INVOCAÇÕES DO LARGO DA FORCA
Na pacata e bucólica Porto Alegre dos anos 30 do século XIX, tinha vez um espetáculo de horror capaz de mexer com os nervos da Província e da civilização. Cerca de duas dezenas de negros transgressores tiveram as parcas vidas abreviadas pela forca no lugar hoje conhecido como Praça da Harmonia. Uma demão na história para expiar culpas.
Uns dias antes do trágico evento, o Largo da Forca, então um extenso capinzal, era limpo e preparado. O infeliz ficava sabendo da sentença de execução e, desde seu anúncio, sua manutenção ficava a cargo dos irmãos da Misericórdia. Aliás, então, numa compensação eufemística e tardia, sua alimentação melhorava, liberavam-se-lhe as visitas e ele recebia pão-de-ló e até vinho do Porto.
No dia da execução, formava-se o funesto cortejo que o conduziria ao patíbulo. Ladeado por um sacerdote, por um sacristão com a bandeira da Misericórdia, pelos soldados e por um meirinho, o qual alardeava que se "iria executar a sentença", o condenado, exposto à curiosidade pública, era conduzido para missa de corpo animado e ainda fremente na Capela dos Passos, "regalia" que recebia consternado.
Logo após, a comitiva retomava seu rumo sinistro. Sob os dobres dos sinos das igrejas, vinha descendo a Rua da Praia, hoje Andradas, até chegar ao local da forca. Lá esperavam o juiz da execução, o escrivão de Justiça, o carrasco, além de escolares e de negros cativos, levados ao local com o didático fim de constatarem que o mal não compensa. Mais tarde, levariam corretivos próprios. Dividiam espaços com a turba ávida de sangue e de desgraças alheias.
Lida a sentença, com o réu de cócoras frente a um crucifixo, ele era alçado ao cadafalso, vestindo largo casacão de algodão branco, com mãos amarradas. Um sacerdote rezava o Pai-Nosso, cujo final era a senha para o carrasco colocar o pé nas mãos manietadas e forçar os ombros da vítima para baixo, valendo-se de seus pesos. Ele estrebuchava, com olhos catapultados das órbitas, num balouçar desesperado, até silenciar para sempre o último fio de vida.
O lugar, dizem, teria ficado depois por muito tempo assombrado pelas almas desses errantes do outro mundo. Em 1857, realizou-se ali a última execução, a do pardo Florentino, que matou seu senhor Antônio Soares de Almeida Leães. Após a morte de um inocente, o imperador Dom Pedro II proibiu esse tipo de execução. Assim, o Largo da Forca ficou perdido em algum escaninho da instável memória dos homens, que vive de lembrar e, por vezes, de esquecer.
Correio do Povo
Porto Alegre - RS - Brasil, 3/11/2005
(Imagem tristemente ilustrativa)
Na pacata e bucólica Porto Alegre dos anos 30 do século XIX, tinha vez um espetáculo de horror capaz de mexer com os nervos da Província e da civilização. Cerca de duas dezenas de negros transgressores tiveram as parcas vidas abreviadas pela forca no lugar hoje conhecido como Praça da Harmonia. Uma demão na história para expiar culpas.
Uns dias antes do trágico evento, o Largo da Forca, então um extenso capinzal, era limpo e preparado. O infeliz ficava sabendo da sentença de execução e, desde seu anúncio, sua manutenção ficava a cargo dos irmãos da Misericórdia. Aliás, então, numa compensação eufemística e tardia, sua alimentação melhorava, liberavam-se-lhe as visitas e ele recebia pão-de-ló e até vinho do Porto.
No dia da execução, formava-se o funesto cortejo que o conduziria ao patíbulo. Ladeado por um sacerdote, por um sacristão com a bandeira da Misericórdia, pelos soldados e por um meirinho, o qual alardeava que se "iria executar a sentença", o condenado, exposto à curiosidade pública, era conduzido para missa de corpo animado e ainda fremente na Capela dos Passos, "regalia" que recebia consternado.
Logo após, a comitiva retomava seu rumo sinistro. Sob os dobres dos sinos das igrejas, vinha descendo a Rua da Praia, hoje Andradas, até chegar ao local da forca. Lá esperavam o juiz da execução, o escrivão de Justiça, o carrasco, além de escolares e de negros cativos, levados ao local com o didático fim de constatarem que o mal não compensa. Mais tarde, levariam corretivos próprios. Dividiam espaços com a turba ávida de sangue e de desgraças alheias.
Lida a sentença, com o réu de cócoras frente a um crucifixo, ele era alçado ao cadafalso, vestindo largo casacão de algodão branco, com mãos amarradas. Um sacerdote rezava o Pai-Nosso, cujo final era a senha para o carrasco colocar o pé nas mãos manietadas e forçar os ombros da vítima para baixo, valendo-se de seus pesos. Ele estrebuchava, com olhos catapultados das órbitas, num balouçar desesperado, até silenciar para sempre o último fio de vida.
O lugar, dizem, teria ficado depois por muito tempo assombrado pelas almas desses errantes do outro mundo. Em 1857, realizou-se ali a última execução, a do pardo Florentino, que matou seu senhor Antônio Soares de Almeida Leães. Após a morte de um inocente, o imperador Dom Pedro II proibiu esse tipo de execução. Assim, o Largo da Forca ficou perdido em algum escaninho da instável memória dos homens, que vive de lembrar e, por vezes, de esquecer.
Correio do Povo
Porto Alegre - RS - Brasil, 3/11/2005
(Imagem tristemente ilustrativa)