O pensamento social na Amazônia na obra "A Selva" de Ferreira de Castro
Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de mostrar como se caracteriza o pensamento social na Amazônia a partir da obra ‘A Selva’, onde o autor Ferreira de Castro expõe sua visão a respeito da Amazônia e também das relações sociais existentes naquele ambiente. A obra citada trata-se de um romance, onde o autor relata sua experiência vivida no seringal nos anos de sua adolescência, através do personagem Alberto.
Palavras-chave: Subjetividade em A Selva. A Selva. Amazônia em A Selva.
INTRODUÇÃO
A obra A Selva de Ferreira de Castro traz em seu roteiro uma demonstração de parte da cultura e da história da Amazônia. Lugar de inúmeros dilemas ambientais e sociais, a Amazônia é abordada na obra supracitada, vezes como opressora e outras como um ambiente passivo de exploração e cenário de um conjunto de relações sociais baseadas na exploração.
Todo o conjunto de questões ambientais e sociais sempre foi o motivo para a ação de pesquisadores e estudiosos a respeito do cenário Amazônico, levando-os a refletir sobre as diversas maneiras de pensar e de se relacionar, existente na população daquele lugar. Sendo a obra A Selva uma grande fonte de percepções a respeito da Amazônia, já que a mesma se mostra como um diário de bordo do autor, onde o mesmo relata suas experiências e percepções do lugar e das relações ali vivenciadas por meio deste romance, ela representa uma grande contribuição como fonte de pesquisa para todos aqueles que pretendem conhecer e aprofundar suas ideias a respeito de tudo que foi e/ou é vivenciado naquele lugar.
A Selva traz uma visão contemporânea da Amazônia, tornando-se como um instrumento de grande importância para aqueles que, diferentemente de outros estudiosos que lançavam seus olhares para relatos de viajantes antigos, buscam aprofundar seus conhecimentos a respeito de uma realidade mais atual da Amazônia.
Pode-se observar em toda a obra a subjetividade, onde o autor expressa suas percepções e reações diante da grandiosidade do ambiente, através do olhar de Alberto, mostrando o que tudo aquilo representava para ele e como a natureza passava a ter vontade própria interferindo na maneira dos homens se relacionarem com ela e entre si.
Enquanto a Amazônia se revela de forma brutal e como opressora para os viajantes, exploradores e explorados que chegavam aos seringais com intuito de extrair dali riqueza, a obra vai mostrar que para os nativos da região ela é considerada como uma espécie de mãe, já que supre as necessidades alimentares dos mesmos e os dá também um certo tipo de proteção. A exploração como base das relações sociais existentes nos seringais é também um fator determinante para o comportamento do homem em relação Amazônia e para a formação do cenário social que existia naquele ambiente.
São essas diferentes maneiras de perceber a Amazônia que vão influenciar na formação do pensamento social de tal lugar, a partir de relações baseadas, na maioria das vezes, na produção, na exploração, no autoritarismo e no sentimento de opressão.
A AMAZÔNIA COMO OPRESSORA
Em alguns contextos sociais a Amazônia é considerada um tipo de ‘Eldorado’ por sua vasta riqueza natural e também pela grande possibilidade de ser explorada, transformando-se numa grande geradora de riqueza econômica.
[...] a Amazônia um imã na terra brasileira e para ela convergiam copiosas ambições dos quatro pontos cardeais, porque a riqueza se apresentava de fácil posse, desde que a audácia se antepusesse aos escrúpulos (p. 31).
Em A Selva, a Amazônia possui várias interpretações, incluindo uma onde ela é vista como uma força opressora altamente capaz de amedrontar aqueles que chegam e se surpreendem com a sua grandiosidade, para quem ela se mostra como um monstro, um ser que tem vontade própria e que é capaz de submeter o homem a essa vontade.
O autor mostra através do personagem Alberto (que assim como ele, era um europeu que chegava a Amazônia para trabalhar no seringal), a sua perplexidade diante da imensidão do cenário amazônico, repleto de uma variedade enorme de espécies, rodeado por um muro formado por ramos que, aos seus olhos representam encantamento, mas também um tipo de prisão.
