INTERTEXTUALIDADE ENTRE OS CONTOS VENHA VER O PÔR DO SOL, DE LYGIA FAGUNDES TELLES, E O BARRIL DE AMONTILLADO, DE EDGAR ALLAN POE

1. INTRODUÇÃO

A finalidade deste artigo é analisar os contos Venha ver o pôr do sol, de Lygia Fagundes Telles, e O barril de Amontillado, de Edgar Allan Poe, a fim de verificarmos até que ponto há intertextualidade entre eles. Antes de começarmos a nossa viagem pelos contos passaremos por uma breve biografia dos autores aqui mencionados.

O conto Venha ver o pôr do Sol está presente na obra Antes do baile verde (1970), porém, pode ser encontrado em outras antologias como, por exemplo, em Pomba enamorada ou uma história de amor e outros contos escolhidos (1999).

Lygia de Azevedo Fagundes é a quarta filha do casal Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Nasceu em 1923, em São Paulo. Lygia quando criança escutava histórias de temas aterrorizantes que seus pajens e outras crianças a contavam. Ainda menina já escrevia seus primeiros contos nas últimas páginas de seus cadernos. A sua primeira publicação, Porão e sobrado, foi paga por seu pai e a autora assinava apenas Lygia Fagundes. Formou-se em Educação física e Direito, em 1950 casou-se com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., por isso, Lygia Fagundes Telles, casamento que durou cerca de dez anos. Foi eleita para a cadeira 28 da Academia Paulista de Letras em 1982 e, posteriormente, em 1985, foi eleita para ocupar a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras. Publicou vários livros, entre eles, Antes do baile verde, publicado pela Bloch em 1970. Esse livro merece o nosso destaque, pois é nele que encontramos o conto em análise, contos que foram escritos entre 1949 e 1969. Nesta obra encontramos temas como, o adultério, a insatisfação conjugal e a desmistificação dos papéis familiares, sendo explorados numa época em que o moralismo tradicional estava em alta. Nesses contos o papel crucial, quase sempre, é das personagens femininas. Elas assumem papéis que desafiam o comportamento “adequado”, ameaçando as regras sociais. Apesar dessa forte presença feminina, encontramos personagens como o “marido ideal”, “o irmão perfeito”, “o louco”, trazendo consigo sempre uma grande surpresa.

A linguagem utilizada nos contos é uma linguagem clara, concisa, o que dá agilidade na história. Lygia procura mostrar os fatos ao invés de contá-los, assim o leitor tem a impressão de ser também um personagem, passando a observar os fatos com os próprios olhos.

O fim dos relacionamentos amorosos é uma das circunstâncias preferidas de Lygia. Em Venha ver o pôr do sol o que dá início ao conto é justamente um reencontro após um fim de relacionamento, além disso, está presente ainda o inexplicável. Nesse conto o que prende o leitor é o fato do narrador ir dando as informações aos poucos, criando um clima de suspense até o final, provocando a imaginação de cada leitor.

Há indícios que provam que ao escrever o conto, Venha ver o pôr do sol, Lygia tenha se inspirado em Edgar Allan Poe, precisamente, no conto O Barril de Amontillado, conduta comum de quem escreve contos de gênero misterioso.

Edgar Allan Poe foi escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor que nasceu em 1809, Baltimore. Segundo filho dos atores David Poe e Elizabeth Arnold. Poe ficou órfão ainda criança e foi adotado por um casal rico o que lhe permitiu ter uma educação de qualidade, porém, por ter um temperamento inquieto, foi expulso de uma escola e também de uma Academia militar por indisciplina. Encontrou êxito ao dirigir a revista “Southern Literary Messager” onde conseguiu exibir o seu talento como contista. Seu primeiro livro, Tamerlane and Other Poems, foi publicado em 1827.

Casou-se com a prima Virgínia de apenas treze anos, em 1836. A doença da esposa levou Poe ao consumo excessivo de álcool e após a morte da mulher esse problema só veio a agravar-se. Faleceu aos 40 anos, provavelmente, por conta do alcoolismo.

