Ensaio Discursivo sobre “O Caso da Menina da Estrada Do Canindé”, de Raquel de Queirós
Francisco Rodrigues Júnior*
(shicko Rodrigues)
Resumo: Neste ensaio, desenvolveremos uma análise do conto “O caso da menina da estrada do Canindé”, procurando demonstrar a prática discursiva de Rachel de Queirós, sob o ponto de vista da análise discursiva e da tradicional.
Palavras-chave: narrativa, narratividade, transformação, enunciação, projeção e debreagem.
O conto escolhido para análise intitula-se “O caso da menina da estrada do Canindé” – do livro “Cem Crônicas Escolhidas”, de RACHEL DE QUEIRÓS, que será estudado sob o ponto de vista da análise discursiva e da análise tradicional, onde obter-se-á um efeito literário semântico e lingüístico, sem se preocupar em buscar minuciosidade no texto.
Este conto evidencia a conseqüência da seca de 19l5, que gera transformação, tanto física quanto psicológica na vida dos homens.
TRANSFORMAÇÃO é própria da narratividade e situa-se entre dois estados sucessivos diferentes: estado inicial e estado final. A narratividade é um componente da teoria do discurso e não deve ser confundida com a narração “que constitui a classe de discurso em que estados e transformações estão ligados a personagens individualizados” ( FIORIN, 1992).
O conto foi construído em quinze parágrafos, contendo um único conflito, ou seja, um único episódio, compondo uma unidade de começo, meio e fim. O começo dá-se com uma nota introdutória, o enunciador tece um comentário prestando o seu juízo de valor, que, semanticamente traduziríamos na proposição É VERDADE QUE: “... este caso de hoje se deu no ano da seca de 19l5." (página 38). Este enunciado leva o destinatário a CRER QUE o caso seja verdadeiro; em l915, realmente, houve uma terrível seca no nordeste brasileiro.
O caso, propriamente dito, nos é remetido a partir do segundo parágrafo, através do narrador observador, em 3a pessoa, que, embora, já conheça a história – um caso popular, folclórico e metatésico -, procura-se conter, fingindo imparcialidade, o que é comum em narrativas da estética realista e narrativas modernas. É este narrador, obviamente, quem nos relata o espaço, tempo e personagens, revelando nos demais parágrafos o conflito, ou drama, que é a unidade principal do conto.
Resumo do caso: Com a seca de 1915, o homem viúvo decidiu-se vender o que achasse comprador (menos a terra). Como era um bom oficial de uma arte, resolveu procurar uma cidade a fim de trabalhar de carapina ou pedreiro. Tendo que ultimar uns negócios derradeiros, combinou que iria a Castro, há dezesseis léguas ida e volta, o que o impossibilitaria voltar no mesmo dia. Ele recomendou à filha que dormisse na casa de uns vizinhos, a menos de quilômetros de distância. A filha, como era uma rapariga muito caprichosa , cuidou de todos os serviços domésticos e acabou ficando sozinha em casa. Altas horas ela acordou com um barulho, pegou o lampião e deu com um homem no meio da sala. Identificou-o, era o vizinho de perto. Ele queria o dinheiro que estava no baú. Ela o entregou e em seguida foi ameaçada de morte com um golpe de faca ou enforcada num caibro do telhado. Ela preferia morrer enforcada. O homem preparou o laço e, ao verificar se abarcaria na cabeça da menina, tratou de experimentá-lo. O banco perdeu o equilíbrio e ele, desgraçadamente, morreu enforcado. Quando o pai da menina chegou, encontrou a porta aberta, o vizinho de perto enforcado e a filha dormindo, toda amarrada na rede, como se nada tivesse acontecido.
O espaço narrativo, onde ocorre a cena é no interior da casa de taipa, que fica “na da que vai para o Canindé, a oito léguas do lugar outrora chamado Castro mas hoje se chama Itaúna”. Daí se justifica o título sugerido pela autora: “O CASO DA MENINA DA ESTRADA DO CANINDÉ”, que é o espaço macro e tem como referência importante no contexto por tratar-se de uma cidade cearense. O termo Canindé, do tupi kani’dé, significa “faca longa e pontiaguda usada pelos sertanejos cearenses” (FERREIRA, 1987:270).
O tempo deve ser visto através da ação narrativa que é tudo o que acontecena história: o fato e atos envolvendo as personagens. Essa tecelagem ou organização tem basicamente duas linhas condutoras: a seqüência cronológica e a seqüência lógico-causal.
