1. Análise da experiência estética receptiva (Aisthesis) a partir dos textos “O operário em construção”, Vinícius de Moraes e “Construção”, Chico Buarque.

Segundo Jauss, a Aisthesis - juntamente com Poiesis e Katharsis – é uma das funções pelas quais a conduta estética se realiza, o comportamento estético que legitima o conhecimento sensível: “ A aisthesis designa o prazer estético da percepção reconhecedora e do reconhecimento perceptivo”. O autor, também, enfatiza que, embora autônomas, essas funções estabelecem, umas com as outras, relações de seqüência, fazendo a Aisthesis, ás vezes, de afirmação estética produtiva ou de experiência estética comunicativa. Considerando esse fato, desenvolveremos nossa análise.

Como os textos propostos são poemas, decidimos considerar o que Pound diz a respeito de como carregar a linguagem do máximo de significado, quando afirma que dispomos de três meios principais: fanopéia, melopéia e logopéia. O que corresponde, respectivamente a projetar o objeto na imaginação visual, produzir correlações emocionais por intermédio de sons e ritmos, produzir ambos os efeitos estimulando as associações intelectuais e/ou emocionais que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras empregadas. Também, não é demais conferir que a função predominante nesse gênero é a poética que, segundo Meuer, “deriva da operação de submeter o signo verbal a tratamento icônico”, em termos semióticos.

Baseados nesses conceitos, iniciamos nossa análise com o texto de Vinícius de Moraes “O operário em construção”. Trata-se de um poema composto de dezenove estrofes livres, compostas por versos heptassílabos (redondilha maior – verso popular, por excelência). Apesar de apresentar rimas ricas que garantem musicalidade e ritmo, estas ocorrem numa ordem pouco rígida, de estrofe a estrofe, combinando rimas alternadas, encadeadas, internas entre outras; fato que somado à redondilha maior cria uma atmosfera rítmica que lembra os cantadores do Nordeste brasileiro, as narrativas populares em versos, os causos do Cordel.

Logo no início, o texto traz uma citação bíblica, uma verdade (cristã) incontestável. Em uma sociedade católica como a nossa, a brasileira, esse fato confere autoridade e emoção ao texto. Trata-se de uma citação do Evangelho de Lucas, o mais culto dos evangelistas, mais exatamente, da passagem em que Jesus, depois de quarenta dias no deserto, é tentado pelo Diabo. Nessa porção do texto, através de informações prévias como, por exemplo, o fato de saber que Jesus esteve no deserto por quarenta dias e que o povo de Deus (antigo testamento), também, vagou pelo deserto, mas por quarenta anos, o sintagma “num momento de tempo”, cresce em significação, como que prepara-nos para uma jornada: a construção das coisas no tempo e o tempo de construção das coisas.

O título já traz o gérmen do assunto de que trata o texto – construção – e a estrutura temática o confirma. Palavras como homem, operário, construção, casas, missão, igreja, prisão, liberdade, escravidão, facão, banco, vidro, cidade, nação, ao longo das quatro primeiras estrofes, garantem a sustentação do tema: a “construção” do operário que se constrói a si mesmo a partir da sua percepção como tal, “que goza de si mesmo no outro” - “...que o operário faz a coisa/e a coisa faz o operário (...) o operário foi tomado/ de súbita emoção/ ao constatar assombrado/ que tudo naquela mesa/ garrafa, prato e facão/ era ele quem os fazia/ ele, um humilde operário/ um operário em construção.”

Também, nas três primeiras estrofes, através da reflexão de textos anteriores, já interiorizados, verificamos a analogia entre o operário e Cristo. Palavras como missão, templo, religião, liberdade, pão ao lado de escravidão, quartel, prisão, tijolo, cimento e empilhar, entre outras, vão tecendo a estrutura na qual se desenvolverá, segundo nossa expectativa, “a paixão” do operário, num movimento crescente de libertação através da acumulação de outros valores. Exatamente na terceira estrofe, flagramos o momento em que o personagem inicia sua atividade estética, descobre o PRAZER ESTÉTICO que segundo Jauss “é um modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser do outro”. Magnificamente, Vinícius de Moraes recria a cena da Última Ceia, atualizando a REVELAÇÃO do Cristo na revelação do operário que de súbito VÊ: “...à mesa ao cortar o pão (...)/ o operário adquiriu/ uma nova dimensão/ a dimensão da poesia.” A Beleza inaugurada, o distanciamento instalado e necessário à contemplação eà percepção que leva o personagem a se posicionar como ser independente a partir da sétima estrofe, se manifesta na quinta e na sexta estrofes corroborando o crescimento do operário “ em alto e profundo/em largo e no coração”, crescimento sensível e reflexivo.

Na nona estrofe, os versos encadeados e organizados em estruturas paralelas revelam um “jogo” de palavras onde se compara os aspectos da vida do operário com aspectos similares da vida do patrão; onde o primeiro padece, o outro se regozija. Depois, uma estrofe de três versos – como o haicai, destaca e enfatiza a resolução do operário: resistir.

