O Existencialismo sartreano em "O dia em que conheci Jim Morrison", de Rogério de Almeida

INTRODUÇÃO

Este artigo traz uma leitura do livro O dia em que conheci Jim Morrison, de Rogério de Almeida. Nessa ficção encontramos um forte traço existencialista quando o autor joga com o real e o inconsciente, deixando ao personagem o caminho livre para a sua própria escolha. Segundo Sartre (1970), o Existencialismo é uma doutrina exposta que deixa possibilidades de escolhas para o Homem. Esse será aquilo que faz de si mesmo, portanto, carrega o peso da sua existência.

Almeida utiliza frases interrompidas e é por meio desse silêncio que abre portas para que o complemento seja feito pelo leitor. Além disso, o autor traz textos clássicos que duelam com a ficção e, ainda, joga citações por toda a história, levando o leitor a um universo paralelo de vozes dissonantes.

Partindo do conceito existencialista de liberdade de Sartre, passamos para a leitura da ficção, O dia em que conheci Jim Morrison, onde encontramos um personagem que viverá essa escolha a partir do chamado dionisíaco de Morrison. Porém, antes será desenvolvido um breve capítulo onde teremos uma noção sobre literatura ficcional.

1. LITERATURA FICCIONAL

Como vimos, O dia em que conheci Jim Morrison é, antes de tudo, uma obra ficcional. Uma das características fundamentais deste tipo de texto “[...] é o fato das orações projetarem contextos objectuais e, através destes, seres e mundos puramente intencionais [...]” (CANDIDO et al. p. 9, s/d). Em geral a estrutura das orações ficcionais parece ser a mesma daquela de outros textos, porém, a diferença está na intenção diversa, isto é, é preciso ser minucioso para entender o significado mais profundo daquilo que está escrito.

O que parece ser impossível em uma obra científica passa a ser aceitável em uma obra de ficção, pois o termo “verdade” passa a ter diversos significados. Algo impossível como, por exemplo: ver “[...] dragão voando pelo céu [...]” (ALMEIDA, 2004, p. 9) torna-se possível quando há coerência interna nesse mundo imaginário das personagens.

"Ainda que a obra não se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer valor específico, notar-se-á o esforço de particularizar, concretizar e individualizar os contextos objectuais, mediante a preparação de aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores circunstanciais, que visam a dar aparência real à situação imaginária". (CANDIDO et al. p. 12, s/d).

O dia em que conheci Jim Morrison é uma ficção que possui uma “realidade” dentro dela. O narrador da história entra no mundo fantasioso, passando a fazer parte deste.

Na ficção, o leitor vive, imaginariamente, os destinos e aventuras dos heróis por meio dos personagens. E esse mundo imaginário é relacionado pelo leitor, na maioria das vezes, a uma realidade fora da obra.

Quando temos o próprio cotidiano como tema de ficção, esse adquire outra relevância e condensa-se na situação limite do tédio, da angústia ou da náusea. Isso leva o leitor a contemplar e viver as possibilidades humanas que a sua vida, provavelmente, não lhe daria tal chance. “É precisamente a ficção que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graças ao modo irreal de suas camadas profundas, graças aos quase juízos que fingem referir-se a realidades sem realmente se referirem a seres reais [...]” (CANDIDO et al. p. 36, s/d).

A ficção torna-se um lugar ontológico privilegiado, pois é o lugar em que o homem pode viver e contemplar, por meio das personagens, outros papéis. O leitor vive e realiza a sua condição de ser autoconsciente e livre. Porém, cabe ao apreciador da obra se entregar com toda inocência às virtualidades da obra de arte, e esta devolverá, por sua vez, toda riqueza encerrada em seu contexto.

A criação literária repousa sobre o paradoxo de a personagem ser um “ser fictício”. O problema da verossimilhança depende da possibilidade desse ser comunicar-se com uma verdade existencial. O romance baseia-se numa relação entre o ser vivo e o ser fictício, e a personagem é a concretização disto.

Segundo Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade através da arte.

2. LIBERDADE NO EXISTENCIALISMO DE JEAN-PAUL SARTRE

Este capítulo foi desenvolvido a partir de uma leitura do Artigo “Liberdade e religião no Existencialismo de Jean-Paul Sartre”, de Frederico Pieper Pires.