Poe é considerado um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica. É autor de novelas, contos e poemas, porém, o seu maior talento era em escrever contos, segundo o próprio autor. Escreveu contos de horror e contos policiais. Dentre suas obras temos Histórias Extraordinárias (1837), onde aparecem seus contos mais conhecidos como, por exemplo, O Barril de Amontillado.

Edgar Allan Poe usa, em seus contos de terror, uma espécie de terror psicológico onde seus personagens oscilam entre a lucidez e a loucura. Seus contos são narrados em primeira pessoa dando-nos a impressão de que é ele quem vê, sente, ouve, e que vive o próprio terror.

2. INTERTEXTUALIDADE

Este capítulo foi desenvolvido após a leitura do livro “Leitura e produção de textos”, de José Luiz Fiorin e Francisco Platão Savioli.

É frequente um texto retomar passagens de outros. Quando se trata de um texto científico, essas citações são feitas de maneira explícita. Na maioria das vezes, o texto citado vem entre aspas e se faz necessário indicar o autor e a obra donde extraiu tal citação, porém, ao tratarmos de textos literários essas citações passam a ser exibidas de maneira implícita, ou seja, não há a necessidade de indicar o autor e nem a obra de onde essas passagens foram retiradas. Muitas vezes, para a compreensão de um texto é necessário dados de outros textos literários, mitológicos ou históricos. A esse diálogo entre os textos dá-se o nome de intertextualidade que tem como principal finalidade reafirmar alguns sentidos do texto citado ou contestar e deformar esses sentidos.

Praticamente, todo texto literário tem origem noutro texto, pois criar um texto sem base é o mesmo que criar no vazio. Quando falamos em intertextualidade um nome notável é o de Bakhtin. Segundo Lopes (2003, p.71),

"Bakhtin é um dos primeiros a substituir o recorte estático dos textos por um modelo onde a estrutura literária não é/não está, mas se elabora em relação a uma outra estrutura [...]. Cruzamento de superfícies textuais é absorção e transformação de outro texto. No lugar da noção de intersubjetividade instala-se a noção de intertextualidade".

A semioticista Julia Kristeva define intertextualidade como uma interação textual que se produz no interior de um só texto, permitindo entender as diferentes sequências ou códigos de uma estrutura textual precisa como também de transformações de sequências ou de códigos tomados de outros textos.

Para Fiorin (2006, p. 164) “todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis sob formas mais ou menos reconhecíveis [...]”.

Após essas definições básicas de intertextualidade passamos às análises dos contos em questão para verificarmos na prática se essas teorias são visíveis.

3. O DIÁLOGO ENTRE VENHA VER O PÔR DO SOL, DE LYGIA E O BARRIL DE AMONTILLADO, DE POE

Para começarmos a nossa análise, nada melhor do que iniciarmos pelos títulos dos contos. Como veremos, em ambos há um chamado para a morte. Em Venha ver o pôr do Sol, podemos dizer que está sendo feito um convite para assistir à partida do sol. Uma vez que temos a luz simbolizando a vida, a ausência dela, isto é, a escuridão, representaria a morte. Por outro lado, em O barril de Amontillado, Amontillado refere-se a um vinho que por sua vez pode levar uma pessoa ao estado de embriaguez, uma semimorte em relação à realidade concreta. Sendo assim, só pela análise dos títulos percebemos que haverá um diálogo entre os contos, pois o tema central nos parece o mesmo, um convite à morte motivado pela vingança ou algo parecido.

Quanto aos narradores, no conto de Lygia ele é do tipo heterodiegético, isto é, o narrador não participa dos acontecimentos, por mais que ele seja um intruso o seu papel limita-se em narrar a história, por isso é um conto narrado em 3ª pessoa. Já no conto de Poe, o narrador é autodiegético, aquele que participa da história como protagonista, revelando a sua própria vivência nos fatos. É uma das características do autor narrar seus contos em 1ª pessoa.

