Literatura: a realidade e a real irrealidade
“É obrigação do escritor procurar fidelidade entre o que diz em sua obra e os acontecimentos da realidade existencial?”
Há uma pergunta e me interessou comentá-la e tentar, de alguma maneira, respondê-la. Não diria que está mal formulada, mas que precisaria ser mais específica. Para início de considerações, cabe tratar da palavra escritor, aquele que escreve. Definição verdadeira, mas também nada tem de específica. Trata-se de uma afirmação abrangente e que coloca todos que escrevem na condição de escritor. Há sempre pessoas escrevendo por toda parte. Os jornalistas escrevem diariamente; há médicos escritores. Tanta gente há que escreve e no momento em que escreve é um escritor, mas não rigorosamente.
A pergunta que encima esta página tem a ver com uma aula de Teoria da Literatura. Então, creio que esta denominação de disciplina merece uma especificação da questão proposta. Será que o professor de Teoria da Literatura não sabe disto? Claro que sabe! Entretanto, o que aconteceu na formulação da pergunta foi algo comum e natural: transportar a marca da oralidade para o texto escrito. A pessoa pensa, não diz o que pensa de forma completa e pensa que o leitor está lendo o seu pensamento. Ou seja, entende-se nas entrelinhas e sem segurança. E daí surge a falta de clareza em um texto. Por sua vez, o texto sobre Teoria da Literatura não é texto literário, mas um texto sobre a teorização da literatura. E nem todo mundo que escreve é, rigorosamente, escritor.
Acontece que o professor de Teoria Literária, possivelmente, desejaria perguntar aos seus alunos se “é obrigação do escritor de textos literários procurar fidelidade entre o que diz em sua obra e os acontecimentos da realidade existencial?”. E, então, sabe-se que tal tipo de escritor é justamente aquele que escreve romances, novelas e outros. De forma especial e distinta, o escritor poeta. Tanto o que escreve ficção quanto o que escreve poesia são produtores de textos literários. Alguns itens qualificam ou desqualificam o escritor, mas não os destitui dessa condição.
Os textos literários têm uma preocupação primordial, a palavra, o Belo literário conseguido com a palavra. Nesse ponto há uma zona de turbulência porque o escritor tem uma noção de beleza literária, o leitor tem outra e o crítico acredita que ele é quem sabe e que só ele pode dizer o que é realmente o Belo. A contenda se amplia porque a massa popular tem um gosto e dentro daquele seu padrão de gostar é que ela resolve que livro quer comprar e ler. As editoras, por sua vez, não querem investir no seco e, só têm interesse em publicar aquilo que vende. E para embolar mais o meio de campo, a maioria pensa que o que mais vende é realmente o melhor. Se não se vende e não se lê, como resolver?
Retornando à primeira pergunta, sabe-se que tudo que fazemos e escrevemos tem a ver com a observação do mundo real, do cotidiano. A grande diferença entre o que escreve um jornalista e o que escreve um romancista ou um poeta é justamente a forma, a abordagem e o ponto de vista pelo qual esses escritores captam a realidade e produzem suas obras.
O jornalismo forma profissionais que, em tese, devem ter compromisso com a verdade dos fatos e, além disto, usem uma linguagem clara, precisa, coerente, coesa e objetiva. A informação correta é a meta de um jornalista. E por causa disto ele não teria direito de literalizar o seu texto? Quem disse tal coisa? Tem, sim, o direito de usar metáforas, por exemplo, contanto que não comprometa a veracidade da informação. Entretanto, lanço outra pergunta: será que os leitores de jornais acreditariam em uma notícia sobre um acidente aéreo narrada em trovas?
Eu não disse que o escritor de textos literários está dispensado de ser claro, preciso, coerente, coeso e objetivo. Ele deve, sim, ter todas estas qualidades em sua produção textual, desde que, a partir delas construa beleza literária. Desde que provoque impactos de estética e arrebatamento de sentidos.
O escritor de textos caracteristicamente literários é, a exemplo de Salvador Dalí na pintura, um criador de mundos, de realidades e de sentidos. Capitu é uma personagem, mas quem poderia apostar que Capitu, Bentinho, Dona Flor e seus dois maridos, Brás Cubas, O menino maluquinho e tantos mais não foram criados a partir de alguém muito real? Acontece que, o criador do personagem tem toda a liberdade de modificá-lo apesar de que, em alguns casos, acontece o inesperado: o personagem se torna autônomo e não espera mais pelas decisões de seu criador. Passa o personagem a viver e agir por conta própria.
E quanto ao mundo real? Consideramos este em que vivemos o mundo real, o mundo da família, do trabalho, da guerra e de alguns momentos de paz. Certa vez, acredito que foi no ano de 1974, li em uma revista de Buenos Aires a seguinte frase: “Hay otros mundos, pero están en éste”, do poeta francês Paul Élouard. Gostei demais de ler tal frase e acabo de conferir que a minha memória está bem, pois pesquisei e encontrei na Internet frase e autor.
A frase de Élouard me diz que ele admite a existência de outros mundos, mas me parece que prefere este material em que ele viveu e no qual vivemos nós. Costuma-se dizer que poetas vivem no mundo da lua, mas, de certo, têm os pés na terra.
E, para finalizar este punhado de conversa e ilustrar este texto, trago um poema de Paul Élouard no qual o poeta descreve artisticamente uma realidade por ele idealizada.
A Morte o Amor a Vida (PAUL ÉLOUARD)
Julguei que podia quebrar a profundeza a
[imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue
Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro
[nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula
Tu vieste o fogo então reanimou-se
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de
[estrelas
E a terra cobriu-se
Da tua carne clara e eu senti-me leve
Vieste a solidão fora vencida
Eu tinha um guia na terra
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido
Avançava ganhava espaço e tempo
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente
[para a luz
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava
[as suas velas
O sono transbordava de sonhos e a noite
Prometia à aurora olhares confiantes
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos
O repouso deslumbrado substituía a fadiga
E eu adorava o amor como nos meus primeiros
[tempos
Os campos estão lavrados as fábricas irradiam
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas
Nada é simples nem singular
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite
A floresta dá segurança às árvores
E as paredes das casas têm uma pele comum
E as estradas cruzam-se sempre
Os homens nasceram para se entenderem
Para se compreenderem para se amarem
Têm filhos que se tornarão pais dos homens
Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens
E a natureza e a sua pátria
A de todos os homens
A de todos os tempos.
Paul Eluard, in "Algumas das Palavras"
Tradução de António Ramos Rosa
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
http://www.citador.pt/poemas/a-morte-o-amor-a-vida-paul-eluard