“O CASAMENTO: UMA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA OU UM VÍNCULO AMOROSO?”

“O CASAMENTO: UMA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA OU UM VÍNCULO AMOROSO?”

Maria Jaceni Soares da Silva

RESUMO:

Esse artigo foi realizado a partir de leitura e análise do romance “Senhora”, do escritor José de Alencar. Considerado um clássico da Literatura Universal, o romance “Senhora” é de uma riqueza inexaurível, no qual o autor faz uma crítica à decadência dos valores do segundo império. Abordarei no decorrer deste, a temática do casamento por interesse. Para tanto, analisarei o momento histórico ao qual esta vinculada a obra, seu autor e alguns posicionamentos dos personagens. Assim, proponho que façamos, através dessa obra, uma reflexão critica dos valores e costumes da sociedade do século X IX.

Palavras - chave: romantismo - dote - casamento por interesse

MOMENTO HISTÓRICO

O romance “Senhora”, publicado em 1875, do escritor José de Alencar foi uma das suas maiores obras, por ser considerada uma obra romântica é indispensável que se faça uma síntese sobre o que foi esse movimento literário, como surgiu e quais suas principais características, para que possamos assim, compreender a narrativa desta obra ímpar de José de Alencar.

O momento histórico em que ocorreu o Romantismo pode se visto a partir da chegada da família real no Brasil em 1808, tal chegada faz com que a cidade do Rio de Janeiro passe a viver um intenso processo de urbanização, tornando-se assim um campo propício para a divulgação de novas tendências. Com a vinda da família real, a imprensa passa a existir e com ela os folhetins os quais desempenharam importante papel no desenvolvimento do romance romântico. Outro fato importante que contribuiu para a consolidação do Romantismo foi à criação de cursos superiores no Brasil. A criação desses cursos representou para o Romantismo o aumento do público leitor, com a entrada de novos consumidores no mercado literário como, por exemplo, estudantes, profissionais liberais e as mulheres que também tiveram um papel muito importante na divulgação e propagação dos romances da época.

Podemos dizer que a Revolução Comercial e a Revolução Industrial provavelmente foram às maiores responsáveis pela inserção e interação das classes sociais no cenário da sociedade brasileira da época. Assim, a popularização da arte, que passou a abranger os diversos seguimentos da sociedade; e o incentivo à educação e à instrução também contribuiu bastante para que esse público leitor aumentasse de forma significativa.

A partir da independência em 1822, o homem romântico sente a necessidade de definir uma identidade cultural que fosse própria do seu país. Para isso, os artistas e intelectuais da época buscaram em suas obras retratar a real identidade do homem brasileiro, nossa língua, nossa raça, nosso passado histórico, nossos costumes e tradições. O romance, nesse caso, teve um papel preponderante de principal instrumento na construção da cultura brasileira. Assim, romances de cunho indianista e histórico, o romance regional e o romance urbano, são obras que cada um em sua especificidade busca uma re-descoberta do país. Nesse sentido, José de Alencar, o maior escritor do Romantismo, escreveu obras que enfocam esses três espaços como O Guarani, romance histórico-indianista; O Gaúcho, romance regional e Senhora, romance urbano, obra que será analisada neste trabalho.

Assim, a prosa romântica em sua inexorável riqueza é composta das seguintes características: subjetivismo, nacionalismo, sentimentalismo, impasse amoroso com final feliz ou trágico, oposição aos valores sociais, peripécia, o amor como redenção, idealização da mulher, personagens planas e linguagem metafórica.

Portanto, pode-se afirmar que o Romantismo teve seu marco inicial em 1808, e seu declínio coincide com a decadência da monarquia escravocrata, pois a partir de 1870 aparecem os primeiros pensamentos realistas, entretanto só em 1881 teríamos o marco final do Romantismo com a publicação dos primeiros romances de tendências naturalistas e realistas a exemplo o mulato, de Aluízio Azevedo e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

O AUTOR

José Martiniano de Alencar, advogado, jornalista, político, orador, romancista e teatrólogo, nasceu em Mecejana, CE, em 1º de maio de 1829, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de dezembro de 1877. É o patrono da Cadeira n. 23, por escolha de Machado de Assis.