Em Venha ver o pôr do sol, ao prestarmos atenção nos adjetivos usados pela autora para descrever o espaço em que a história ocorre percebemos que se trata de um cenário de horror. A ladeira era “tortuosa”, as casas “modestas”, o “mato rasteiro”, a “rua sem calçamento”, até a cantiga que as crianças cantavam era uma cantiga “débil”. (TELLES, 1999, p. 63). Lygia vai aos poucos levando o leitor a imaginar o que poderia acontecer no encontro de um ex-casal num lugar tão estranho. A diferença de Poe é que ele usa o narrador para, logo no começo do conto, informar ao leitor que se trata de uma história de vingança. “Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a entrar pelo insulto, jurei vingança”. (POE, s/d, p.1).

No conto de Lygia os personagens Ricardo e Raquel são apresentados ao leitor aos poucos, por meio do próprio diálogo que há entre eles. Por exemplo, Ricardo falando para Raquel: “Você está uma coisa de linda” (TELLES, 1999, p. 64), ou falando de si: “[...] eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda [...]” (Ibidem, p.65). Já as características externas são dadas pelo próprio narrador. Assim, sabe-se que Ricardo é “esguio e magro”, tem “cabelos crescidos e desalinhados” e “um jeito jovial de estudante” (Ibidem, p.63). Em O barril de Amontillado, Montresor por meio de seu relato nos parece ser uma pessoa fria e calculista como podemos observar: “Continuei, como era o meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da ideia da sua imolação”. (POE, s/d, p.1). Fortunato, por sua vez, apesar de ser um “homem digno de respeito e mesmo de receio” (Ibidem, p.1) era uma presa fácil por conta da sua paixão por vinhos.

A relação de posse que as personagens parecem ter sobre as suas vítimas fica bem evidente nas expressões “– Minha querida Raquel” (TELLES, 1999, p.63), e ”– Meu caro Fortunato [...]” (POE, s/d, p.2), na fala de Ricardo e também na fala de Montresor. As personagens usam da ironia ao abordar as suas vítimas. Os pronomes possessivos “meu” e “minha” são usados nos dois contos com a mesma intenção, a posse. Esse é outro indício de intertextualidade entre os contos. Segundo Fiorin (2006, p.178), “o enunciado concreto pode unir-se ou ser trocado por outros discursos, tendo em vista que a ideia permaneça na palavra, no texto, no discurso ou na enunciação”.

A estrutura da narrativa em Venha ver o pôr do sol se dá pelo diálogo entre Ricardo e Raquel, o que nos leva a impressão de presenciar a ação enquanto ela acontece. Por isso, tanto Raquel quanto o leitor ficam perplexos com a proposta feita por Ricardo à ex-namorada de ver o pôr do sol num cemitério abandonado, porém, essa perplexidade logo passa ao sabermos que essa escolha foi feita “porque é de graça e muito decente”, “até romântico” (TELLES, 1999, p.65), e como se não bastasse, os dois não poderiam ser vistos juntos por conta dos ciúmes do atual namorado de Raquel. Sendo assim, o cemitério, por ser um lugar abandonado e discreto, torna-se o lugar perfeito para o encontro, o que faz com que Raquel e o leitor diminuam a estranheza pelo local escolhido. Em O barril de Amontillado é o próprio Fortunato, a vítima, que faz questão de ir a Cave [divisão da casa abaixo do nível da rua]. Como vimos, ele tinha um ponto fraco que era o orgulho da sua qualidade de entendido em vinhos. Montresor usa desse ponto fraco para insultar a vítima, levando-a, por conta própria, à morte. “Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. [...] tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete”. (POE, s/d, p.2). Neste caso o leitor já sabe que se trata de vingança, então já espera que vá acontecer algo de ruim a Fortunato.

Aproveitando que estamos falando de lugares ou espaços onde ocorrem as cenas, vale lembrar que esses espaços onde os personagens dos dois contos sacrificarão as suas vítimas são parecidíssimos. Um lugar sombrio e deserto. Em Poe os criados estavam todos fora da casa, pois se divertiam no carnaval, já em Lygia temos o cemitério abandonado. Fica claro que há um diálogo entre os contos mais uma vez.