Ao descrever a viagem de Alberto, o autor mostra a sua visão inicial da Amazônia, onde ele só conseguia ver as enormes palmeiras, que se assemelhavam àquelas de sua terra natal - Portugal.
Durante toda a viagem, o personagem faz uma breve comparação entre o que vê e sua pátria mãe, percebendo e relatando que as semelhanças quase não existiam. A densidade da vegetação não permitia que ele visse muito além do que foi dito. O autor fala também do seu espanto ao descobrir que as águas que ele via e pelas quais navegava não se tratava do oceano, mas sim que pertenciam a bacia hidrográfica amazônica.
Tudo se mostra como um grande mistério para o personagem central que, apesar da finalidade de sua viagem, consegue admirar a beleza do lugar formada pela natureza. Ao passo que vai chegando ao destino final de sua viagem, o personagem sente como se a imensidão da natureza só aumentasse, crescendo também a sensação de aprisionamento e de domínio da natureza sobre o homem.
Daquela bárbara grandiosidade e da sua estranha beleza, uma só forte impressão ficava: a inicial, que nunca mais se esquecia e nunca mais também se voltava a sentir plenamente [...] contemplada por fora, sugeria vida liberta num mundo virgem [...]; vista por dentro, oprimia e fazia anelar a morte (p. 85).
Tudo era sinônimo de medo diante daquela imensidão indecifrável. A sensação de terror era ainda maior quando o sol caia e a escuridão tomava conta do ambiente, somada ao silêncio que só cessava com o barulho dos animais.
Pode-se observar na obra, o determinismo. O autor observa a selva como fator determinante na caracterização do indivíduo que ali vivia. Ele se tornava cada vez mais selvagem , assim como o ambiente que o rodeava, cada vez mais embrutecido pelo condicionamento ao qual era submetido, tanto pelo fato de a natureza se tornar uma monotonia com o passar dos dias, quanto pelas relações sociais ali estabelecidas.
Os cearenses que chegavam à Amazônia eram alguns dos “prisioneiros da selva”. Eles vinham de áreas secas do sertão nordestino com a esperança de vida melhor e o que encontravam depois de uma longa e sofrida viagem era um cenário de trabalho árduo e muita exploração. Eles eram submetidos aos mandos e desmandos dos patrões, que se comprometiam a custear a viagem e a venda de alimentos nas vendas, porém a preços altíssimos. A partir daí estava criada uma bola de neve, uma dívida a qual os trabalhadores cearenses não conseguiam pagar e assim, tornavam-se ‘prisioneiros’ dos patrões dos seringais. Sem falar dos que se tornavam dependentes do álcool, ao qual recorriam como uma maneira de esquecer e superar todo o sofrimento que ali passavam.
Outro momento importante da caracterização da mata como um ser que possuía vontade própria, que era capaz de exercer domínio sobre o homem, é mostrado a partir da visão do caboclo Lourenço:
“Mas o tempo decorria e os que de começo, espalhavam energias, acabavam mostrando depauperamento; os que haviam trazido expressão de futuros vencedores,arrastavam-se depois como vencidos; e por um que regressava ao ponto de partida, quedavam ali,
para sempre, centenas de outros, esfrangalhados, palúdicos, escravizados ou mortos. A selva não perdoava a quem pretendia abrir os seus arcanos e somente esse homem bronzeado, de cabelo liso e negro, que nascera já renunciando a tudo e se comprazia numa existência letárgica, junto de copiosas riquezas, encontrava nela vida fácil” (Castro, 1997, p. 116).
Nesse trecho, pode ser observada a visão que o caboclo nativo da Amazônia tinha a respeito daqueles que chegavam com a intenção de explorá-la. Segundo ele, enganavam-se aqueles que chegavam ali com intenção de dominar a mata, abstraindo dali riqueza. Para ele a selva não se deixava dominar e os exploradores com o tempo iriam perceber isso e sairiam dali derrotados.
De fato, os que ali chegavam percebiam que sobreviver e explorar a selva seriam tarefas árduas. A variedade e ferocidade do clima causavam temor aos que não eram nativos da mata. Os rios transbordavam e explorar o seringal ficava impossível, pois as estradas se tornavam intrafegáveis.
