Ao se pensar em termos de literatura, é sempre instigante movermos a ótica para as compreensões pessoais que se manifestam na ‘insondável’ busca pelo conhecimento humano que entrecruzam o autor e o leitor por meio do texto.
         Muito se discute, atualmente, diante das teorias literárias, até que ponto um autor e sua obra se mesclam, ou não. Por mais que se negue, um autor fala de si mesmo em seus textos. Que o diga Flaubert, diante de seus algozes, ao declarar em alto e bom tom: “Madame Bovary sou eu!”.
          Defino literatura como um salto: salto da memória, da vivência, da História; aquela ‘palavra fluídica’ que saltou para o mundo e recriou seu próprio mundo ao ser refeita na ficção do autor (bagagem-autor-texto). Toda ficção, ou criação literária, parte de uma primeira leitura que o  próprio autor faz de acontecimentos ou sentimentos e os reelabora na construção do texto. A partir de uma leitura do que se vivenciou é que o texto se desvenda para o autor. De que outra forma se pode explicar a criação de uma personagem sem que o autor tenha, de alguma maneira, experimentado a transmutação para aquele outro lado do salto? Uma criação vazia, a partir do nada, teria credibilidade?
            Por outro lado, o ‘ insondável’ entre o texto e o leitor recai no avesso do salto, ou seja, em um mergulho: o modo como o texto é recebido à luz da interpretação que só o próprio leitor é capaz de lhe atribuir, de acordo com o confronto entre o enigma trazido no texto e o que ele, leitor, ousou desvendar. E aí se encontra a pluralidade de possibilidades que reveste um texto de contornos ainda mais insondáveis.
              Enquanto o autor parte da pluralidade de experiências que convergem para a ele e lhe saltam no texto, o leitor mergulha no sentido inverso, de si para o encontro com o texto e as diferentes óticas sob as quais pode percebê-lo.
             Para exemplificar, destacarei o ponto que mais me chamou atenção no dia em que visitei a XV Bienal do Livro no Rio de Janeiro: a palestra “Vida Literária, obra do acaso, imposição do destino”, apresentada pelos autores Stella Florence, Godofredo Neto e André Leones, no Café Literário. A discussão girava em torno da busca por convergência dessas óticas ‘insondáveis’.
                 Como Stella bem elucidou, a vida literária pode ser definida como um surto, no qual o autor reescreve à sua maneira, o que, de fato, já existe: uma forma sincera, eu diria, de o próprio autor refletir consigo mesmo, se explicar, e passar ao leitor ‘como aquela loucura que se põe em um texto aconteceu’. Em outras palavras, o processo criativo é uma espécie de ‘auto psicanálise’ convertida em texto: uma terapia compartilhada com o leitor (... como se dissesse ‘reticências minhas, não mais’!).
             Ilustrando sua apresentação, Stella leu uma crônica sua, na qual narra um episódio que ela declarou ser verídico. Após se sentir sexualmente usada em um mal sucedido encontro amoroso, a autora-personagem-narradora apresentou um problema seríssimo nos olhos, ao ponto de não mais poder enxergar por alguns dias. O seu texto se desenvolve estabelecendo comparações literárias com as personagens Jocasta e rei Édipo. (Na peça de Sófocles, Édipo cega a si mesmo ao descobrir que, tentando fugir de seu anunciado destino, se casara, por acaso (?) com a própria mãe).
              Se considerarmos o texto de Stella somente sob a ótica das Ciências Humanas, uma conclusão possível seria a de que a autora estava diante de um caso clínico de histeria e subsequente quadro psicossomático ante a frustração de uma mulher que se sentiu, por auto permissão, ‘violentada’. Mergulhando um pouco mais fundo, com auxílio de outras ciências humanas, entenderia que, em sua escrita, o que Stella está dizendo é “eu exponho a minha vida ao público, mas ao me comparar a Jocasta, estou tentando dizer para mim mesma que ainda não havia resolvido o que fazer com o meu complexo de Édipo”.
               Talvez essas explicações resolvessem o surto de Stella. Entretanto, existe um texto literário muito bem escrito que saltou dessa vivência, e, se apenas reduzirmos a literatura a explicações psicanalíticas, simbólicas, filosóficas, antropológicas, e outras áreas afins, perdemos o que a literatura melhor nos oferece: o contato com a arte de ler! E ler é um mergulho na força e expressividade das palavras de um texto. Perderíamos o encanto, o contentamento, que nos flui ao se ler. Perderíamos a fantasia possível de encontrar o ‘outro’. E deixaríamos de compartilhar a ‘loucura’ que nos convida a decifrar outras ‘loucuras’, ou, simplesmente, outras possibilidades textuais. Ao leitor que também se entrega ao texto, abrem-se tantas outras interpretações, que só a palavra livre de interpretações teóricas pode nos oferecer. Ao final, eu saí da palestra me perguntando por que motivos a personagem narradora se deixou envolver, por acaso (?), com aquele canalha. E lá estava eu em outro mergulho, em outro salto, dessa psicanálise das estórias da vida.
 
     Obra do acaso, obra do destino: poesias da vida, o romance, e demais gêneros literários. Ponto final.


PARA O  LIVRO : O PROCESSO CRIATIVO LITERÁRIO PELA ÓTICA DOS AUTORES
             
 POR CARMEM TERESA DO NASCIMENTO ELIAS
MESTRE EM LETRAS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESPECIALIZAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA PELA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PROFESSORA DE LÍNGUA INGLESA DO COLÉGIO PEDRO II, DA UNIVERSIDADE SANTA ÚRSULA  E DA REDE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. ATUALMENTE APOSENTADA
PESQUISADORA , ESCRITORA E  AUTORA.