O SORTILÉGIO DAS PALAVRAS
Já está, por certo, bem assentada entre os filósofos a idéia de que a mediação entre o homem e o mundo é dada pela linguagem. Na esteira da filosofia analítica, só existe o que pode ser dito, o que pode ser nomeado. É por isso que a palavra se constitui num poderoso instrumento para "mudar" o mundo, um mundo que é fático, externo, mas de uma tessitura de signos lingüísticos que o encobre e o recobre, como a carapaça de um quelônio.
Da linguagem em geral derivam idiomas, línguas e dialetos. No RS, temos o privilégio de um idioma, o português; de uma língua, sua realização particular em terras brasileiras; e de um dialeto, o gaúcho, de vocábulos, prosódias e brocardos peculiares e sonoros.
Desse dialeto particular, avultam termos usados predominantemente por falantes de determinadas regiões, de escassos registros ou de existência puramente oral. Na região da campanha, por exemplo, englobando Alegrete, Uruguaiana, Itaqui, São Borja, Santiago, são pródigos termos como "canchear" (admoestar), "cristear" (enganar), "canhar" (mesquinhar), desconhecidos nos demais recantos do Estado. Acresço, ainda, aleatoriamente, o termo "chueco" (algo como "estragado"), que nunca vi registrado em dicionário algum.
Tais reflexões acerca das palavras me vieram a propósito da luta quixotesca do músico e compositor Washington Gularte, uruguaio aqui radicado. Este poeta armou-se e enamorou-se de um neologismo e tem desafiado dragões e corsários, mares e desertos, para levá-lo aos ouvidos de sua musa. Até onde irá, só o sortilégio que reveste a sorte e a vida das palavras poderá dizê-lo.
E qual é a criação de sua pena e gênio que o tem impelido a tantas batalhas e cruzadas de temerária sorte? É a palavra "sureado", que vem de "sul", o mesmo Sul de Sérgio Jacaré, de Jorge Luís Borges ou de Roberto Goyeneche. Para ele, assim como "oriente" gerou "orientado" e "desorientado" e "norte" plasmou "desnorteado", há uma acepção à espera de "sul", que viria a ter o sentido de "fraterno", "solidário", "irmanado", enfim, "sureado".
Já disse o escritor Adolfo Bioy Casares que as mulheres e os gatos vêm quando não os chamamos. Dessa rebeldia partilham as palavras. E elas têm o condão de escolher seu sedutor. Os poetas que o digam.
Correio do Povo
Porto Alegre - RS - Brasil
PORTO ALEGRE, SÁBADO, 29 DE MAIO DE 2004.
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(Curso de Português)
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(Jornal Megalupa)