Era filho do padre, depois senador, José Martiniano de Alencar e de sua prima Ana Josefina de Alencar, com quem formara uma união socialmente bem aceita, desligando-se bem cedo de qualquer atividade sacerdotal. E neto, pelo lado paterno, do comerciante português José Gonçalves dos Santos e de D. Bárbara de Alencar, matrona pernambucana que se consagraria heroína da revolução de 1817. Ela e o filho José Martiniano, então seminarista no Crato, passaram quatro anos presos na Bahia, pela adesão ao movimento revolucionário irrompido em Pernambuco.

Entre 1837-38, em companhia dos pais, viajou do Ceará à Bahia, pelo interior, e as impressões dessa viagem refletir-se-iam mais tarde em sua obra de ficção. Transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, onde o pai desenvolveria carreira política e onde freqüentou o Colégio de Instrução Elementar. Em 1844 vai para São Paulo, onde permanece até 1850, terminando os preparatórios e cursando Direito, Filiado ao Partido Conservador, foi eleito várias vezes deputado geral pelo Ceará; de 1868 a 1870, foi ministro da Justiça. Não conseguiu realizar a ambição de ser senador, devendo contentar-se com o título do Conselho.

Desgostoso com a política passou a dedicar-se exclusivamente à literatura. A sua notoriedade começou com as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, publicadas em 1856, com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio de Janeiro, nas quais critica veementemente o poema épico de Domingos Gonçalves de Magalhães, favorito do Imperador e considerado então o chefe da literatura brasileira.

Ainda em 1856, publicou o seu primeiro romance conhecido: Cinco minutos. Em 1857, revelou-se um escritor mais maduro com a publicação, em folhetins, de O Guarani, que lhe granjeou grande popularidade. Daí para frente escreveu romances indianistas, urbanos, regionais, históricos, romances-poemas de natureza lendária, obras teatrais, poesias, crônicas, ensaios e polêmicas literárias, escritos políticos e estudos filológicos. A parte de ficção histórica, testemunho da sua busca de tema nacional para o romance, concretizou-se em duas direções: os romances de temas propriamente históricos e os de lendas indígenas. Por estes últimos, José de Alencar incorporou-se no movimento do indianismo na literatura brasileira do século XIX, em que a fórmula nacionalista consistia na apropriação da tradição indígena na ficção, a exemplo do que fez Gonçalves Dias na poesia. Machado de Assis sempre teve José de Alencar na mais alta conta e, ao fundar-se a Academia Brasileira de Letras, em 1897, escolheu-o como patrono de sua Cadeira.

Sua obra é da mais alta significação nas letras brasileiras, não só pela seriedade, ciência e consciência técnica e artesanal com que a escreveu, mas também pelas sugestões e soluções que ofereceu, facilitando a tarefa da nacionalização da literatura no Brasil e da consolidação do romance brasileiro, do qual foi o verdadeiro criador. Sendo a primeira figura das nossas letras, foi chamado “o patriarca da literatura brasileira”. Sua imensa obra causa admiração não só pela qualidade, como pelo volume, se considerarmos o pouco tempo que José de Alencar pôde dedicar-lhe numa vida curta. Faleceu no Rio de Janeiro, de tuberculose, aos 48 anos de idade.

RESUMO

O romance “Senhora” conta a história de uma moça pobre, que se apaixonou por um rapaz que freqüentava a roda da sociedade fluminense. Aurélia Camargo é uma jovem órfã de pai e que vive com sua mãe em um bairro do Rio de Janeiro. Sua mãe, ainda muito moça, conhece um jovem estudante de direito por quem se apaixona perdidamente, porém é proibida pela família de unir-se ao seu amor, devido ao fato de este não ser filho reconhecido em cartório de seu pai natural, um rico fazendeiro, e isso na época era motivo perante a sociedade de vergonha.

Assim, D. Emília, a mãe de Aurélia, casa em segredo com Pedro Camargo. A família ao saber do acontecido não acredita, e pensando que ela não passa de uma amante do rapaz renega a moça e corta todo e qualquer vínculo, pois uma atitude desta não é própria para uma moça da sociedade, e, portanto, passa o vê-la como uma perdida. Após alguns anos Pedro Camargo morre sem que seu pai o legitime como filho e sem provar-lhe que é casado. Por isso depois de sua morte, D. Emília tenta uma aproximação com o sogro, mas sem muito sucesso, pois não tinha nenhum documento que comprovasse sua união com Pedro Camargo, desta forma o rico fazendeiro a renega supondo que esta não passava de uma aventureira que queria apenas sua fortuna.

Desde então, D. Emília passa a criar seus filhos sozinha e com muitos sacrifícios, porém com a maior dignidade possível. Enclausurada no seu amor, e vestida de luto, roupa que usou até a sua morte, D. Emília vive em uma casinha em Laranjeiras com seus dois filhos, Aurélia e Emílio, o qual morreu ainda jovem de uma pneumonia.

Restando como filha apenas Aurélia, e com a saúde bastante debilitada a única e maior preocupação de D. Emília era ver a sua filha casada e amparada antes de sua morte. Diante dos apelos fervorosos da mãe, Aurélia se dispõe a ficar na janela, costume das moças da época que desejavam encontrar um casamento. Foi aí que conheceu Fernando Seixas, seu único e verdadeiro amor. Fernando era um rapaz ambicioso, motivo que o leva a desfazer a relação com Aurélia, pois ambiciona casar-se com uma moça rica.

Passando algum tempo, Aurélia recebe uma herança do seu avô e ascende socialmente. Certo dia, a jovem convoca seu tutor para apresentar-lhe certo assunto, seu casamento co Seixas.

Ela pede também que procure seu pretendente escolhido e lhe ofereça 100 contos de rés de dote, o casamento com separação de bens e que de forma nenhuma quebre o segredo de seu nome. Inicialmente, Fernando Seixas não aceita a proposta, mas muda de idéia, pois precisa do dinheiro para dar um dote a uma de suas irmãs. Depois de receber o adiantamento, Seixas é apresentado a sua futura noiva. Surpreende-se em ver que sua noiva é sua ex-namorada da época de adolescência e sente-se humilhado, mas o Sr Lemos diz que Aurélia não sabe do acordo. Depois do acontecido, oficializa-se o pedido de casamento. Toda a sociedade fica atônita ao saber que Aurélia iria se casar com um marido sem fortuna. Acontece uma cerimônia modesta com poucos convidados e com os noivos demonstrando toda a sua felicidade. Mas, quando ficam a sós, Aurélia mostra toda a sua crueldade demonstrando todo o desprezo que tinha e chegando a mencionar o acordo de 100 contos de rés. Na noite de núpcias, Aurélia confessa a Fernando toda mágoa e rancor guardado durante algum tempo. Passam a viver sobre aparências na sociedade, Seixas se sente humilhado pelas atitudes de Aurélia, mas por orgulho e amor permanece ao seu lado, submetendo-se aos seus caprichos.

Depois de algum tempo Fernando descobre um valor que tem a receber, que juntando com algum que já possuía conseguiria devolver o dote a Aurélia e viver livre de tamanhas ofensas. Aproveitando a devolução do dinheiro Seixa conta à esposa o porquê de ter aceitado a separação no passado. Aurélia extremamente transtornada declara seu amor e mostra que no mesmo dia que o humilhou na noite de núpcias, escreveu seu testamento onde deixava tudo o que tinha para seu tão amado marido. Naquele momento ela demonstra que abdicava de toda a fortuna para ficar ao lado de seu amado. Acontece um doce e longo beijo de amor.

ANÁLISE

O romance “Senhora” de José de Alencar, é um romance urbano em que retrata a sociedade fluminense na segunda metade do século XIX. Observa-se em seu enredo uma crítica aos costumes e valores da sociedade da época, aliás, época esta que o próprio autor viveu, e talvez por isso retrate com tanta propriedade, em seu livro, costumes e situações vividas em sua época. Conforme nos mostra Antonio Candido (1982): “... o compromisso do romancista com a história se restringe essencialmente à reconstituição do clima da época, à fidelidade dos hábitos, costumes, instituições de modo de vida”.

Assim, percebemos que o romance de Alencar é de características definidas de forma românticas, mas que já carrega traços de uma temática realista: a crítica ao casamento burguês.

O romance é narrado em terceira pessoa, por um narrador observador que expõem nos mínimos detalhes todas as características dos personagens, sejam elas físicas ou psicológicas. O narrador descreve com fidelidade mobílias, ornamentos e costumes, tais descrições nos possibilitam, enquanto leitor, viajar no tempo e visualizar de forma clara os acontecimentos descritos por ele.

O livro traz uma linguagem carregada de sentimentalismo, característica própria da escrita romântica, o espaço retratado no romance é a sociedade fluminense do século XIX. O narrador fala do presente daquela sociedade, embora na segunda parte, o autor retorne ao passado da protagonista, porém não se trata de um passado muito remoto, ele apenas o faz para explicar algumas atitudes que Aurélia toma no presente. Em seu enredo encontramos como personagens principais Aurélia Camargo e Fernando Seixas.

Aurélia é uma mulher bem diferente de todas as outras que naquela época viviam. Destacava-se por seu caráter forte, pela sua beleza e pela sua maneira de agir e pensar, ou seja, sua determinação. Suas atitudes iam de encontro às regras determinadas pela sociedade, e isso fazia de Aurélia uma mulher ímpar.

Fernando um jovem estudante de Direito, com um caráter bem flexível, bem vestido e apreciador da vida em sociedade. A falta de dinheiro o conduz a acreditar que a única maneira de evitar a ruína final é casando-se com um bom dote.

Temos ainda alguns personagens coadjuvantes, os quais contribuem de forma significativa para o desenrolar da trama, são eles: D. Firmina, mãe de encomenda de Aurélia: D. Emília, mãe de Aurélia e irmão de Lemos; Pedro Camargo, pai de Aurélia e filho natural do fazendeiro Lourenço Camargo; Lemos, tio e tutor de Aurélia, homem ganancioso que procura tirar proveitos em tudo; entre outros.

O enredo está dividido em quatro partes, o “Preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”, o que corresponde às etapas de uma transação comercial, e isso leva-nos a levantar um questionamento bastante pertinente; segundo o enredo de “Senhora”, o casamento é uma instituição financeira ou um vínculo amoroso?

No século XIX era comum realizar casamentos arranjados, nos quais, a família da moça oferecia um dote, entretanto, no enredo de “Senhora”, observamos que Aurélia, a protagonista, não condena esse arranjo, mas sim a atitude de alguns que mesmo gostando de uma pessoa é capaz de casar-se com outra só por causa do dote oferecido.

Isso explica porque em alguns momentos Aurélia revolta-se contra sua própria riqueza e contra o poder que o dinheiro tem, ou melhor, com o sentimento que ele é capaz de despertar nas pessoas, é o que nos mostra a seguinte citação:

As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas, receberia como rainha desdenhosa a vassalagem que lhe rendiam. Por isso mesmo considerava ela o ouro um vil metal que rebaixava os homens; e no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só das bajulações que tributavam a cada um de seus mil contos de réis. (Senhora, p.14)

Assim, visto que eram comuns tais casamentos, e, após ter completado a maioridade, e herdado uma grande fortuna, Aurélia decide casar-se. Contudo, sua motivação não foi pelo amor que outrora sentira, mas sim, movida pelo desejo de vingar-se do único homem que amou, o qual a desprezou e a trocou pelo dote de trinta contos de réis. Aurélia pede então ao seu tutor que arranje tudo para que a transação se realize, observe o seguinte trecho:

Previno-o de que meu nome não deve figurar em tudo isto... Os termos da proposta devem ser estes; atenda bem. A família de tal moça misteriosa deseja casá-la com separação de bens, dando ao noivo a quantia de cem contos de réis de dote. Se não bastares cem e ele exigir mais, será o dote de duzentos... Em todo caso quero que o senhor compreenda bem o meu pensamento. Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível; mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo, não faço questão de preço. É a minha felicidade que vou comprar. (Senhora, p. 27-28)

Observam-se nesse fragmento os sentimentos contraditórios de Aurélia, que ao mesmo tempo em que se refere ao seu casamento como uma transação comercial, ela refere-se a ele como um meio para alcançar a sua felicidade. Assim, Aurélia desde o inicio da trama luta contra seus próprios sentimentos que muitas vezes se torna confusos, de um lado uma mulher doce, apaixonada, que ama perdidamente a Fernando, do outro uma mulher fria, calculista que movida pelo ódio e desprezo só pensa em vingar-se evidenciando assim a crise psicológica vivida pela protagonista.

É importante ressalta que a sociedade do século XIX, era extremamente machista e patriarcal, cabendo à mulher o segundo plano nas relações de então. Vejamos o que nos diz a historiadora Besse sobre a posição feminina:

A lei civil brasileira... subordinava as esposas aos maridos, definindo-as como eternas menores de idade, sem poder para tomar decisões finais sobre a criação dos filhos ou sequer administrar seus próprios bens. Os viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, pintaram um retrato em geral nada lisonjeiro das mulheres... Casadas freqüentemente por volta dos quinze anos com homens muito mais velhos, foram estereotipadas como criaturas submissas, passivas, cuja existência doméstica reclusa e instrução superficial faziam delas uma companhia excessivamente aborrecida. (BESSE, 1999. P.14)

Porém, Alencar nos surpreende com sua personagem que rompe com tais características. Isso se evidencia no momento em que Aurélia contrata seu tio como tutor, mas continua tomando suas próprias decisões: “... o Lemos, expedido em negócios, arranjava do juiz de órfãos a nomeação de tutor da sobrinha. De primeiro impulso, Aurélia pensou em revoltar-se contra essa nomeação... mas... sorriu-lhe a idéia de ter um tutor a quem dominasse.” (Senhora, p. 93).

Dessa forma, ela passa a ser não mais uma mulher passiva e submissa, mas sim, uma mulher ativa que rege sua própria vida e que tem consciência de sua postura perante a sociedade em que vive uma prova disso é a determinação com que Aurélia dita os termos de seu casamento.

Além disso, Aurélia demonstra outra peculiaridade não tão comum às mulheres da sua época, o tino para os negócios, pois observamos isso quando ela diz: “... A palavra além de esquecer está sujeita a equívocos. Não seria possível tratar este negócio por escrito?” (ibidem, p. 28).

A personagem demonstra neste momento sua preocupação em relação ao cumprimento do que ela propõe, assim, mesmo que Seixas se arrependa, este não voltará atrás, pois terá como prova um documento escrito e também a sua palavra, portanto, faltar com esta naquela época era por a sua honra em dúvida, é o que observamos na declaração assinada por Seixas:

Recebi do Ilmo. Sr. Antônio Joaquim Ramos a quantia de vinte contos de réis como avanço do dote de cem contos pelo qual me obrigo a casar no prazo de três meses com a senhora que me for indicada pelo mesmo Sr. Ramos; e para garantia empenho minha pessoa e minha honra. (Senhora p.46)

Como já mencionado, receber um dote ao casar-se não era algo que classificaria um homem como interesseiro, indigno ou sem honra na sociedade da época, por isso receber tal dote não fazia de Fernando Seixas um mau caráter. Porém, as circunstâncias e as motivações que o levou a aceitar tal proposta é que qualificaria Fernando como um bom caráter ou não. Todavia, Alencar não nos deixa na incógnita, pois ele nos revela que tipo de homem era Seixas, ele diz:

Seixas era homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das salas, sua honestidade havia tomado essa têmpera flexível da cera que se molda às fantasias da vaidade e aos reclamos da ambição. Era incapaz de apropriar-se do alheio, ou de praticar um abuso de confiança; mas professava a moral fácil e cômoda, tão cultivada atualmente em nossa sociedade. (ibidem, p.47)

Nesse fragmento observa-se, portanto, que Seixas era um homem tido como honesto, porém com algumas fraquezas em seu caráter. Seixas era um moço de família humilde, porém apreciava as coisas boas e uma vida cheia de regalias, virtude essa que só os de famílias ricas podiam usufruir. Foi justamente por ostentar esse estilo de vida, que Seixas gastou todo o dinheiro de sua família e isso o induziu, ainda que um pouco receoso, a aceitar a proposta de casar-se com uma pessoa que nem se quer conhecia, mas da qual receberia um dote que lhe tiraria dos apuros financeiros ao qual se encontrava.

Destarte, aceitar casar-se em troca de um dote de cem contos de réis, e sem conhecer a identidade da noiva, significou para Aurélia uma prova e irrefutável do caráter de Fernando, e isso fez com que ela o classificasse como uma pessoa vendida e, portanto, de caráter duvidoso, vejamos as palavras da protagonista:

... Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento. (Senhora, p.65)

Assim, Aurélia se posiciona como soberana senhora, rainha a qual Seixas deve dedicação e respeito. Para tanto, ela deixa claro que o comprou e por esse motivo ele lhe deve abnegação e obediência. Desse momento em diante, Seixas por sentir-se humilhado decide cumprir a sua palavra e resignar-se ao seu papel de servo obedecendo e realizando todos os desejos de sua esposa. Podemos observar a resignação de Seixas na seguinte citação:

... Vendi-me; pertenço-lhe. A senhora teve o mau gosto de comprar um marido aviltado; ei-lo como o desejou. Podia ter feito de um caráter, talvez gasto pela educação, um homem de bem que se enobrecesse com a sua afeição; preferiu um escravo branco, estava em seu direito pagava com seu dinheiro, e pagava generosamente. Esse escravo aqui o tem; é seu marido, porém nada mais do que seu marido! (ibidem, p. 98)

Seixas deixa claro em suas palavras que ele será apena seu “marido” tal afirmação nos leva a entender que não haveria entre eles qualquer laço sentimental, apenas representariam, para a sociedade, um papel de um casal supostamente feliz.

Tal humilhação, desperta em Seixas um desejo incontrolável de redimir-se de seus atos. Dá início a partir de então, uma grande transformação em seu íntimo e costumes. A princípio ele passa a usar roupas mais simples sem muito requinte, porém elegante. Outro passo dado por ele foi guardar tudo que Aurélia havia lhe dado, entre esses estavam joias, pertences caros, e, além disso, abriu mão de algumas regalias que o casamento lhe trouxera como veremos na citação a seguir:

Aurélia abriu com suas chaves os móveis; e confirmou-se em sua conjectura. Tudo, jóias, perfumarias, utensílios de toucador, roupa tudo ali estava guardado em folha, como viera da loja... Que significação tem isso? murmurou a moça interrogando seu espírito. Parece desinteresse... Mas não! Não pode ser... Outro dia o carro; agora isto!... (ibidem, p.122).