A liberdade do Homem para Sartre não caminha junto com uma forma de pensar que conceba Deus como providência, o argumento filosófico construído por ele exclui Deus da ação e destino humanos. Uma vez que se acredita em Deus como sendo fundamento do ser, a liberdade torna-se restrita, pois o destino é de ordem divina e preestabelecida. No Existencialismo o tema central é, justamente, a liberdade e, por isso, essa negação que Sartre faz. O Deus cristão, que é amor e providência, deixa de existir se o ser humano for livre. Sartre acredita em uma liberdade que dá ao homem o total poder em fazer as suas próprias escolhas.

Filosoficamente, Sartre parte do cogito, pensamento, e esse só fará sentido quando incluso no mundo, pois o sujeito se constrói por meio de toda uma sociedade que o cerca. Sendo assim, até que ponto vai a liberdade humana? Uma vez que estamos cercados por leis, divinas ou não, acabamos direcionados sempre a uma falsa liberdade.

Jean-Paul Sartre, no auge do Existencialismo, defendia que não havia nada que pré-determinasse o Homem. Se o ser humano existe, é a partir daí que ele se constrói. Segundo o existencialista francês, nós nascemos livres, e essa liberdade não é algo que precise ser conquistado. O que ocorre é a própria recusa que o Homem faz de sua liberdade. Ele vive para os olhos da sociedade, tornando-se objeto, deixando assim, a sua liberdade em segundo plano. A partir do momento em que a pessoa vive sob regras ela, muitas vezes, deixa de ser, de fazer, de existir. Eis aí o porquê de Sartre criticar o pensamento religioso, quando a existência de Deus intervém na história e, consequentemente, na liberdade humana. Se Deus criou o Homem dotado de essência, determinando a sua vida antes mesmo do nascimento, onde fica o livre-arbítrio? Sartre vê o ser humano como o responsável pela sua existência, e por isso, livre para determinar o seu caminho, mesmo que essa liberdade tenha o seu preço.

O filósofo entende que o ser humano está sempre mais preocupado com outras coisas do que com ele próprio, outro motivo que faz com que Sartre critique a noção de Deus como criador, além de criticar ainda a psicanálise e o materialismo histórico mecanicista, pois relacionam o ser humano ao seu passado. O homem livre é aquele determinado pelas possibilidades, pelo futuro.

A verdade, se é que ela existe, é que não somos capazes de viver numa sociedade onde temos total liberdade, por isso criamos os valores éticos. Para Sartre é essa incapacidade de lidarmos com a liberdade que faz com que passamos essa responsabilidade para outros, criando, assim, nossos ídolos. Esses, por sua vez, têm como principal função nos enganar, isentando-nos da responsabilidade que a liberdade implica. Não faço isso porque é pecado, não faço aquilo porque posso ser preso, enfim, não sou livre. Porém, me liberto quando deixo de existir para a sociedade e passo a ser o próprio ídolo.

Entre os ídolos modernos, segundo Sartre, Deus, inconsciente, dialética, o que realmente me interessa para este Artigo é James Douglas Morrison, pois esse foi o escolhido para libertar o editor, narrador-personagem, do livro O dia em que conheci Jim Morrison.

3. NAS ENTRELINHAS DE O DIA EM QUE CONHECI JIM MORRISON

O dia em que conheci Jim Morrison é um livro em que o autor, Rogério de Almeida, brinca com o real e o ilusório, convidando o leitor a um jogo entre o sonho e a realidade. O narrador-personagem parece viver uma dupla personalidade. Como editor procura levar uma vida normal. Porém, está cansado dessa vida medíocre e encontra em Jim Morrison uma máscara que irá isentá-lo da responsabilidade de ser livre.

O autor usa frases interrompidas em seu texto e, por meio do silêncio, leva o leitor a usar a imaginação. Outro recurso utilizado por Almeida foi mixar textos clássicos aos da ficção e, além disso, salpicar citações, levando o leitor a um universo paralelo de vozes dissonantes.

O narrador-personagem caminha com Morrison por toda a história deixando-nos em dúvida se suas vidas não são apenas uma. Ficção que nos propõe uma fuga do cotidiano, levando-nos ao encontro com o ato de criar.