A sequência cronológica - linha que “amarra” o que acontece antes com o que acontece depois – (BRANDÃO, 1992: 5 e 6) está no ano em que ocorreu a cena, em 1915, que se projeta no enunciado, acontecendo uma debreagem enunciva** (projeção do ele-então-lá).
O narrador conta a seu interlocutor o caso que ocorreu durante a seca de l915, que acarretou graves problemas sociais e econômicos na região, capaz de transformar “quem nunca tinha feito mal a nada” em “besta-fera”.
A narrativa acontece no ano de l947, relatando fatos de um tempo então, anterior ao momento da enunciação:
“ Ora este caso de hoje se deu no ano da seca de 1915. ” (página 38 ).
“Vendido tudo, apenas apurou exatamente seiscentos e quarenta mil-réis. Hoje em dia isso não parece nada, mas há trinta e dois anos atrás era um começo de vida.” (página 39).
Logo: 1915 + 32 = 1947
A sequência lógico-causal (linha que relaciona ações que são causas com outras consequências) “amarra” as ações pedindo continuação e abrindo expectativas de que alguma coisa aconteça. As ações da narrativa podem ser enumeradas a partir das ações de cada personagem. Estas ações giram em torno dos verbos, que, segundo a sintaxe narrativa, estão os enunciados de estado e os enunciados de fazer.
Os enunciados de estado são os que estabelecem uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto, porquanto, os enunciados de fazer são os que mostram a transformação: a de privação e a de liquidação de uma privação O homem entra em disjunção com a natureza, tornando-se capaz de cometer atrocidades. No estado inicial da narrativa, o homem está em conjunção com a natureza e no final em disjunção com ela, pois “... a fome é má conselheira e miséria não tem pena de ninguém.” ( página 38).
As personagens que intervêm no conto são poucas e não são caracterizadas por nomes próprios: um homem viúvo, sua filha de doze anos e um vizinho de perto. O enunciador define as personagens através das ações: plana, a filha de doze anos; redonda (ou complexa), o vizinho de perto e, adjuvante, o homem viúvo. A caracterização dada as personagens são psicológicas (personalidades, qualidades, defeitos, sonhos, desejos, emoções, pensamentos, frustrações e carências) e sociais (família, amizades e atividades).
A intriga, ou enredo gira em torno de dois objetos de valores. O primeiro objeto de valor é o dinheiro (= riqueza: seiscentos e quarenta mil-réis) que tem como sujeito o vizinho de perto. Este objeto de valor representa o poder querer fazer ao vizinho de perto, que ao saber da viagem do homem viúvo, entra em estado de conjunção com a riqueza, planejando roubá-lo. Assim faz, mas, como a menina estava só em casa, ele acabou sendo identificado por ela, como a um ladrão, no momento de sua aparição no interior da sala. A partir desse instante, ele torna-se impotente, isto é, o poder querer fazer, passa a significar o poder querer fazer e não saber. A menina, que no estado inicial representa o não poder fazer, passa em seguida ao estado de poder fazer, mesmo toda amarrada na rede. Sua opção de morrer enforcada num caibro do telhado tornou o poder querer fazer e não saber do vizinho de perto em estado de ignorância: “Feito o laço, achou-o pequeno e pensou que não abarcaria na cabeça da menina; tratou de o experimentar na própria cabeça (...) o laço correu, apertou-lhe o pescoço, e o desgraçado ficou balançando no ar...” (página 40).
O homem viúvo, personagem adjuvante, representa o fazer. Toda a intriga dá-se pelo fato de ele vender e adquirir o objeto de valor, que é a cobiça e a miséria do vizinho de perto. O objeto de valor atribuído a ele é a filha (a preocupação com o social), que embora desobedecera suas recomendações em “...dormir na casa de uns vizinhos, a menos de quilômetros de distância” (página 39 ), nada, segundo ele, acontecera. No final, observa-se que a performance se realizou: no ponto realista foram atribuídos os castigos e as recompensas. O vizinho de perto em disjunção com a vida, a menina em conjunção com a vida e o pai em conjunção com ela.
O enunciado nos é apresentado em discurso indireto livre ou semi-indireto***, alternando com trechos o discurso indireto e direto, denunciando os estados de espírito das personagens, principalmente ao da filha de doze anos, que levada ao medo “...sob a ameaça do ferro...” ( página 40) e “...na rede, toda amarrada...” (página 41) estava impedida de praticar qualquer ação de que era vitimada. Os diálogos que aparecem no discurso direto são apenas dois; um no parágrafo nove (vizinho de perto) e outro no parágrafo doze (a filha de doze anos).
