Literatura Fantástica - Para que serve isso?

"Ninguém nunca ousa falar... Não é nada mais que fantasia... É faz-de-conta, faz-de-conta..."

("Fly" - Blind Guardian)

O tema acima levanta opiniões variadas e às vezes conflitantes. Meu objetivo aqui não é levantar um bandeira. Mas expressar um conceito que venho formando com respeito a este gênero desde que ele me conquistou há alguns anos. Espero que agrade sobretudo aos leitores do gênero e desperte o interesse dos não-iniciados nele.

Mas vamos lá: fantasia, pra que serve isso mesmo?

Venho-me fazendo essa pergunta desde que descobri este gênero literário e percebi a controvérsia que existe em relação a ele.

Um grupo de pessoas o aprecia como alguém aprecia um doce - achando-o agradável mas nem de longe considerando-o uma alimentação saudável que trará algum bem além do prazer momentâneo na boca. Outros o acham infantil e ignoram-no, deixando-o apenas para as crianças os consumirem – como alguns adultos fazem com os doces. Outros acreditam que não são apenas agradáveis, como saudáveis e, para algumas pessoas, até mesmo essenciais.

Eu certamente não estaria escrevendo sobre o tema se não fizesse parte do último grupo. O que acredita que a leitura de fantasia não é só agradável como também saudável.

Digo isso principalmente pela necessidade que temos de contemplar o belo. E na correria da rotina dificilmente paramos para ver profundamente a beleza de pequenas coisas como árvores, céu, plantas, folhas, frutos e cores. Somos dotados de uma mente criativa e imaginativa, que não vê apenas as coisas como elas se apresentam fisicamente. Todas as formas, cores e padrões mexem com o nosso imaginário, não apenas com os olhos. É assim quando somos crianças, tudo é novidade e nos interessa profundamente. Mergulhamos em qualquer coisa que vemos e nadamos nos mares da imaginação em coisas simples como paisagens, animais e objetos. Mas, com o passar do tempo, as coisas em nossa volta perdem esse poder, perdem o encanto. Tudo torna-se por demais comum e sem graça. A rotina atarefada, assim como a ilusão que já sabemos e conhecemos tudo em nossa volta (ou pelo menos menos, “tudo o que importa”), pode fazer com que desprezemos o "Belo Mundo" que nos rodeia. Pode fazer com que deixemos de "enxergar as coras".

Quantos de nós parou para contemplar uma árvore se quer nos últimos dias. Parou para perder-se nos desenhos e cores vivas que se alteram e completam-se de acordo com o clima, horário e estação na natureza? Quanto tempo faz que você se sente feliz só por contemplar e fazer parte deste "belo mundo"? Muitos fatores podem sufocar este sentimento. Somos bombardeados por acontecimentos, atos e sentimentos negativos que criam o que vou chamar aqui de Escamas, em nossos olhos, e nos impedem de ver completamente a beleza do mundo em nossa volta.

O que pode resgatar nossa capacidade de ver (profundamente) maculada por tais fatores negativos? Acredito que a Fantasia literária tenha esse poder. Claro que a literatura (e a arte) em geral, têm um pouco dele mas acredito que a Fantasia possua mais -- pelo menos para certo grupo de pessoas. Porque ela fala direto com nossas emoções mais primárias, com nossas lembranças mais antigas e íntimas.

Vajamos: se estou numa cidade agitada e cheia de pessoas, é difícil para mim ver um pequeno gesto de bondade acontecendo ali na esquina, o sorriso sincero de uma criança, ou a luz do sol transformando as fachadas dos prédios em pedras douradas... É difícil ver essas coisas quando estamos todos atarefados e muitas vezes preocupados se teremos nossos pertences roubados ou não.

Mas se eu chego em casa (passando por um transito agitado numa cidade com ar e rios poluídos), visto roupas confortáveis, me sento num lugar onde eu possa ver qualquer resquício de natureza, e leio que “num certo lugar havia certo reino...” com os olhos da imaginação eu vejo um lugar "puro”, construído por minhas melhores memórias do mundo real. Nesse lugar imaginário, comum à Fantasia, meus olhos enxergam com mais clareza. Mais focados. Vêm mais cores, sem as Escamas que impregnam a rotina.

Se eu digo: “havia um jardim com um córrego de águas cristalinas...”, você forja esse jardim em sua mente. Tendo como matéria-prima para tal forjadura suas melhores lembranças de lugares assim, talvez a imagem do primeiro lugar que tenha visto semelhante a este, e que nem lembrava mais conscienciosamente dele.

Qual seria a diferença se você visita-se um lugar assim no mundo real? Quantas escamas teria em sua visão impedindo você de perder-se naquele lugar? Infinitas.

A maioria dos adultos (para não dizer todos) não fica num lugar que não seja sua casa (ou mesmo nela) tão a vontade, tão sem “escamas”, mesmo que as mais sutis, nos olhos. Nunca -- e com razão -- ficamos tão desarmados na realidade.

Mas quando você lê que “era uma vez um lugar”. Forja em sua mente um lugar intocável, distante das preocupações terrenas. E naqueles momentos em que passamos dentro desta ilusão que estamos em um Mundo Novo, passamos a ver com menos escamas.

Ouso dizer, por exemplo, que contemplei, de uma maneira muito mais profunda, sentimentos como temor, respeito, amizade, lealdade e esperança, lendo bons livros de Fantasia.

Uma vez que entramos nesse Belo Mundo onde podemos ver sem escamas, ao sair dele saímos com a visão um pouco mais limpa do que quando entramos. Neste estado de retorno, o Belo e o Real se unem, e tornam-se algo novo, deste plano. Voltamos a ter uma visão realista, mas ainda assim com um pouco de encanto.

Outro fator ainda que nos faz enxergar o mundo real com mais encanto é a re-padronização imaginativa da realidade que tais mundos encantados apresentam.

Se eu digo grama, pedra, pena, lápis, folha..., sua mente conjura tais itens nela. Mas se eu digo “pena de grama” cria-se um padrão inteiramente novo (dependendo de sua imaginação).

A mente que é capaz de imaginar um cavalo correndo num campo com sua crina balançando, simplesmente por ler a palavra: “cavalo”, e consegue imaginar toda sutileza, mobilidade e pureza, da água, correndo, parada, caindo, em ondas..., simplesmente por ler a palavra “água”, poderá unir facilmente as duas imagens imaginativas quando ler “cavalo d'água” e criar um novo encanto, uma nova criatura, um novo brilho imaginativo. A próxima vez que ela ver uma corrente de água ou um cavalo, no mundo real, não será com os mesmos olhos – haverá menos escamas, haverá um pouco de encanto. Haverá mais cores. Talvez aquelas cores conhecidas nos sonhos, memórias e imaginações mais íntimas.

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Para maiores e melhores informações sobre o tema leia "Árvore e Folha" de J.R.R.Tolkien