CIGANO – MEU CÃO HERÓI 
Sandra Fayad
 
De todos os animais domésticos, os cães são sem sombra de dúvida os que mais estão presentes na minha vida.
Quando eu estava com menos de dois anos de idade, tiraram uma foto em preto e branco, onde apareço sentada no chão batido da fazenda, com toda a atenção voltada para uma cadela de pelos lisos, que eu acariciava.
Aos sete anos ganhei um pastor alemão, a quem dei o nome de Cigano. Quando ele chegou, era tão pequeno que o coloquei para dormir na caixa dos meus sapatos. Lembro-me bem que ficava ansiosa pelo término das aulas, para que pudesse correr para casa e passar o resto do dia cuidando e brincando com ele.
Mal podia imaginar o futuro que o destino nos reservava.
Cigano cresceu logo e transformou-se em um enorme cão valente. Seu pelo amarelo contrastava com o focinho e as orelha pretas. Era ágil. Seu latido estrondoso não assustava a criançada da rua, de quem era realmente o maior amigo. A partir dos quatro meses passou a morar no abrigo da lavanderia, no quintal cercado por muros altos e um portão que dava para a Avenida Vinte de Agosto, ao final do estreito corredor lateral interno, que ficava à direita da casa, por onde também parecia impossível que saísse. Como no quintal havia espaço suficiente para que ele corresse à vontade eu evitava levá-lo para a rua, pois temia que mordesse algum desconhecido.
Naquela época, a única agência do Banco do Brasil existente em Catalão funcionava em um prédio recuado em relação à Avenida Vinte de Agosto, logo abaixo de onde fica hoje a principal agência do mesmo Banco. A porta de acesso aos clientes era voltada para a perpendicular Rua Coronel Afonso Paranhos, de forma que o atendimento ao público se dava na esquina também perpendicular àquela Avenida, a Principal da cidade. No andar superior do prédio havia um apartamento, onde moravam o gerente e sua família. Aos fundos, no térreo, havia mais um ou dois quartos para empregados, garagem e depósito. Os ocupantes desses cômodos entravam pela parte lateral, a partir de um pátio com algumas árvores altas de copa generosa e folhagem miúda, sob as quais costumávamos brincar. O meio-fio do pátio o separava do calçamento da Vinte de Agosto. Do outro lado da rua ficava a casa do padrinho João Fayad, onde eu e o Cigano também morávamos. As casas do Sr. Democh e do Professor Chaud à direita e as do tio Adib Elias e de Dona Kafa à esquerda -ambas voltadas para a antiga Prefeitura (hoje Fórum) -  compunham o restante da vizinhança mais próxima. Resumindo, de um lado da Avenida estavam os prédios e do outro as cinco casas mencionadas, sendo que a nossa era a do meio. 
Certa noite o Cigano, já com mais de três anos, ficou inquieto. Latia muito, corria desde o quintal até o portão, como se desejasse ganhar velocidade para ultrapassá-lo. Já acordados, percebemos, em um determinado momento que ele havia atingido seu intento. Ganhara a rua em disparada. Diante disso, meu padrinho e os vizinhos imediatamente se puseram de pé e saíram em grupo em direção aos latidos, empunhando seus revólveres. No meio da marcha, ouviram também a empregada doméstica do gerente gritando:
- Socorro! Tem ladrão aqui. Tem ladrão aqui.
Chegando lá, acalmaram-na e continuaram a marchar até a porta principal do Banco. Pararam estupefatos  diante de uma cena extraordinária, que se desenrolava dentro da agência. Estavam ali caídos e assustados três marginais literalmente rendidos pelo Cigano, que os impedia de se moverem para qualquer dos lados. Observaram que suas bolsas e bolsos mostravam parte das cédulas subtraídas do cofre do Banco. Apanhados com a “boca na botija”, foram parar no xilindró, naturalmente.
Nem é preciso dizer que meu CÃO passou a ser o herói da cidade. A novidade se espalhou pela região. Fiquei muito orgulhosa dele, pois vinha gente de longe só para ver o Grande Astro.
Lamentavelmente, meses depois percebi que Cigano não estava bem. Olhar vidrado, vômitos, prostração, gemidos. Na cidade nem havia veterinário na época. Mas os mais velhos entenderam logo do que se tratava, enquanto eu tentava reanimá-lo em vão. O padrinho João aproximou-se de mim sisudo e sentenciou:
- Você vai ter que se conformar, minha filha. Deram “bola” (*) para o Cigano! Ele está morrendo. Não tem mais jeito.
- Mas quem fez esta maldade? Quem, se todo mundo gosta tanto dele?
Ao que ele respondeu:
- Deve ter sido um daqueles malditos ladrões. Eu soube que eles foram soltos e que um dos bandidos rondava a casa há dois dias. Ah, se eu pego novamente aquele sujeito!


(*) “Dar bola” é uma expressão popular que significa “envenenar” premeditadamente o animal.
 
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Chegaste como um bebê pequenino
Inserido em uma caixa de sapatos,
Genuíno negro e dourado canino!
Aprendeste logo a espantar gatos.
Não te enganava nenhum ladino
Ou sob disfarce de humanos-ratos.
 
Mordias-lhes as pernas e as panturrilhas.
Enfiava-lhes ainda os dentes nas nádegas.
Urravam para não lhes comer as virilhas.
 
Colocaste os assaltantes detrás das grades
Aclamava-te por valente e heróico feito
O povo, que peregrinava de outras cidades.
 
Havia comemorações até do prefeito,
Embora a justiça oferecesse facilidades,
Revertendo às ruas quem fez o malfeito.
Organizaram com criminosa habilidade
Invento mortal para o meu herói perfeito.
 
Obs.: Este texto faz parte do livro "Animais que plantam gente", de Sandra Fayad, pág. 38/41,  editado em 2008 e revisado em 2015 (ver mais em www.sandrafayad.prosaeverso.net)
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 19/01/2007
Reeditado em 25/10/2020
Código do texto: T352678
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