As frases interrompidas, logo no começo do livro, nos dão a ideia de que o narrador-personagem caminha sem saber ao certo o que está procurando. Ele caminha por um deserto que parece ser a sua própria vida, compara cactos brotados da terra com erupções na pele. Porém, como o personagem precisa se libertar desses espinhos de uma vida tediosa, ele desvia o olhar dessa paisagem deserta e deixa os seus pés o guiarem. “Retomei a marcha da minha caminhada em direção”. (ALMEIDA, 2004, p.5). “Caminhei na escuridão de um céu que era de”. “Um abismo poderia surgir no”. (Ibidem, p.6). Essas interrupções nas frases, esse silêncio, segundo Paul Claudel, sugerem “[...] o silêncio e o próprio ato físico de respirar, o silêncio e a inspiração, o silêncio e a compreensão” (CLAUDEL, apud FRANCO DE SÁ, s/d). Para Eni Orlandi (2007, p.11), “não há sentido sem silêncio”. “O gesto da interpretação se dá porque o espaço simbólico é marcado pela incompletude, pela relação com o silêncio. A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da ideologia e é ‘materializada’ pela história”. (ORLANDI, 2007, p. 18).

“Numa das curvas avistei um homem agachado”. “Um homem agachado na imensidão de uma noite escura no centro de uma praia”. (ALMEIDA, 2004, p.6). Esse homem que o narrador encontra e que o pede para parar parece ser a própria voz do inconsciente do personagem. Essa voz, esse homem, precisa abrir os olhos do personagem-narrador para que esse passe a viver como realmente queira. “É preciso criar outros mundos ou alargar a nossa percepção deste”. (Ibidem, p.6,7). Esse ídolo que o personagem escolhe como máscara para isentá-lo da responsabilidade de ser livre é Jim Morrison. E porque Jim Morrison?

James Douglas Morrison, O rei Lagarto, marcou a sua existência, como poeta e vocalista do The Doors, buscando viver a sua liberdade. Segundo o produtor musical Paul Rothchild, o vocalista foi “[...] um intelectual renascentista à sua maneira [...]”, (PATRIOTA, 2005, p. 5), porque era livre. Para Jim: “Se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar as pessoas dos limites em que se encontram e que sentem” (MORRISON, 1994 apud PATRIOTA, 2005, p.11). Leitor das produções dos filósofos existencialistas franceses e de Nietzsche, fica mais fácil saber o porquê da escolha.

O personagem é editor de livros. Edita livros de ficção, de filosofia, de poesia, de sociologia, porém, ele estava cansado de tudo isso. Jim Morrison é o inconsciente do editor que pede a ele que “vá escrever, cara, vá fazer sua obra”. (ALMEIDA, 2004, p.7). Resumindo, viva a sua vida em liberdade.

Numa regressão que o editor faz, lembrando da sua infância, ele recorda que “[...][s]e sentia parte do céu [...]”. Ele “[...] acreditava que era só esticar o braço que o céu seria [dele]”. (ALMEIDA, 2004, p.8). Essa sensação de liberdade, segundo Sartre, é a prova de que nascemos livres.

O personagem passava o seu tempo editando e não tinha liberdade para escrever a sua própria obra. Então, busca em Jim o escape para ser livre. Com Jim Morrison, ele podia ver “[...] dragão voando pelo céu [...]” (Ibidem, p.9), poderia ser o próprio xamã [aquele que em estado de possessão conduz o ritual, na busca de recuperar a fonte da vida].

“Não sei qual a finalidade de se editar tantos livros”. (Ibidem, p.10). Para o editor, a maior parte era uma grande inutilidade que nunca se põem em prática. “Fodam-se os objetivos. Foda-se o mundo. Fodam-se as conquistas”. (Ibidem, p.10). O editor não sentia mais prazer naquilo que fazia, estava desgostoso com a vida que levava, por isso, a necessidade de libertação.