A ação se resume no fazer, poder querer fazer, poder querer fazer e não saber. Os verbos aparecem com maior freqüência no pretérito perfeito do indicativo e pretérito imperfeito, havendo também emprego do presente, futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito. A enunciação instaura-se em um intrigado jogo de articulações temporais a partir de um NÃO AGORA, ou seja, o tempo então, que segundo Fiorin****, há uma projeção ele-então-lá. “Ele” é o enunciatário; “então” é o tempo e o “lá”, o lugar onde ocorre a cena. O NÃO AGORA indica o tempo anterior e o tempo posterior. O anterior com concomitância (pretérito imperfeito) e não concomitância anterior (pretérito mais que perfeito e posterior (futuro do pretérito). O posterior com concomitância (presente em relação ao futuro) e não concomitância anterior (futuro anterior) e posterior (futuro em relação a um futuro). É a partir dessas articulações temporais que o narrador dispõe os acontecimentos no texto. O presente indica o desenrolar de um fato atual, como se diz no latim hic et nunc ( aqui e agora), “... este caso de hoje...” ( página 38) é o tempo da enunciação e “Hoje em dia isso não parece nada, mas há trinta e dois anos atrás era um começo de vida” (página 39) é o tempo comparativo do posterior com o anterior – digressão temporal passado/presente. Há, nas ações, combinação dos dois tempos do pretérito, o imperfeito e o perfeito – participa o imperfeito, simultaneamente, do presente e do pretérito: é a ação que para o presente já é passado, mas que para o pretérito ainda está se passando. O mais que perfeito, que é o tempo puramente literário, dá certeza ao pretérito, equivalendo, frequentemente, ao imperfeito subjuntivo e ao imperfeito do condicional.
O gênero do conto é uma espécie de narrativa fantástica ou de mistério. Melhor seria afirmar que é uma história de terror, a serviço de uma produção de um efeito ao leitor: o susto. No décimo quarto parágrafo o enunciador enumera gradativamente a reação de pânico da menina quando viu “... aquele corpo solto balançando na ponta do laço com a língua de fora...” (página 40).
A fonte de recursos estilísticos que nos diz respeito às figuras de retórica, no texto, aparece com freqüência maior no uso da metonímia, pois há uma grande relação
de contigüidade entre termos substituídos e substituintes, causando, sob o ponto de vista discursivo, uma impertinência semântica.
Sobre a oposição e concessão que ocorre no texto, quanto à narratividade, podemos recorrer à seguinte citação:
“Por uma espécie de automatismo psíquico, uma ideia ou imagem quase sempre nos evoca outra que se lhe opõe ou se lhe assemelha. Constitui por assim dizer uma operação normal do espírito estabelecer contrastes e analogias: os primeiros traduzem-se principalmente em antíteses, e as segundas, em comparações e metáforas.” (GARCIA, 1992: 77).
É sabido que a eficácia dessa análise é, comprovavelmente, mínima, pois, tratando-se de um ensaio, é apenas uma sugestão, ou contribuição, para que estudantes do curso de Letras e da área de educação se interessem em estudar a manifestação discursiva em Rachel de Queirós (1910-2003), que em 1930, estreou na Literatura Brasileira com “O Quinze”, romance que a tornou logo famosa, na família nordestina.
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Referências bibliográficas:
BRANDÃO, Inácio de Loyola. Quem conta um conto. São Paulo: Contexto, 1992.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário do Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
FIORIN, José Luiz. Elemntos da Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 1992.
GARCIA. Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992.
QUEIRÓS, Raquel. 100 Crônicas Escolhidas. Rio de Janeiro: José Olympio, Rio de Janeiro, 1977.
Notas:
* Francisco Rodrigues Júnior, professor de Introdução à Teoria da Literatura e Língua e Literatura Latinas – UNIMONTES – Campus Januária – MG.
** Fiorin classifica a debreagem como enunciava e enunciativa. Segundo ele, a enunciva é quando o “eu” se distancia do discurso, porquanto, a enunciativa é aquela que o “eu” coloca-se no interior do discurso. (cf. op. cit.p.44).
*** Cf. GARCIA, Othon M. Op. cit. P.146 e ss.
**** FIORIN, José Luiz. Op.cit.p 40 e ss.