MARIO QUINTANA: NO CENTENÁRIO, UMA RELEITURA É BEM-VINDA

Neste ano, a obra e a vida de Mario Quintana estão em evidência, o que é definitivamente saudável num país de memória curta. Temos aqui um caso raro de convergência entre todos os tipos de leitores, editoras, escritores, mídia em geral, instituições culturais, todos imbuídos em fazer de 2006, o ano do centenário do poeta, um ciclo marcante nas letras gaúchas e brasileiras. O fato de se relembrar o poeta, por si só, já é auspicioso. Ver-se então uma unanimidade entre agentes culturais, destinatários da cultura, formadores de opinião, com um só movimento em torno da obra, divulgando-a permanentemente, é um fato ímpar no mundo da cultura.

Lembro-me de que quando coordenei os eventos do centenário de nascimento de Manoelito de Ornellas (1903-1969), as dificuldades foram imensas pelo desconhecimento em torno de sua obra, não obstante ter sido ele o impulsionador do Erico Verissimo escritor, além de ser um pesquisador e escritor portentoso. Assim, constatar o interesse existente em torno da obra quintanista é de recarregar as baterias da alma para qualquer um que milite no campo da cultura. Eu me sinto reconfortado.

O objetivo, percebe-se, é fazer com que o poeta seja o mais lido possível, projetando ainda mais sua imagem e sua obra. Hoje, ele é muito conhecido, como se pode perceber por manifestações que chegam diariamente do país e até do exterior, tendo como um dos destinatários o poeta Sérgio Napp, diretor da Casa de Cultura Mario Quintana. Mas é preciso que sua poesia seja lida e estudada cada vez mais, até para não se correr o risco de se dar o ocorrido com Alcides Maya, que era um autor “mais citado do que lido”, no dizer do crítico literário e historiador Moysés Vellinho.

Sérgio Napp, por sua vez, entende que o ano do centenário de Mario Quintana deve servir para lançar novas luzes sobre sua obra, descortinando a densidade da sua poesia, que sofre o estigma de ser ingênua e superficial. É preciso que a poesia quintanista seja visível a olho nu como ela realmente é, com sua fina ironia e mordacidade, mas com uma profundidade que não é para desavisados. Sua obra é plena de sutilezas, de plurissignificação, de um humor rarefeito sobre o cotidiano, de um enfoque particular e exauriente de temas universais como o amor, a solidão e a efemeridade das coisas. Napp tem um interesse particular em abrir as portas da universidade para a poesia de Quintana, rompendo com preconceitos que a seara da academia apresenta, ainda que dissimulados, com a obra do “bom velhinho”, que fazia poemas fáceis e se encantava com as moças. A intelectualidade tem que reler Mario Quintana, sob pena de pagar penitências para a posteridade.

Napp lembra que Quintana nunca se apegou a rótulos ou a escolas. Quando todos os poetas desembarcavam do soneto, numa era pós-Guilherme de Almeida, ele lançou um livro de sonetos. Sempre remou contra a maré. Mas nunca se propôs a agradar a gregos e troianos. Fazia o que entendia bem. E nunca foi de granjear admiradores e divulgadores à custa de bajulações. Nem precisava. Mas os teóricos não gostam disso. Eles querem se sentir necessários. São como um eunuco que lança um manual de sexo.

Ainda na linha da revisitação, podemos lembrar o poema Da vez primeira..., que o aproxima de ícones da poesia pessimista e desencantada, como o simbolista Augusto dos Anjos e o romântico Álvares de Azevedo, expoente do mal-do-século. Nele vamos encontrar o difícil aprendizado do anjo Quintana confinado na terra.

Da vez primeira...

Da vez primeira em que me assassinaram,

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...

Depois, de cada vez que me mataram,

Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada...

Arde um toco de vela, amarelada,

Como único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!

Ah! desta mão avaramente adunca,

Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!

Que a luz, trêmula e triste como um ai,

A luz do morto não se apaga nunca!

Nesse poema, vemos o poeta sendo desiludido da vida a conta-gotas pela própria vida. É como se se reafirmasse o vaticínio literal de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. A ciência dá conta da navegação, mas nada é exato quando se trata de viver. “Viver é muito perigoso”, já dizia Guimarães Rosa pela voz de Riobaldo. Assim, o poeta vai perdendo sua ingenuidade pelos desvãos dos acontecimentos pesarosos. Mas é possível imaginar Quintana sem sua doce ingenuidade? Sem sua rua, sua nuvem, sua nesga de céu? Sim, porque há muitos Quintanas, como poderão perceber os leitores mais diligentes. O poeta é múltiplo e seus dramas e Quintanas internos habitam seus versos, ora suaves, como uma brisa, ora densos, como uma tormenta interior. O homem que habita o poeta por muitas vezes dita-lhe o rumo. O poeta não psicografa apenas alegrias e descrições, mas também angústias e desilusões.

Neste centenário do poeta, é preciso estar alerta para, além de ler Quintana, reler e revisitar sua obra. Seus poemas estão por aí, vivos, à espera dos leitores, pulsantes para avivar imaginações e desfazer estereótipos. São sua herança, seus organismos vivos para nos brindar com a presença do autor. Cada poema é um fragmento de sua autobiografia. É sua vida que se entrelaça com a nossa. Mario Quintana não é um bom velhinho da poesia, mas um homem que viveu intensamente vidas imaginárias e a sua própria vida, sem distinções. Cem anos depois, o poeta renasce em cada verso.

Revista Direito & Avesso, do Sintrajufe, 2006.

Veja também:

www.cursodeportugues.zip.net

(Curso de Português)

www.megalupa.zip.net

(Jornal Megalupa)

Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 06/03/2012
Reeditado em 10/03/2012
Código do texto: T3538517
Classificação de conteúdo: seguro