O editor aceitou trabalhar na editora porque precisava de dinheiro, consequentemente, seria mais fácil publicar. Porém, assim como Morrison, tornou-se um escritor fracassado mesmo sem nunca ter publicado. Jim também tinha paixão pelos livros. “Acordava sempre muito tarde e ficava lendo, escurecia e continuava lendo”. (Ibidem, p.16). O editor via em Jim aquilo que desejava para si. Morrison um dia pegou a estrada em busca da liberdade, porém, o editor ainda não tinha a mesma coragem.

O primeiro contato com o The Doors foi por meio do álbum Alive She Cried, e a partir daí, quando a música acabou, o editor já não era mais o mesmo. “[...] há algo maior que acordar cedo e ir trabalhar e almoçar com a família nos finais de semana e trepar quando a vontade desperta o corpo [...]”. (Ibidem, p.17). O autor introduz uma frase de William Blake [poeta, pintor inglês], “O caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria” (Ibidem, p.18), enfatizando o que o personagem disse em relação ao que não era mais o mesmo, pois tanto o personagem quanto o poeta, enxergavam o que muitos se negavam a ver. Porém, o autor deixa essa frase solta e sem citar o nome de Blake, levando o leitor à impressão de estar ouvindo vozes dissonantes.

Encontramos ainda, ao longo do romance, outras frases soltas que continuam levando o leitor a essa impressão como, por exemplo, a frase de Shakespeare: “Somos feitos da mesma substância que os sonhos e entre um sono e outro decorre a nossa curta vida”. (Ibidem, p.33).

Ou então, “Invocar, encobrir, conduzir os mortos. Noite adentro”. (Ibidem, p.17).

“Os cantos mágicos podem fazer com que a lua baixe dos céus”. (Ibidem, p.24).

“Estrelas, trevas, uma fonte de luz, uma ilusão, orvalho, uma bolha, um sonho, um raio de luz ou uma nuvem: assim se deve considerar o mundo”. (Ibidem, p.44).

“É a hora púrpura, o crepúsculo, quando me sinto feliz. Será que é tão difícil compreender que me basta sentar com uma folha de papel e escrever? A hora mágica”. (Ibidem, p.56).

“O que pode o homem contra a fúria do destino? Deixar-se levar e cumpri-lo”. (Ibidem, p.96). Estas frases soltas despertam a curiosidade do leitor em buscar a fonte, ou melhor, os textos que possivelmente dialogam com a obra que está sendo lida. Isso faz com que o universo literário e cultural do leitor aumente a cada nova leitura.

Como editor, o tempo se perdia por conta do trabalho. “Os deveres – obrigações – responsabilidades sociais”. (Ibidem, p.18). “É preciso dinheiro, é preciso coisas, objetos, principalmente qualquer coisa”. (Ibidem, p.19). Segundo Freud (1978, p.131), “É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida”.

“Todo discípulo precisa matar seu mestre para se tornar um”. (ALMEIDA, 2004, p.23). O editor, quando jovem, traduziu todas as letras de Jim Morrison e montou uma banda. Escrevia poemas, queria ser como Jim, pois “[s]ó os loucos e as crianças sabem o que a vida vale”. (Ibidem, p.24). Às vezes acho que vale apenas o presente. “Contudo, devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim”. (FREUD, 1978, p.131).

O editor casou-se, “estava muito feliz e apaixonado. [...] havia aceitado fazer o jogo dos escravos”. (ALMEIDA, 2004, p.25). Para viver aos olhos da sociedade era preciso casar-se. Deus como providência, regras divinas. A vida do editor tornara um relógio.

Mas, afinal o que é liberdade? Como ser livre se varremos para debaixo do cotidiano o sentido da existência? A liberdade, segundo Sartre, “é a possibilidade permanente daquela ruptura ou nulificação do mundo que é a própria estrutura da existência. [...] não se pode encontrar para a liberdade outros limites além da própria liberdade [...]”. (SILVA, 2006). Para o editor, “liberdade é morrer”. (ALMEIDA, 2004, p.28). Nem que essa morte seja simbólica. “O nascimento é a primeira morte e a vida uma sucessão delas, mas morrer é nascer e nascemos até que a morte final definitivamente nos revele a vida”. (Ibidem, p.34).

O Homem nasce livre, segundo Sartre, mas esse mesmo Homem é quem sistematizou seu dia, sua sobrevivência, inventou o trabalho, dividiu as horas. A liberdade é escolhida pelo próprio ser, porém, essa escolha às vezes chega a ser embaraçada.

