O exercício literário do Belo

Para encetar uma reflexão sobre o exercício da produção textual literária especialmente voltada para o Belo, para o trabalho da palavra pela palavra, escolho a Poesia. Entretanto, tecerei alguns comentários de ordem geral.

A atividade do Belo literário goza de prerrogativas especiais. Há um universo distinto que envolve a ficção (romances, contos, novelas) e há a célula específica da Poesia. Não se considere aqui a obra em prosa, a social ou a jornalística, pois estas têm outras finalidades geralmente comprometidas no sentido legítimo de buscar a transformação de situações pela força da palavra, do exemplo, do convencimento.

A Poesia se destaca por sua feição transcendental, onírica, irreal, ilusória, filosófica e também psicológica. Mesmo quando se volta para o social, o texto poético não foge dessas suas características.

O tom de melancólico lirismo é nítido em:

A canção do africano (Castro Alves)

Lá na úmida senzala,

Sentado na estreita sala,

Junto ao braseiro, no chão,

Entoa o escravo o seu canto,

E ao cantar correm-lhe em pranto

Saudades do seu torrão ...

(...)

O verso constitui uma espécie de milagre linguístico, uma linguagem fora do idioma e que, mesmo sendo assim metafórica e simbólica, consegue ser lida e apreendida por muitos. Há uma dificuldade maior de entendimento, claro, quando o texto poético é elaborado laboratorialmente e contém itens que exigem do leitor uma determinada cultura, a exemplo do conhecimento de línguas estrangeiras e de outras áreas, disciplinas, ciências.

A poesia que agora chamo de laboratorial seria aquela planejada, arquitetada _ quando o/a poeta usa de seu domínio linguístico para criar significados, o que não elimina a inspiração. Concorrem aí a pessoa física e a pessoa poética.

Ouvido tinha aos Fados que viria

Uma gente fortíssima de Espanha

Pelo mar alto, a qual sujeitaria

Da índia tudo quanto Dóris banha,

E com novas vitórias venceria

A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.

Altamente lhe dói perder a glória,

De que Nisa celebra inda a memória.

Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões. Canto I, 31

A beleza da Poesia, entretanto, não se intimida e nem se reprime com detalhes laboratoriais concernentes ao patrimônio cultural de que desfruta o/a poeta. Essa pessoa que é a Poesia mostra-se multifacetada, independente. A Poesia seria o melhor símbolo de democracia, pois consegue frequentar palácios e casebres; cidade e campo; mangues e oceanos sem perder a condição de deidade. Portanto, ela é um ser incontaminável. Ela, sim, nos poliniza e contamina, mesmo que não a expressemos em formas poéticas.

Quando um indivíduo consegue produzir versos de forma oral ou escrita, convencionou-se chamá-lo de poeta. Há uma discussão desnecessária sobre se o homem é poeta e a mulher, poetisa. Felizmente, e “para o bem de todos e felicidade geral da nação”, se aceita atualmente que ambos podem ser igualmente tratados pelo termo poeta. Entendeu-se que o vocábulo poetisa passou a ser usado com intenções depreciativas. Da mesma maneira como já se denominou “poetastro” o poeta homem de pouca expressão. Coisas do preconceito e de mentes ainda limitadas. A pessoa Poesia, por sua vez, é magnânima e se dá ao nobre e ao plebeu com o mesmo ardor. Está acima da palavra escrita e da sua expressão sonora. Trata-se de algo para além dos sentimentos e dos sentidos, a Poesia é um encontro com Deus. Para Ele haverá mais alegria no céu por se recuperar uma ovelha desgarrada do que por 99 outras que estejam salvas, ungidas e sacramentadas.

Um/uma poeta jamais tem a certeza de ser poeta. Isto se dá principalmente em virtude das atitudes de (além da dúvida atroz e interior típica dos poetas) críticos literários _ mormente aqueles atravancados com as teorias e que nunca escreveram uma só linha de verso _, se encarregarem de destruir no íntimo das pessoas a ilusão da poesia.

Pensamento e sentimento são entidades livres, totalmente senhoras de si. Observe-se que não temos autonomia para nos impedir de pensar ou de sentir. Pensamos e sentimos, isto é irreversível. E que, da mesma forma que não nos impedimos de pensar e de sentir, não temos autonomia para cercear a Poesia que se manifesta em realidades textuais imperfeitas. A Poesia é perfeita, poetas e pessoas poéticas não.

