Companheiros
COMPANHEIROS
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Nos tempos atuais, a expressão “companheiro” passou a ser vis-ta como um identificador de pertença a algum grupo seja político, so-cial, desportivo ou até religioso. Usam-na para definir uma parceria de interesses, algo relativamente provisório, capaz de esgrimir entre a superficialidade do conhecido e o comprometimento do amigo. Hoje se pode dizer, do jeito que é empregada, a palavra companheiro fun-ciona como uma meia tamanho-único: cabe em qualquer pé; ou seja, se adapta a qualquer situação ou circunstância.
Há tempos atrás, fazendo uma pesquisa em uma enciclopédia eletrônica espanhola, recém acoplada a meu computador, deparei-me com a origem da pa-lavra compañero. Eu sempre imaginei que o verbete companheiro tivesse alguma coisa a ver com alguém que faz companhia. Tanto assim que as corporações mercantis são chamadas de companhias, o que me levava a crer tratar-se de um contingente de companheiros, perfilados aos objetivos de alguma empreitada.
Companheirismo, deste modo, é visto por muitos, como o abraçar de al-gum ideal, juvenil, transitório, ideológico, quem sabe. O grande problema é que se fala muito na “companheirada”, mas muito poucos sabem viver a solidarieda-de do ser companheiro. Às vezes, muitos desses segmentos não têm nenhuma cerimônia em usar seus companheiros, para atingir seus objetivos, nem sempre lícitos, muitos deles de pouca ética, e depois abandonam as pessoas que usaram ao deus-dará.
Hoje se utiliza a palavra para também designar uma parceria sócio-afetiva, caracterizando uma relação entre duas pessoas de sexos diversos ou não, cuja parceria visa mais a segurança material do que a continuidade estável de uma relação solidária.
NO PRINCÍPIO ESTÁ O PÃO
Pesquisando melhor, notei que nas origens ibérico-castelhanas, a palavra companheiro é composta de con + pan + ero, que é alguém muito chegado, que come o pão conosco, ou que partilha conosco (ou nós partilhamos com ele) o pão de cada dia, que mata a fome física e de afeto. É alguém que senta à mesa. E nós não sentamos à mesa com qualquer um... Para nós, no Brasil, companheiro é sinônimo de amigo, parceiro (eventual), sócio (por interesse) ou colega (por o-brigação ou formalidade). Em sua essência o verbete tem outro significado, mais rico e mais profundo.
Desta forma, companheiro é aquele que doa algo para o bem do outro. Na raiz etimológica, essa doação é caracterizada pela oferta ou partilha do pão. Do-ar, nessa acepção, é diferente de contribuir. Quem doa dá do que é seu, e às ve-zes doa a si mesmo. Mais do que coisas, doa-se tempo, atenção, escuta... A con-tribuição sempre aguarda um retorno, um benefício. Eu contribuo com meu clu-be, mas espero que o time vença os adversários e eles me deixem entrar para ver o jogo, nadar nas piscinas, frequentar as festas, etc.
UMA QUESTÃO DE DOMÍNIO
Há os que, na vida, contribuem para exigir, dominar, encobrir faltas, a-calmar consciências, ou porque têm demais, ou, por fim para pertencer, ao gru-po ou à gang. O companheiro na mais pura acepção da palavra dá sem buscar saber o que o outro vai fazer com o bem doado. Há, entretanto, alguns equívocos na doação. Damos um prato (em geral descartável) de comida e não sentamos para conversar com o pobre. Assim posso ser um doador, mas não é um compa-nheiro...
Quantas vezes enviamos dinheiro para uma instituição (até para deduzir no Imposto de Renda) e não vamos lá conhecer a fundo seus problemas? Em ou-tras oportunidades, prometemos orar por alguém, uma pessoa doente ou um conhecido em necessidade, em geral para não ter que botar a “mão na massa”. Há  igualmente  os que se dizem companheiros, amigos, guias (até espirituais), mas cujas ações revelam um ponderável escopo dominador. Tornam-se líderes (se auto-proclamam companheiros) para dominar, para conduzir os demais a caminhos escusos...
O COMPANHEIRISMO DE QUEM REPARTE O PÃO
Alguém é companheiro sempre em função do pão que dá ou aceita. Com-panheiro é quem provê o pão na mesa de quem não tem. O ato de nós comermos juntos o pão, cria aquele companheirismo que brota da doação, da fartura de bens e de afeto. Jesus proveu o pão para os que tinham fome. Tornou-se com-panheiro deles. Quem reparte o pão é porque se solidariza com a carência do ou-tro.
O pão pode não ser só o de farinha, mas pode ser o alimento espiritual da amizade, da franqueza de falar o que o outro precisa ouvir, ou de escutar o que ele quer desabafar. Este companheirismo vale como um pão, cria vínculos, ale-gra a alma e conforta o espírito. Quando amamos alguém estamos obsequiando esta pessoa com o pão da nossa amizade. Isto é ser companheiro.
O ato de prover o pão às multidões famintas é um dos mais claros sinais dos tempos messiânicos, que bem mostra que o Reino começava a ser instaura-do junto à humanidade. Jesus faz o sinal do pão para mostrar que no Reino não há parcimônia nem sentimentos menores, mas só há fartura...
Quando o Mestre surge à beira do lago, depois da ressurreição, enquanto os amigos trazem o peixe para o braseiro, ele já os esperava com pão. Quando entra na casa do casal de discípulos, em Emaús, embora o brilho da lição escri-turística, ele é efetivamente reconhecido como? “Ao partir o pão”.
A CASA DA FARINHA
O pão é historicamente símbolo do amparo, da solidariedade e do compa-nheirismo solidário. Nos sinais da fraternidade Jesus destaca o ato de dar pão a quem tem fome com o ponto alto da caridade fraterna com o carente.. Ao dizer “eu tive fome e vocês me deram de comer...” ele ensina que, a despeito de uma destinação espiritual no futuro, o ser humano é corpo, realidade somática que precisa de carinho, respeito e pão. A ninguém se deve sonegar o pão, seja em que circunstância for. Pão é vida, aconchego e carinho.
O gesto de ser tornar perene através do “pão da vida” mostra a forma como ele imaginou para estar sempre conosco. Para transformar em prática toda a profecia antiga, Jesus nasceu em Bet-lehem (Belém), que quer dizer “casa da far-tura do pão”, simplesmente casa da farinha.
Se na antiguidade o pão tipificava o alimento saudável e suficiente, hoje, embora exista uma gama muito maior de comidas sofisticadas e industrializa-das, o pão artesanal, feito do forno doméstico ainda traz consigo, pela repartição do “pão nosso de cada dia” o símbolo da fartura e do encontro da família e dos companheiros.
O companheirismo da mesa fraterna funciona como sacramento, atuando como um autêntico sinal, algo que significa mais do se enxerga e, mais que isso, como um indicador da abertura do coração e da solidariedade. O mundo está do jeito que está porque existem muitos parceiros, colegas, amigos até, mas poucos, muito poucos companheiros, aqueles que têm a coragem de repartir o pão, a vida e as emoções...
O autor é Filósofo e Doutor em Teologia Mortal. Escritor, autor de mais de cem obras, entre elas “Pão para quem tem fome”, Ed. IGL 1983. Preletor de retiros de espiritualidade em todo o Brasil.