O editor cansado da vida medíocre que levava arrumou algumas amantes. Para ele, “[...] as amantes ajudam as mulheres (e os amigos) na difícil arte de fazer o tempo passar com prazer”. (Ibidem, p.53).

Era preciso renascer a cada momento. O editor fora “[...] um palhaço, um trickster, clown, momo, trapaceiro, mentiroso, um bêbado e um curinga, mitomaníaco brincando de teatro da crueldade”. (Ibidem, p.57). Para Sartre, “o Homem é o ser que projeta ser Deus, mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que é, uma paixão inútil”. (SARTRE, apud, SILVA, 2006).

“Nós cumprimos nosso destino e revivemos a vida dos deuses”. (ALMEIDA, 2004, p.63). Para o Existencialismo Sartreano (1970), esse destino é o Homem quem o constrói. Ninguém nasce herói ou covarde. O Homem nasce livre e é responsável por suas ações. O autor do livro coloca como exemplo o próprio personagem. Ele não nasceu editor, tornou-se um. E, por não ver mais sentido naquilo que fazia, acabou sendo demitido. A demissão do editor foi por causa de uma obra que ele estava editando. Para ele não fazia sentido algum aquele livro sobre “gênios do século XX” e acabou discutindo, de forma explosiva, com o seu patrão.

Rogério Almeida, em seu livro, inclui textos alheios que conversam com a ficção. Nesse exemplo vemos um Jim que não estava nem aí com a sociedade, ele não media as consequências de seus atos. Para Morrison o importante era ser livre.

"Miami, Flórida. Primeiro de março de 1969. O senhor James Douglas Morrison comporta-se de maneira obscena durante um show realizado num hangar de hidroaviões. Testemunhas alegam que o cantor mostrou seu pênis simulando uma masturbação. A justiça acusa-o de comportamento impudico e lascivo, considerado delito grave, e de três outros delitos leves – exibição indecente, profanação pública e embriaguez. A promotoria pede pena máxima. Longas sessões de julgamento. Em 30 de outubro de 1970, Morrison é condenado a seis meses de prisão e multado em quinhentos dólares por exibição indecente e imoral em público. Pôde sair em liberdade, mediante uma fiança de cinqüenta mil dólares". (ALMEIDA, 2004, p.78).

“Eu não sabia exatamente por que queria acabar com tudo aquilo, não sabia nem mesmo se queria acabar [...] ao mesmo tempo em que queria me libertar me sentia envolvido com meu trabalho”. (ALMEIDA, 2004, p.81). Com a demissão, o editor poderia ser livre outra vez, o Homem nascera livre, estava condenado a ser livre.

“Tudo acaba. A vida é assim. Um dia acaba. Como o nosso casamento”. (Ibidem, p.88). O editor, além do trabalho, perdeu a esposa. A liberdade tem o seu preço.

O autor cita o deus Dioniso para ilustrar o nascimento do editor após morrer para o trabalho e para a esposa.

"Embriagado de vinho e liberdade, delirando nos subterrâneos do inconsciente, harmonizando o mundo dos animais e dos deuses, segue o deus múltiplo, complexo e proteiforme [...] nos convocando à cerimônia de retorno a nós mesmos". (Ibidem, p.93).

O nascimento de Dioniso se deu:

"quando Hera, esposa de Zeus, descobriu que ele a traía com a mortal Sêmele, incutiu nela a ideia de vê-lo em todo seu esplendor, uma vez que o deus tonitruante apresentava-se disfarçado em formas mortais. Embriagado de prazer, Zeus não pôde se furtar à realização do desejo de Sêmele, por tê-la prometido, enroscado ainda em suas pernas, antes mesmo de saber o que seria. Nu das máscaras mortais, o deus fulmina Sêmele, grávida de seis meses, com o fulgor dos raios de seu corpo divino, mas não descuida do feto, que sobrevive, introduzindo-o num rasgo que faz em sua própria coxa, onde será gestado até o nascimento". (Ibidem, p.89).

O editor também renasceu. É certo que acordou sem trabalho e sem mulher. Porém, para o editor, nesse momento, essa era a liberdade de que precisava. Na verdade, o mundo renascera.

O editor passou a observar a luz, seu ângulo sobre a janela, as flores que riam no jardim, a árvore de frente a sua casa. Tudo passou a ter mais vida. Sem trabalho e sem mulher. Pode ouvir, pela primeira vez, o canto dos pássaros e a música tomou conta dele. Relembrou a sua história. Revisitou seus antigos desejos e quis retomá-los.

"A campainha tocou mas não abri, o telefone tocou e não atendi, simplesmente sou. Reli Baudelaire e viajei em sua companhia pelos paraísos artificiais. Assisti a filmes, ouvi música, estudei filosofia e me masturbei". (Ibidem, p.94).

Perambulava sem rumo. Lia, escrevia, ia a bares, começou a estudar piano e a viver cada dia com tal intensidade que até a morte passou a ser sua amiga, pois o futuro é incerto e o fim está sempre próximo. Às vezes tomava vinho dividindo o copo com as borboletas na varanda.

“Jim tocou meu ombro e disse sorrindo: vá escrever, cara, você sabe o que tem que fazer. Uma breve brisa soprou fria e apagou a última brasa da fogueira. Jim partiu”. (Ibidem, p.96). O editor nunca mais encontrou Jim, porém, dedicou seu livro a ele. “Não sei se entenderiam, mas isso também não importava. De alguma forma está ele lá, na dedicatória e na epígrafe”. (Ibidem, p.100). Passou a viver o ócio, aprendeu a se virar com o pouco dinheiro que ganhava. Escreveu seu livro e passava o tempo ouvindo o som das borboletas.

"Eu passava boa parte do dia e da noite lendo. Desde a hora em que acordava até a hora em que ia dormir um som de piano me acompanhava. Vinha do menino que estava passando uns dias na casa da avó, a vizinha ao lado. Os pais estavam de mudança para Goiás e enquanto acertavam as coisas por lá deixaram o menino e algumas recomendações para que os vizinhos ficassem de olho.

No começo, eram uns sons escolhidos ao acaso, mas aos poucos começaram a dizer alguma coisa. Não passou muito tempo e minhas leituras eram pontuadas por belas melodias. O menino não saía do piano, a velha defronte a ele como se olhasse um quadro pintado só para ela. Se eu não tivesse acompanhado a evolução das notas pingadas até a chuva melodiosa, diria que o menino já nascera sabendo tocar ou que os pais o haviam enfiado em um conservatório ainda nas fraldas. Mas eles não gostavam da idéia de ter um filho músico, eram pobres, estavam melhorando de vida, o pai foi transferido e o menino estudaria para ser um grande homem, advogado, engenheiro ou médico. Eu ficava com meus livros.

Quando os pais voltaram para buscá-lo, o menino chorava agarrado ao piano. Tiveram que levá-lo à força. Pude então ver o seu corpo franzino, suas mãos de dedos longos e um desespero aterrorizante nos seus olhos. Vi alguma coisa mais que era invisível, mas que era dele. Depois não o vi mais. Minhas leituras ficaram só com o som abafado das palavras impressas.

Até que arrumaram um emprego para mim, a velha morreu e venderam o instrumento. Mas em algum lugar invisível ainda estamos, eu e o menino, lendo livros e tocando piano". (Ibidem, p.101,102)

Essa é a liberdade de que tanto Sartre falava. Uma liberdade natural pelo simples fato de nascermos livres. Porém, essa liberdade é restrita quando temos Deus como fundamento do ser. Com as leis divinas somos direcionados a uma falsa liberdade, pois nunca faremos de fato aquilo que temos vontade por conta da culpa que nos cerca. Para Sartre só é livre aquele que ultrapassa certas barreiras, conquistando assim o seu lugar. Cabe a nós então, nos escondermos atrás de máscaras para sermos totalmente livres. Essas máscaras, na maioria das vezes, são os nossos ídolos. É o que acontece com o personagem do livro. Ele só consegue de fato ser livre quando se entrega ao chamado dionisíaco de Morrison. A partir daí ele torna-se de fato um homem livre, pagando o preço por suas escolhas.