No decorrer de quatro estrofes, a partir da décima primeira, temos o desenrolar de uma trama sórdida onde o operário é agredido e chantageado, incentivado a desistir de “exercer” a sua liberdade e da condição de HOMEM consciente. Encontramos, nessa porção do texto, uma paráfrase do texto bíblico que encabeça o poema em questão; na décima quinta estrofe temos a confirmação do poder da experiência estética “ o ver cognocitivo”: “...e fitou o operário/ que olhava e que refletia/ mas o que via o operário/o patrão nunca veria.”

Parafraseando Sartre, podemos explicar o “ato de ver” do operário, pois, que a beleza é um valor que se aplica ao imaginário, comportando a desintegração do mundo real.

Percebemos o texto evoluir em um crescente levando o personagem a apropriar-se de “uma norma de ação”; norma desenvolvida a partir da sua reflexão estética e que o leva a experimentar a Katharsis, essa função estética capaz de conduzir o sujeito “á transformação de suas convicções e a liberação da sua Psiqué”.

Palavras como silêncio, martírios, perdão, solidão, maldição, fraturas, voz, irmãos, razão, esperança, coração, construído etc. tecem as duas últimas estrofes onde o silêncio provocado pelas mazelas de uma sociedade mesquinha é quebrado pela “voz de todos os seus irmãos que morrerão por outros que viverão”.

Entendemos que o “operário construído”, como O Cristo, “dentro da tarde mansa” já não vive; agigantada a sua razão, ele existe numa outra dimensão com a certeza de haver construído a si e ao seu mundo.

Enfim, o poema conta a história de um operário comum que, de repente, percebe-se como sujeito de sua própria história e sujeito do mundo ao seu redor e, percebendo-se, revela-se e, revelando-se, constrói-se e, construindo-se, liberta-se.

Aproveitando a deixa, seguimos com a análise do poema “Construção” de Chico Buarque. Trata-se de um poema musicado com três estrofes – as duas primeiras com dezessete versos e a terceira, com sete; composto de versos Alexandrinos clássicos (6+6) e brancos. A inexistência de rima é compensada pelos recursos estilísticos de natureza fônica, léxica e sintático-semântica utilizados pelo autor, como por exemplo, a terminação esdrúxula imposta a todos os versos, a presença constante de explosivas seguidas de sibilantes, e estruturas paralelas, o “efeito baralho de palavras”, utilizado na construção da segunda estrofe, a modo de enfatizar o aspecto lógico do poema que, essencialmente, constrói idéias, ademais de recriar imagens e sons.

Outra vez, o assunto traz seu gérmen já no título; outra vez, o protagonista é um operário; outra vez, deparamo-nos com o tema “construção”. Então, em meio á coincidências, iniciemos ressaltando as incongruências; o poema de Chico Buarque relata a história de um homem que decide suicidar-se, descreve, ao longo dos versos, como que esse fato ocorre.

Na primeira estrofe, nos seus dezessete versos, o autor expõe o personagem ao leitor a partir de suas ações, caracterizando-as com adjetivos de acento proparoxítono; esse recurso funciona como extensor da “realidade” da ação, elevando-a ao máximo de sua expressividade, levando-lha ao limite de sua realização: o personagem é o que faz, tem a abrangência de suas ações. No entanto, suas ações nos parecem automatizadas, regidas por alguma força que lhe é exterior, orientadas a um fim que não lhe pertence. Assim, a desolação é a realidade possível e “construção”, a negação anunciada.

Apesar do desenvolvimento da estrutura de ação no decorrer do texto poético, quase não sentimos a presença do personagem. Este é resgatado, uma única vez, do anonimato quando no oitavo verso da primeira estrofe, o autor o descreve: “seus olhos embotados de cimento e lágrimas”; eis o momento em que percebemos a persona que “habita” a ação. O paralelismo dos versos, a repetição de estruturas oracionais funciona como uma estrutura de um bloco, enquadrando e reiterando a condição do personagem que se encontra preso dentro dessa “construção” de atos pré-estabelecidos, em uma ordem social que não lhe cabe, em uma “caixa escura” que não reflete nem traduz o seu o espírito, que por isso indefinido permanece na esfera do parecer -“...como se fosse....”. Dizemos assim, porque consideramos que a automatização que lhe é imposta não lhe permite realizar.

Na segunda estrofe, deparamo-nos versos estruturados em paralelismo, a mesma maneira da primeira estrofe; inclusive, começando com as mesmas orações. Entretanto, à finalização de cada verso, Chico Buarque brinca com as mesmas palavras que finalizam os versos da estrofe anterior e, embaralhando-as, procura novo sentido para a antiga “construção” e esbarra no inevitável: a desconstrução.

Por fim, a terceira e última estrofe, composta de sete versos, também, Alexandrinos e brancos, reitera a idéia colocada no início do poema: a sociedade capitalista é um construto onde os homens funcionam como peças de uma engrenagem que não para: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego...o público...o sábado”.

Transcrevemos os poemas supracitados no intuito de ilustrarmos, ademais de comprovarmos a nossa análise.

O Operário Em Construção

Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.

De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia...

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

- Garrafa, prato, facão -

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

- Exercer a profissão -

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:

Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.

Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

- "Convençam-no" do contrário -

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.

Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

- Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

- Mentira! - disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão, porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.

Construção

Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado