O Poeta Cordelista Manoel Monteiro Fala Sobre O Racismo No Cordel E Incorre Num Deslize Racista
Li no Blog CORREIO DAS ARTES uma matéria do Poeta Manoel Monteiro e resolvi comentá-la aqui.
Considero Manoel Monteiro o maior cordelelista da atualidade brasileira. Cabe principalmente a ele o mérito de levar as "elites" a reconhecerem o valor artístico do trabalho do poeta popular, "divulgando-o na escola fundamental, na universidade, com temas à educação popular e entretenimento do povo, como saúde, meio ambiente, história, biografia, jornalismo, indústria, comércio, comportamento humano e outros temas contemporâneos"
Reconhece, e lamenta, ter sido a Poesia de Cordel, durante muito tempo, um terreno fértil onde grassava o preconceito racial. Em suas palavras:
"Já vai um bom tempo em que contar piada sobre o negro era engraçado. Os versos: 'Nega do cabelo duro/qual é pente que te penteia", certamente hoje não seriam escritos. Os tempos mudam e é bom quando mudam para melhor. Na literatura de cordel também a cor da pele foi, por muito tempo, motivo de galhofa. Nós brincávamos com a negritude brasileira, sem nenhum remorso, porque o público gostava disso. Fomos educados a assemelhar negro versus inferno, negro e ruindade, negro à feiúra'
"Os poetas populares, os cordelistas, se utilizavam desse humor negro (estão vendo?) para compor obras humorísticas".
Cita vários exemplos de poetas que fizeram "gracejos" com os negros:
José Pacheco:'Morreram cem negros velhos/ Que não trabalhavam mais...// E, logo à frente, "Satanás disse: - Isto é nada!/ Convide aí a negrada// E leve os que precisar,/ Leve cem dúzias de negros/ Entre homem feito e mulher.../ E reuniu a negrada...// Como é sabido: Houve grande prejuízo/ No inferno nesse dia/ Queimou-se todo dinheiro/ Que Satanás possuía,/ Queimou-se o Livro de Pontos/ E mais de seiscentos contos/ Somente em mercadoria'.
"Duas coisas ficamos sabendo, uma que Diabo é da raça negra, outra, que o facínora Lampião, de tão ruim, foi barrado nos portais do inferno. Ainda o Pacheco no cordel a Peleja do Cantador de Coco com o Diabo diz" : 'Eu fui cantar/ Na feira de Repelegra/ Apareceu uma negra/ Dos olhos da cor de breu...// Quando a negra/ Me disse que/ era o Cão/ Caiu-me o ganzá da mão/ Todo o corpo me tremeu...//'
"Para o poeta José Pacheco não restam dúvidas de que Cão e negro têm muita similitude"
Costa Leite: "No cordel O Embolador de Coco com o Diabo, o poeta Costa Leite também dá ao seu coquista endiabrado a identidade de um negro, não satisfeito, escreve A Briga de Antônio Silvino com o Negro de um Braço Só e A Luta de Antônio Silvino com a Negra Dum Peito Só. Haja negro defeituoso! O prolífero Zé Costa Leite tem outros títulos personificados por negros, entre os quais A Negra Velha da Trouxa Montada no Bode Preto"
Leandro Gomes de Barros: "são muitos, pois, os autores que, sem nenhum constrangimento, usam a cor da pele para comporem seus "livros engraçados" (engraçados?), o grande Leandro Gomes de Barros não fica fora desse rol de mau gosto. Leandro Gomes de Barros escreveu uma das mais famosas estórias do gênero: A Peleja de Riachão com o Diabo. Manoel Riachão é paraibano de Araruna, e o Diabo, seu adversário nessa cantoria fictícia, é descrito pelo mestre Leandro desta forma: 'Riachão estava cantando/ Na cidade de Açu/ Quando apareceu um negro/ Da espécie de urubu/ Tinha a camisa de sola/ E as calças de couro cru.// Beiços grossos e virados/ Como a sola de um chinelo/ Um olho muito encarnado/ O outro muito amarelo,/ Este chamou Riachão/ Para cantar um Martelo.// Riachão disse: - Eu não canto/ Com negro desconhecido/ Porque pode ser escravo/ E anda por aqui fugido/ Isso é dar cauda a nambu/ E entrada a negro enxerido.// Por essa amostra se ver como foi acalorada a discussão dos dois.
"Horas mais tarde, depois de muita troca de desaforos" 'O negro olhou Riachão/ Com os olhos de cão danado/ E Riachão gritou: - Jesus, / Homem Deus Sacramentado!/ Valha-me a Virgem Maria,/ A Mãe do Verbo Encarnado!// O negro soltando um grito/ dali desapareceu./ De uma catinga de enxofre/ A casa toda se encheu/ Os cães uivaram na rua/ O chão da casa tremeu...//'.
Firmino Teixeira do Amaral: "Há também do mesmo estilo, outro livreto famoso escrito por Firmino Teixeira do Amaral, trata-se da famosa Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, cantadores que realmente existiram. Nessa Peleja, a falta de visão de um cantador e a cor da pele do noutro repentista, servem de mote para o embate verbal que a imaginação do poeta Firmino põe na boca dos contendedores. Neste caso não se pode falar de racismo ou preconceito, pois é um caso típico de ofensas mútuas.