Segundo Sartre a liberdade humana não acontece de fato porque o homem está mais preocupado com a sociedade do que consigo mesmo. Somos incapazes de lidar com a liberdade, por esse motivo criamos as éticas que servem a todo o momento para nos privar. Talvez, o papel fundamental de nossos ídolos seja o de nos enganar, pois por meio deles nós somos isentados da responsabilidade que a liberdade nos pede.

Sartre defende um homem livre e responsável por tudo o que o rodeia. Sendo assim, para o existencialista o homem está condenado a ser livre, pois é o único responsável por seus atos e escolhas. Posto isso, recorrer a uma suposta ordem divina representa a incapacidade do homem em arcar com suas próprias escolhas.

Somos aquilo que queremos ser e, além disso, somos capazes de mudar o que somos. Os valores morais não podem servir de limites para a nossa liberdade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez que Deus criou o Homem, segundo Sartre, não há a possibilidade desse Homem ser livre, pois o seu destino já estaria traçado mesmo antes do seu nascimento. Por essa razão, Sartre descarta a existência de Deus como criador do ser humano. Para o existencialista, o Homem nasce livre e torna-se responsável por aquilo que faz. Esse por sua vez, criou seus ídolos para fugir dessa responsabilidade. Isso acontece porque o ser humano procura viver para a sociedade e se esquece da sua liberdade. Para uma boa convivência coletiva foram criadas as éticas e essas precisam ser seguidas. Porém, uma vez que se esquece da responsabilidade de ser livre e se esconde atrás de uma máscara, tudo passa a ser válido. Deixa-se de ser social e vive-se sem barreiras. A ética estende-se a um segundo plano e para o ídolo pouco importa o que irão achar de suas atitudes. Resumindo, quanto mais envolvido com o social, mais distante fica a liberdade. O ídolo, Jim Morrison, por exemplo, levou a sua vida da melhor maneira possível, para si próprio, não se preocupando com mais ninguém. O Homem livre parece ser um Homem individual que paga um preço alto, na maioria das vezes, por essa liberdade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Rogério de. O dia em que conheci Jim Morrison. São Paulo: Zouk, 2004.

CANDIDO, Antonio; Anatol Rosenfeld; Decio de Almeida Prado e Paulo Emílio Sales Gomes. A personagem de ficção. São Paulo: Editora Perspectiva, s/d. Livro digitalizado pela Equipe: Digital Source.

FRANCO DE SÁ, Lileana. Os grãos do silêncio. Disponível em: http://www.discurso.ufrgs.br/sead2/doc/interpretacao/Lileana.pdf Acesso em: 10/04/2011.

FREUD, Sigmund. Os pensadores: Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Trad. Durval MARCONDES (et al.). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

ORLANDI, Eni P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5ª Edição, Campinas, S.P: Pontes Editores, 2007.

PATRIOTA, Rosangela. “História – Performance – Poesia: Jim Morrison, o xamã da década de 1960”. Em Pauta: Fênix – revista de História e Estudos Culturais da Universidade Federal de Uberlândia – UFU, Uberlândia, MG, v.2, n.3, 2005. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/PDF4/Artigo%2001%20-%20Rosangela%20Patriota.pdf Acesso em: 01 ago 2010.

PIRES, Frederico Pieper. “Liberdade e religião no Existencialismo de Jean-Paul Sartre”. Em Pauta: Sacrilegens - revista dos alunos do programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, Juiz de Fora, MG, v.2, n.1, p. 02-21, 2005. Disponível em: http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2009/08/2-2.pdf Acesso em: 01 ago 2010.

SARTRE, Jean-Paul. L’Existentialisme est um Humanisme. Trad. Rita Correia GUEDES. Paris: Les Éditions Nagel, 1970. Site: Ateus.net Disponível em: http://livrosdigitais.files.wordpress.com/2010/03/jean-paul-sartre-o-existencialismo-e-um-humanismo.pdf Acesso em: 15 ago 2010.

SILVA, Cléa Gois e. “Jean-Paul Sartre: da liberdade à consciência”. Rio de Janeiro, 2006. Site: Jornal existencial on line. Disponível em: http://www.existencialismo.org.br/jornalexistencial/jadircleasartre.htm Acesso em: 15 ago 2010.