A pessoa poética tem vida própria, é um ser distinto e abstrato _ relacionado com a Poesia. Esta pessoa pensa, sente e priva de intimidade com a Poesia. O poeta pensa, sente e capta os reflexos da sua acompanhante pessoa poética. Então escreve e/ou lê/interpreta poemas e, através da pessoa poética que o habita, também se identifica e dialoga com outras pessoas poéticas. Esta conversa, intimidade e identidade entre as pessoas poéticas também estão distanciadas da conversa, da intimidade e da identidade com as pessoas comuns, físicas ou jurídicas. Isto não quer dizer que haja uma irresponsabilidade na Poesia. O sujeito comum, o portador da Poesia, tem obrigações sociais, direitos e deveres; e deve respeitabilidade aos declaradamente poetas ou não poetas. A Constituição Federal paira sobre eles, sobre todos nós, igualando-nos. Menos sobre a Poesia.

Quando as atitudes da pessoa poética não condizem com os preceitos morais e éticos, é possível que o cidadão comum esteja usando da liberdade e da autonomia poéticas para agir em causa própria. O poema escrito passa a ser um documento, tanto que é registrado e goza da legislação do direito autoral. Então, o autor, pessoa física, deve responder pelo que escreve. Ele não está acima da Lei. A poesia, sim, está. A poesia cumpre as suas próprias leis. E digo mais, um alcoólatra é um poeta que tem a Poesia abafada em seu corpo físico.

A Poesia se apaixona, ama, odeia, inveja, retalia, repreende, esbraveja e tudo o mais. Como então harmonizar pessoa física e pessoa poética? Por enquanto avisto apenas um termo: bom-senso. Fica difícil? Sim, fica, pois a Poesia é intolerante a ordenamentos do mundo real. Mas é preciso haver um contrato social entre o/a poeta e a Poesia para que, nessa convivência, a pessoa poética logre encantar a Poesia de tal sorte que, por amor, ela até aceite.

A Poesia é, inclusive, pornográfica:

Sugar e ser sugado pelo amor (C. D. de Andrade)

Sugar e ser sugado pelo amor

no mesmo instante boca milvalente

o corpo dois em um o gozo pleno

Que não pertence a mim nem te pertence

um gozo de fusão difusa transfusão

o lamber o chupar o ser chupado

no mesmo espasmo

é tudo boca boca boca boca

sessenta e nove vezes boquilíngua.

Uma pessoa poética ama ou odeia outra pessoa poética e não precisa expor seus motivos, está claro. Quando alguém que se pensa poeta confunde sentimentos da pessoa física com os da pessoa poética, forma-se um equívoco. São 3 coisas absolutamente distintas: Poesia (deusa inatingível); poeta (pessoa física que tem a felicidade de ser visitado pela Poesia); pessoa poética (ser que se manifesta em linguagem poética). A pessoa poética é o possuidor e o/a poeta é a coisa possuída.

Ah, dirão alguns, mas tem casos em que pessoa física e pessoa poética se amam ou se odeiam igualmente. Até se casam e têm filhos. Ou apenas se amam como foi o caso da identidade poético-amorosa de Verlaine e Rilke. E daí? Tudo neste mundo como em outros pode acontecer. E cada caso é um caso. No caso de Florbela se deu diferente. Todo o seu canto de pessoa poética é para o marido que não era poeta. Perdeu-se o equilíbrio entre o físico e o transcendental, e a flor cantou até a morte física. O corpo da pessoa poética permanece em sua perenidade, a obra. Para a pessoa poética o que importa mesmo não é a realização terrena do Amor traduzida em ato sexual, em namoro, noivado, casamento e gravidez, batizado, crisma. Ela faz a corte, ama, intertextualiza, namora, noiva e se casa com os seus semelhantes (pessoas poéticas). E só faz sexo transcendente; o esperma é a palavra, o gozo é etéreo e os filhos são versos e poemas.

Poetas podem discutir, brigar, ir às vias de fato. Nessa hora a Poesia voa para outros horizontes e, como também é uma deusa cismada e chegada às iras, pode não retornar. Daí vem o sofrimento sem fim da pessoa física do/da poeta. Sem inspiração, tem fim o exercício sublime da Poesia. Ela, por sua vez, sofrerá também, pois se apega e ama, mas, diferentemente dos comuns mortais, a Poesia renasce das cinzas em qualquer corpo e espaço. Assim, como se diz quanto à reencarnação, o espírito da Poesia pousará em outros corpos poéticos, indefinidamente.

taniameneses
Enviado por taniameneses em 17/07/2011
Reeditado em 17/07/2011
Código do texto: T3101017
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