Vejam: quem começa a cantoria é o poeta Zé Pretinho com essa tirada": 'Sai daí cego amarelo/ Cor de couro de toucinho/ Um cego de tua forma/ Chama-se abusa vizinho/ Aonde eu botar os pés/ Cego não bota o focinho.// O Cego Aderaldo, diplomata, por um certo tempo reluta de entrar em confronto, mas, no quarto repente dispara: "Este negro foi escravo/ Por isso é tão positivo/ Quer ser na sala de branco/ Exagerado e ativo/ Negro da canela seca/ Todo ele foi cativo.//'
"O duelo Cego Aderaldo e Zé Pretinho esquenta quando os cantadores passam à - redondilha menor - (pentassílabo) e o Pretinho assaca": 'No sertão eu peguei/ Um cego malcriado/ Danei-lhe o machado/ Caiu, eu sangrei/ O couro eu tirei/ Em regra de escala/ Espichei numa sala/ Puxei para um beco/ Depois dele seco/ Fiz mais duma mala.// Aqui o Cego perde a esportiva e apupa: "Negro, és monturo/ Molambo rasgado/ Cachimbo apagado/ Recanto de muro/ Negro sem futuro/ Perna de tição/ Boca de pilão/ Beiço de gamela/ Venta de moela/ Moleque ladrão...//'
O poeta Manoel Monteiro comenta:
"Fazer graça com o diferente
Essa troca de 'amabilidades' entre cantadores porfiando é o que fazia o sucesso do espetáculo. Nessa época as palavras preconceito e racismo não eram aventadas com a freqüência de hoje, embora, existissem. Como estamos vendo, a presença do negro na literatura de cordel, quase sempre, tem o propósito de levar o personagem ao ridículo. De minha parte, não aplaudo essa conduta infeliz. Fazer graça com o diferente é de péssimo gosto artístico e reprovável em todos os sentidos. E, mesmo assim, seria diferente o branco do amarelo? O amarelo do cafuzo, o cafuzo do preto? Não.
Todos somos iguais perante a Lei, diz a Constituição".
Manoel Monteiro comenta ainda:
"Para não dizerem que só falei de espinhos (parafraseando o poeta) no cordel A Revolta dos Pretos - das Putas - dos Gays - dos Pobres... lembro que as chamadas minorias, em verdade, constituem a maioria do povo brasileiro e clamo: "Moreno, zambo, mestiço/ Gazo, ruzagá, mulato/ Branco, preto e correlato/ O Brasil é feito disso,/ Soma os ritos do feitiço/ Aos do cristianismo,/ Todo esse sincretismo/ Por negro e índio é formado./ Quem é tão miscigenado/ Não pode ter elitismo.// A servidão continua/ Hoje bem mais ampliada/ A Mãe Preta é renegada,/ Preto Velho ganha a rua/ Expondo a miséria sua/ Na condição de mendigo,/ Faz das marquises abrigos/ Dos trapos, forros de cama,/ Revivendo o mesmo drama/ Que viveu no tempo antigo.// Ouçam que soa nos ares/ Com a mesma intensidade/ O grito de liberdade/ Que ecoou nos Palmares/ Ressuscitando avatares/ Para prosseguir na luta/ Numa busca resoluta/ De dar-se aos povos cativos/ DIREITOS eqüitativos, LIBERDADE absoluta!"
Quero chamar a atenção de que a arte é apenas a transfiguração do real, dos fatos da sociedade para a ficção, para uma realidade (re)criada pelo artista. A mentalidade de cada momento é captada e registrada pelo artista. Daí não necessitar o poeta Manoel Monteiro lamentar tanto o fato da poesia de cordel levar para os versos aquilo que era a realidade social. Também desejo ressaltar que não é justo nem pertinente avaliar ou julgar o passado sob a ótica do presente.
Com a conscientização de que as raças humanas em nada se diferenciam uma das outras a não ser pelo detalhe da cor e de outros aspectos fisionômicos desimportantes. De que, portanto, na essência somos iguais. E que, por isso, devemos ter direitos civis e políticos iguais (universalização da cidadania). Com o advento do conceito do "politicamente correto" (embora, muitas vezes, falso) e com a criação de leis antirraciais, mudamos a mentalidade (embora não totalmente). E é essa nova mentalidade, considerando também as penalidades previstas contra o racismo, que será levada para as artes.
"Moreno, zambo, mestiço/ Gazo, ruzagá, mulato/ Branco, preto e correlato/ O Brasil é feito disso,/ Soma os ritos do feitiço/ Aos do cristianismo,/ Todo esse sincretismo/ Por negro e índio é formado./ Quem é tão miscigenado/ Não pode ter elitismo.//
O que desejo é chamar a atenção para esse dois versos de Manoel Monteiro:
"Quem é tão miscigenado/ Não pode ter elitismo.//"
Pergunto: Por que quem é miscigenado não pode ter elitismo? Na afirmação de Monteiro fica implícito que o puro racialmente, este, sim, tem direito a ser elite!
Da mesma forma que os miscigenados não têm direito, por ser miscigenados, a serem considerados elites, os de raça pura (existem?) também não o têm.
Na época "áurea" do racismo, em que o branco europeu era tido como raça superior, muitos intelectuais (assim mesmo, sem aspas) do Brasil lamentavam o melancólico destino a que ao Brasil estava destinado por ser ele "um caldeirão racial".
Depois, Gilberto Freyre (sobretudo na sua Casa Grande e Senzala) e outros pensadores brasileiros passaram a valorizar a tal "democracia racial" como um trunfo para o desenvolvimento do Brasil. Tratava-se de outro equívoco: O racismo às avessas.