Uma vida ao retrovisor

Recomeçar tudo outra vez, bem sabe... Será difícil prosseguir sem aquela mais nobre das essências: - A do seu amor... De bagagem na mão, viaja... Sobre o dorso vergastado não só o alforje da decepção carrega, mas também a tiracolo o tédio com uma descomunal força o sobrecarrega... – “Como das longas horas de um triste dia que se desdobra ao som de um sineiro”...

Pelas curvas terrenas do abstrato sem um porto seguro para se aportar cabisbaixo segue... Singra pelos mares da existência sem qualquer destino... Ao longe, percebe-se que longínqua uma tênua luz o pálido horizonte de um negro véu reveste... Sangra o coração às buganvílias outrora recentes... Vertigens adocicadas às páginas torvas do instante sem piedade se desfolham... Amarelam-se às aviltantes circunstâncias, quais nódoas de uma ferruginosa cor o outro sol o brilho descora... Enlameadas pelos desatinos do desapontamento as retinas sem conseguirem decifrar os pentagramas da ilusão se perdem hoje no campo da própria emoção...

Não mais aquele sorriso vislumbra... Também não mais de perto a daltônica esperança dos doirados idos dias sequer um filigrana de compaixão ao agora assiste... Chora em silêncio... Em conchas as mãos o semblante confuso aconchegam... Lágrimas incontidas pelo antebraço jorram qual sangue nas veias o cérebro arfante hoje bombeia... Vacilante à epiderme o coração convulso sem piedade golpeia: - Lancinante dor que do peito entorpecido inda doudo o sacro nome em algoritmo balbucia... Retorce a boca à rigidez dos caninos... Uns murmúrios ao largo esconsos ecos frases dos lábios endefluxados ainda balbuciam: - Faca! Isso corta como uma faca. Você cortou o coração da minha vida!... Perdem-se nos inaudíveis ciberespaços o tortuoso canto... Dopado de amor no banco a carcaça pende e se contorce... Ao macabro pesadelo grotescamente se desfalece... Suarenta a pele as rotas vestes úmidas deixa...

O inverno rigoroso da mocidade faz parte do então fatídico cotidiano. Longos minutos agonizantes perpassam... Trepida o ônibus à massa asfáltica... Um vento revolto e gélido pelas entranhas da janela uma triste seresta arpeja, qual lobo em plena lua cheia uns eternos dissabores com desprazer peleja... Agarra-se ao manto negro a densa neblina. Diminui-se a velocidade... Dobram-se às horas infindas os já estafados ponteiros... Quadruplicam-se o quadro dos pavores... No turbilhão do desengano umas arroxeadas pétalas dos verdugos galhos se desprendem e carnalmente ilustram o circo dos horrores: - Desfalecido “palhaço”, que ao trepidar de uma côncava pista, cobre-lhe a plateia de moribundos com umas monarcas coroas totalmente adornadas de umas ferais flores...

Umas exéquias à inerte matéria celebram... Sardônicos risos quebram o silêncio do sacro velório... Aplaudem os espectros ao passamento... Desejam-na sem maiores detalhes os enegrecidos ornamentos... À visão de uma cruz arqueada à choupana do inconsciente acolá, apavorados e tépidos, se dispersam... Anjos de Luz, que num ambiente de trevas, o necrotério povoa, ilumina e o abençoa... A um sopro divino, à vida devolve...

Sem dificuldades do sarcófago instante sai... Retoma o espírito à lívida carcaça... A alma transpira e se recompõe altiva... De soslaio avista, à distância, embora diminuto o novo destino... Sacolejam os membros ao brecar dos pneus à parada finda... Recosta a surrada jardineira à estação... Uma cândida voz das altas esferas lhe adverte brandamente: - Acorde, ó poento peregrino! Eis que chegou ao final da viagem... Boa sorte à nova estada... Seja feliz...

Titubeante à fala encantadora obedece... Apoia-se no encosto do banco e, a passos lentos, o corredor alcança... Desce os degraus... Vê-se diante de um novo cenário que agora mais do que nunca se lhe abre sorrindo, qual alecrim de um perfume agridoce ao vácuo não só o purifica, mas também de uma santidade tamanha de amoroso pranto o beatifica...

Liberta-se dos grilhões de um coevo passado e se joga de braços abertos nas águas mornas do hodierno... Prende-se à realidade... E, como tal, segue espreitando o amanhã com aquela cautela de antes, embora quase não mais nele acreditando...

Pálido poeta
Enviado por Pálido poeta em 01/11/2011
Reeditado em 04/01/2012
Código do texto: T3311692
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