Como o nosso propósito é mostrar o diálogo presente entre os textos, ressaltamos ainda que ele pode ser visto nos fragmentos a seguir. Por exemplo, em Telles (1999, p.69) “Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim oblíquos, como os seus”. Em Poe(s/d, p.4) “os olhos brilharam-lhe [...]” esse brilho era por estar à procura do vinho. Ambos os contos fazem uma relação ao olhar.

Já nessas outras passagens, percebemos que o diálogo se dá pelo relacionamento dos discursos. Vejamos: “um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada”. (TELLES, 1999, p.72). Este é o momento no qual Raquel percebe que se encontrava sozinha e trancada num jazigo. Em Poe também há uma passagem que mostra Fortunato preso na cripta. “Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos”. (POE, s/d, p.5).

Nas atitudes desesperadas dos personagens observamos que há uma relação muito forte entre os dois textos, quando Raquel dá conta de que estava sendo enterrada viva ela, desesperadamente, começa a “sacudir a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades”. (TELLES, 1999, p.73). Por outro lado, não acontece nada muito diferente a isso. Montresor podia “ouvir as vibrações furiosas da corrente”. (POE, s/d, p.5). Era Fortunato numa última tentativa desesperada de se livrar daquela situação.

Fiorin (2006) afirma que é por meio do sentido que se estabelece o dialogismo dos enunciados, mesmo que haja diferença entre as superfícies textuais o que estabelece o diálogo entre os discursos é a interação existente entre eles.

Após os vários exemplos aqui citados, fica claro que o conto moderno de Lygia, Venha ver o pôr do sol, teve como influência o conto romântico de Poe, O barril de Amontillado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao chegarmos ao fim desta análise pudemos observar, por meio das várias comparações que foram feitas dos contos, que o conto da Lygia Fagundes Telles, Venha ver o pôr do sol, teve como influência o conto O barril de Amontillado, de Edgar Allan Poe. Vale ressaltarmos que nem todos os contos modernos tiveram como fonte um conto romântico, porém, esse foi um caso onde ficou claro que houve o diálogo entre os contos analisados por meio da temática e textualização, além da semelhança das estruturas sintáticas que comprovam o intertexto. Verificamos que em ambos os contos há o desejo de vingança e a maneira que as vítimas foram conduzidas à morte é a mesma, isto é, tanto Lygia quanto Poe aprisionaram-as em lugares sombrios até morrerem em total abandono e sem testemunhas oculares. Essa análise, como anunciado, foi feita com o propósito de verificarmos a intertextualidade presente nas obras, porém, vale acrescentar que há inúmeros elementos ainda a serem analisados. Por último, concluímos, mais uma vez, que Lygia dialoga com Poe, sendo assim, há verossimilhança entre os contos aqui apresentados. Com este artigo esperamos ter despertado a curiosidade do leitor em buscar a fonte, ou melhor, os textos que possivelmente dialogam com a obra que está sendo lida. Isso fará com que o universo literário e cultural do leitor aumente a cada nova leitura.

REFERÊNCIAS

FIORIN, J.L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org). “Bakhtin: outros conceitos-chave”. São Paulo: Contexto, 2006.

FIORIN, José Luiz. SAVIOLI, Francisco Platão. Leitura e produção de textos. São Paulo: Editora Ática, 2007.

LOPES, Edward. Discurso literário e dialogismo em Bakhtin. In: BARROS, D.L.P. e FIORIN, J.L. (org) “Dialogismo, polifonia, intertextualidade”. São Paulo: USP, 2003.

POE, Edgar Allan. Conto: O barril de Amontillado. Disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/zip/amontillado.pdf Acesso em: 18 fev 2011.

TELLES, Lygia Fagundes. Pomba enamorada ou Uma história de amor e outros contos escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 1999.