“Nunca Alberto vira, no mundo já trilhado, maior fúria dos elementos turbilhonantes. Sob as rajadas, a selva cada vez arfava mais, rangia por toda a parte e dir-se-ia prestes a destruir-se a si mesma no imenso clamor. Era fantástica e alucinante no sinistro ulular, a que só punha pausa o estampido do trovão, abalando toda a terra” (p. 134).
A natureza determinava desde o comportamento dos homens, até as suas relações com ela, como por exemplo, o ritmo em que ele podia ou não explorá-la. O barulho da chuva deixava o personagem Alberto ainda mais deprimido e consciente de que ele estava aprisionado naquele lugar, e todo aquele verde, diferente do que significaria para outras pessoas, para ele era uma espécie de sufocamento e tirava-lhe toda esperança de qualquer tipo de libertação.
Pode-se observar a percepção social de Castro sobre a Amazônia, a partir da descrição que o mesmo faz, relatando que sobreviver àquelas condições só era possível aos que nasciam ali, pois estavam habituados desde criança à tais condições e, para os viajantes que ali chegavam a Amazônia seria um lugar detestável, impossível de se viver.
O AMBIENTE
Na obra A Selva, a floresta ganha vontade própria, contornos que a fazem atingir uma grande dimensão no livro, situando-se como um romance de espaço. Como o nome já indica, a selva é a estrela da obra alcançando e participando das ações de todos os outros personagens. Aqui selva está no sentido de conjunto geográfico, reunindo sua grandiosidade com animais e rios; árvores, flores e frutos; sombras e claridades, que embelezam e amedrontam quem as vê, desejando a fuga.
Muitas das figuras imaginárias da Amazônia, são retiradas do que ficou guardado na memória do escritor durante os quatro anos que morou na selva. Apesar de ser um romance recriado a partir da sua própria experiência vivida na floresta, o seu romance não deixa de ser uma denúncia do Brasil arcaico. Uma denúncia do crime cometido contra a vida dos seres humanos que eram escravizados por serem patrões; e como se não bastasse, ainda se tornavam vulneráveis prisioneiros da mata que os prendia em suas armadilhas naturais, transformando em presas fáceis e destruindo qualquer esperança de sucesso para aqueles que fugissem.
Ferreira de Castro buscou escrever um romance documental que contasse o drama dos homens trabalhadores da Amazônia, sem perder de vista os mistérios da floresta.
"Eu pretendia fugir a regra. Pretendia realizar um livro de argumento muito simples, tão possível, tão natural, que não se sentisse o argumento. [...]"
Sem dúvidas, a estética de Ferreira de Castro está voltada a trabalhar com a singeleza da palavra. Procurando recriar a naturalidade da fala em seus personagens. Na obra o escritor cria um protagonista alheio ao ambiente amazônico, para que possa passar por um confronto entre as suas ideias e o mundo novo que ele passava a conhecer.
A floresta que Alberto encontra no Brasil é muito diferente da floresta europeia, que ele conhecia, pois esta constituía-se apenas por uma única espécie de árvore e vista como um local para relaxar. Em contraste a floresta equatorial apresenta-se como opressora no seu mutualismo:
“A árvore solitária, que, na Europa, borda melancolicamente, campos e regatos, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como inimigo” (p.11)
Durante grande parte do romance, vê-se a mata através do olhar deslumbrado de Alberto, uma vez que este viera da Europa, encontrando na Selva um cenário totalmente diferente do que costumava apreciar em seu país.
A AUSÊNCIA DA FIGURA FEMININA
Na obra A Selva, percebe-se que tudo acontece longe da civilização, tudo acontece em meio ao nada, em meio a mata fechada, ao isolamento. É um trabalho árduo em que os homens dão suas vidas para ganhar o Pão a sustentar suas famílias. Para isso precisam abrir mão de diversas coisas, uma delas é a figura da mulher, pois em meio a mata fechada, ou seja, na Selva as poucas mulheres que haviam ali já tinham seus esposos. Porém, para se manter em tais condições de trabalho, conforme nos diz Ferreira de Castro, era preciso total ‘desumanização’. É notório no entanto, que por um lado, a ausência de elementos do sexo feminino dá azo ao eclodir, num lugar como este, dos mais bestiais impulsos nas bestas humanas como é o caso do personagem Agostinho, onde este na agonia de seus desejos sexuais chega a desejar uma criança de nove anos, do impulso de violá-la que acaba por vitimar o pai da criança a consequentemente a si próprio, uma vez que Agostinho, em meio ao desespero busca aliviar seus desejos através de sexo com animais. A princípio, o próprio Alberto, sendo este um homem civilizado, não aceita essa prática zoófila. Contudo, com o passar dos tempos em meio aquele ‘inferno’, Alberto acaba por entender o porquê de tamanha loucura sexual, a ponto de cometer os mais terríveis atos do desejo carnal.
