desviadas deveriam seguir.

Outro ponto em que se percebe a intenção do autor em moldar de algum modo a sociedade carioca, são as constantes críticas ao modo de vida dos homens que vivem segundo suas paixões. Embora, como lembra Leite, no período em que o romance se passa fosse até certo modo aceitável ao homem viver seus desejos e impulsos sexuais, para Alencar esse não é um tipo de homem que possa servir de modelo à nação:

O Sr. Couto, fresco e repolhudo, bamboleando-se na cadeira, fazia sortes que as mulheres aplaudiam, e consumia o terceiro copo de água gelada, para abrandar o fogo interno. O Sr. Rochinha, derreado pelo sofá, erguia às vezes a cabeça pesada de sono e torpor para absorver um cálice de conhaque da garrafa que tinha ao lado” (ALENCAR, pg.36).

Sá, o amigo de Paulo, apresenta Couto como “o capitalista” e Rochinha como “rico da herança”. É a crítica de Alencar a hipócrita moral burguesa que circunda a nobreza imperial. Na nação imaginada pelo autor de “Iracema”, não há espaço para esses sujeitos viciosos, pelo menos não às claras e à luz do dia. Talvez por isso, são figuras da noite, os vícios ocultam-se tão logo a manhã surge e as virtudes somem, nesses homens, tão logo anoiteça.

Dessa forma, fica claro que há um ambiente e um tempo para que o vício se manifeste. Na festa orgíaca promovida por Sá, não é permitido que os atos tidos por libidinosos sejam feitos em frente aos empregados que servem. É necessário aguardar que eles se recolham, não por que não sabem o que irá se passar, mas porque não pode conviver em um mesmo ambiente e em um mesmo tempo o vício da libertinagem e a virtude do trabalho honrado, é a mesma oposição que se dá entre Lúcia e Maria da Glória.

A morte no final da heroína pode ser ainda outro elemento dentro da pedagogia do autor. O bebê que a moça traz no ventre não é o tipo de cidadão que se almeja para o país. Maria da Glória não deseja o filho de Lúcia, pois esse não é fruto do amor virtuoso e transcendental, mas é fruto da concupiscência da cortesã que naquele momento já estava, pelo menos psicologicamente, morta. O filho de Lúcia e Paulo deve morrer e com ele deve perecer o corpo que o gerou. Se Lúcia é o corpo que deve ser extinto, Maria da Glória é alma que ama de modo sublime e sobrevive a essa morte.

Por fim, Maria da Glória é a pedagoga da irmã: “Não sabes então que o meu pensamento e a minha alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?” (ALENCAR, pg. 123). Ana não pode jamais viver ou aprender o modo de vida de Lúcia. A jovem só tem contato com Maria da Glória, só ela é que pode dar à irmã exemplo de vida virtuosa. Lúcia, nesse momento, já não existe, é apenas um fantasma já exorcizado. Ana, que no romance nunca experimentara o prazer do corpo, é incentivada a manter-se assim, casta e pura, ao passo que a prostituta, deve negar agora a todo o prazer para poder passar por seu momento final de purificação, que termina com a entrega da própria vida por um ideal maior. Sacrificar a vida é, talvez, o ápice da assimilação do pensamento cristão por parte da heroína de Alencar.

5 – CONCLUSÃO

Os inúmeros textos em que Alencar se propõe a refletir sobre seus escritos deixam claro que o romancistas não era um homem ingênuo, mas um homem ciente daquilo que queria ao escrever: criar uma literatura brasileira, com características próprias e que retratasse o povo que aqui vivia. Assim, tanto Lúcia, como Maria da Glória são figuras presentes no país no século XIX. É evidente que não se pode pensar que existam pessoas em que a dicotomia entre corpo e alma seja tão clara de modo a nunca entrarem em conflito. A psicologia do conflito constante entre o Id e o superego freudiano não encontra espaço na literatura de Alencar. Lúcia e Maria da Glória não se manifestam ao mesmo tempo. A ressurreição de Maria da Glória é o veneno que vai matando gradualmente Lúcia. Assim, a complexidade da heroína não está no nível psicológico, mas no seu ambiente social. Na alma de Maria não há nenhuma rixa com Lúcia, esse conflito se dá entre as pessoas que não aceitam a mudança pela qual a heroína passa.

Portanto, o romance urbano de Alencar não foge a seu propósito de pedagogo da nação. Ao fazer desfilar nas páginas do romance as figuras típicas daquele período, o autor continua a apresentar aos seus leitores e ouvintes um ideal de homem e mulher que deveriam ser o protótipo do brasileiro que iria ajudar a construir a gloriosa nação idealizada pelo escritor.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 25/06/2012
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