Porém, desprender-se dos bens materiais não foi à única mudança de Seixas. A mais visível mudança presenciada por todos que o rodeava, foi tornar-se um trabalhador assíduo na repartição pública em que trabalhava. Até então, raras às vezes ele aparecia lá, mas agora; depois de casado e rico, ele trabalhava muito mais que antes, note as palavras de um colega de trabalho após constatação de tal fato:

Grande foi pois a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartição. Entrava pontualmente às 9 horas da manhã e saía às 3 da tarde; todo esse tempo, dedicava-o ao trabalho; apesar das contínuas tentações dos companheiros, não consumia como costumava outrora a maio pare dele na palestra e no fumatório. ... - olha, Seixas, que isto é meio de vida e não de morte! Dizia-lhe um camarada repetindo pela vigésima vez esta banalidade. (ibidem p.117-118)

Por essa razão, Seixas tornou-se motivo de muitas indagações, porém a verdadeira razão dele estar se empenhando tanto no trabalho se dava ao fato de Seixas querer devolver todo o dinheiro do dote a Aurélia, e assim, livrar-se daquele fardo que estava mortificando-o terrivelmente.

Aurélia, embora percebesse a mudança no marido, tornou-se mais e mais amarga e indiferente, pretendia separar-se do esposo com o intuito de restituir-lhe a liberdade que tanto almejava, pois não acreditava que Seixas fosse capaz de redimir-se de seus atos e amá-la sem reservas. Todavia, Seixas jamais aceitaria tal rompimento, pois se assim o fizesse não estaria honrando com sua palavra, haja vista que ele ainda não tinha a quantia para devolver a Aurélia.

Após aproximadamente um ano depois de casado ele recebe um pagamento que ao juntar a um valor que já tinha deu exatamente a quantia que necessitava para recuperar sua liberdade e dignidade.

Agora nossa conta, continuou Seixas desdobrando uma folha de papel. A senhora pagou-me cem contos de réis; oitenta em um cheque do Banco do Brasil que lhe restituo intato; e vinte em dinheiro, recebido há 330 dias. Ao juro de 6% essa quantia lhe rendeu 1:084$710. Tenho pois que entregar-lhe 21:084$710, além do cheque. Não é isto? (ibidem, p. 186)

A restituição do dinheiro acrescentado de juros é uma evidencia irrefutável da honestidade e dignidade de Seixas, mostrando assim que realmente não se casou única e exclusivamente por dinheiro, pois, se assim o fosse não estaria abrindo mão desse casamento milionário. Por tanto, embora as circunstâncias favorecessem o casamento por interesse, em seu íntimo o que fez unir-se de fato à Aurélia foi o amor que sentia por ela, pois mesmo tendo se separado por tanto tempo, ele nunca amara outra mulher senão Aurélia. Após receber o dinheiro e ouvir o que motivou Seixas casar-se com ela, Aurélia percebe que realmente ele o ama e declara-se para o único homem que amou.

Após essa análise podemos perceber que embora o hábito da sociedade doentia com seus costumes imorais, influenciasse bastante os personagens, o que prevalece, é o sentimento mais nobre que os homens podem ter que é o amor verdadeiro sem máculas e nem interesses. E mesmo que, a sociedade pregasse o casamento como uma instituição que visava o retorno financeiro o que prevalecia antes de tudo e principalmente no enredo de “Senhora” é: o casamento é sim, antes de tudo, um vínculo amoroso. Isso torna verazes as palavras de Antônio Candido (1982): “... O que prevalece é o amor romântico como força redentora e reintegradora, tanto do homem como da mulher, pela preservação da autenticidade dos sentimentos.”

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de, 1829 – 1877. Senhora/ José de Alencar – 13ª ed. São Paulo: Ática, 1985.

BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade: Reestruturação da ideologia de Gênero no Brasil. 1914-1940/ Suzan K. Besse; tradução de Lólio Lourenço de Oliveira – São Paulo: ed. DA Universidade de São Paulo, 1999.

CÂNDIDO, A. Castelo, J. A Presença da Literatura Brasileira: Das Origens ao Romantismo 11ª edição. São Paulo: Difusão Editorial S/A, 1982.

DEL, Priore Mary. A mulher na história do Brasil / Mary Del Priore 4ª ed. – São Paulo: Contexto, 1994. (Coleção Repensando a História)

MOISÈS, Massaud. A análise Literária. 6ª edição. São Paulo: Edit