Alberto na ânsia de seus desejos chega a desejar e até mesmo tenta seduzir a velha negra, uma outra personagem cujo nome era Nhá Vitória. Suas investidas amorosas não param por aí, outra vítima de seus impulsos é dona Yayá. Tudo fruto do excessivo isolamento a que é submetido. No auge do seu violento desejo por Dona Yayá, a única mulher branca naquelas paragens, Alberto chega a desejar a morte de Guerreiro, diretor da contabilidade dos negócios de Juca Tristão, seu chefe e amigo. Portanto, o desejo sexual, sendo este causado pela falta da figura feminina, era tamanho que era impossível a permanência durante muito tempo neste local, e se permanecesse os homens acabavam que em meio a alienação.
A ausência da mulher muitas vezes levava Alberto ao desespero, onde este acaba por aderir a prática sexual com os animais:
“ Mas ele cravava as unhas nas palmas das mãos, salivava constantemente e falava sozinho como nunca lhe contecera:
-Bolas! Bolas! Não está certo!Despiu-se logo que chegou ao quarto, pôs a toalha no ombro e, atravessando o pequeno quintal, colocou-se ao lado dos barris. Esgotou toda a água no banho longo e persistente, mas não conseguiu lavar-se da imensa repugnância que tinha por si mesmo.” (A Selva, 1972, p.75).
Percebe-se que a repugnância, logo após praticar sexo com animais deixa Alberto totalmente enojado, porém isso não o impede cometer novamente os mesmos erros.
Através do trecho, pode-se verificar que o homem é capaz de realizar determinadas atitudes que jamais imaginara. No caso, temos Alberto homem civilizado, de educação elevada em comparação a seus colegas no seringal, pois Alberto a princípio repudiava a ideia do zoofismo, porém, depois acaba praticando esse ato, blasfemando contra seus próprios princípios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como alvo conhecer a Amazônia em seu auge da borracha, sob o olhar da obra A Selva do escritor português Ferreira de Castro (1972), onde este mediante sua vivencia na Amazônia faz uma alusão da forma de trabalho desumano a qual os homens submetiam-se.
Em sua obra, Ferreira de Castro denuncia as situações insalubres as quais os trabalhadores eram obrigados a trabalhar. Estes homens, geralmente oriundos do nordeste brasileiro chegavam a Amazônia iludidos pelo sonho de enriquecer fácil, pois as promessas eram inúmeras, uma vez que a seca fazia parte do sofrimento dos nordestinos. Na tentativa de ‘subir na vida’, esses trabalhares vinham em busca de seus sonhos, todavia, quando chagavam no seringal viam que a realidade era outra, pois as condições de trabalho eram desumanas e o salário era péssimo. Portanto, mediante a realidade e uma dose de ficção que Ferreira de Castro elaborou uma de suas mais belíssimas obras A Selva.
Em suma, Ferreira de Castro ao publicar A Selva, cuja é uma obra que contém verossimilhança, em virtude de abordar fatos que ocorreram durante sua permanência na Amazônia no auge da borracha, vem defender os direitos humanos. Onde em sua obra através do personagem Alberto que o personifica na batalha dos trabalhares a lutar por seus direitos, por uma vida mais justa e igualitária. Encontramos em Ferreira de Castro por meio da obra A Selva, uma voz que grita, que denuncia as injustiças sociais sofridas pelos trabalhadores no seringal da Amazônia.
REFERÊNCIA
FERREIRA DE CASTRO, José Maria. A Selva. São Paulo: Verbo, 1972.