BÍBLIA: LEITURA POPULAR, IGREJA E SOCIEDADE
Para relacionar leitura popular da Bíblia, movimentos sociais, igreja e sociedade, é necessário antever o processo histórico em que cada um desses eventos se insere. Há uma caminhada na base de todos eles.
É interessante notar como a partir da própria história bíblica encontramos fatos que conectam movimentos de libertação das estruturas dominantes, quanto ao poder político, e se utilizam para isso, da força resgatadora da fé e do religioso com toda a gama de simbologia inerente. As histórias de opressão se registram entre todos os povos, mas é a experiência do êxodo bíblico com uma efetiva intervenção de Deus, que se pode assim dizer, abre portas para uma nova visão sobre a relação entre a concepção da pobreza como fator justificado de opressão, e o Deus que rejeita toda sorte de injustiça. Essa visão vai inclusive ajudar nas diásporas, frente ao modo de pensar das comunidades pagãs cujos deuses eram irados, vingativos e opressores.
Na libertação do povo judeu da opressão egípcia surge uma nova concepção social, que terá inclusive implicações nas futuras dominações políticas por parte deste povo. Das leis mosaicas constam requisitos que favorecem aos estrangeiros e aos pobres. O Deus com o qual tiveram uma experiência era também o Deus dos oprimidos.
Conforme afirma o especialista José Luiz Dietrich, ao longo da história, Israel acumulou pelo menos duas vertentes teológicas para uma leitura da Bíblia: Uma das sociedades camponesas, representada pelo profetismo e ideais de justiça, e outra como fruto da monarquia a qual se estabeleceu como teologia oficial, institucionalizada por uma elite religiosa.
Quando da vinda de Jesus, já se conhecia uma nova estratificação da pobreza com interferências de aspectos exclusivistas da religião oficial dominante, sobre ela. A opção de Cristo pelos pobres gerou grandes polêmicas e o levou também à exclusão. Essa opção fica clara a partir de relatos como o registrado em Mt 11.5 em que João, na prisão questiona se haveria de vir outro Cristo, ao que Jesus responde: “ [...] e aos pobres é anunciado o evangelho.” Soma-se a este, diversos outros textos em que os pobres são lembrados e motivos de uma palavra de esperança.
Necessário se faz também compreender a dificuldade que alguns movimentos sociais têm de se regerem por princípios bíblicos, pelo menos os mais básicos que dizem respeito à fé cristã. É que realmente não é fácil contemplar sistemas de opressão nas mãos, na fala, e na prática de quem lê a Bíblia pela ótica de sua satisfação pessoal. Enquanto não houver a recepção da Palavra de Deus como motivação para a promoção da vida e da justiça, continuar-se-á ouvindo histórias como a do missionário cristão ao tentar evangelizar Mahatma Ghundi: “ conheço o teu Deus e sei quem é o teu Cristo, mas não entendo o teu cristianismo”.
A igreja às vezes surge como a “Jerusalém que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados”. A comunidade religiosa se fecha numa leitura ortodoxa da Bíblia. Não que isso seja proibido, pois assim se estabelece outro padrão exclusivista, mas quando isso incide em dar à Bíblia uma interpretação unilateral, contrária a qualquer diálogo, com outras possibilidades, cria-se para igreja uma concepção de gueto. A sociedade reclama uma inserção prática das Boas Novas em seu seio, um pouco mais vivida, maleável, que esteja compatível com aquilo que o fiel faz em sua confissão diária, quando se afirma um pecador carente da graça de Deus. Nessas condições ele se iguala a todos pela promoção do Reino de Deus.
Assim, a igreja, a sociedade e os movimentos sociais poderão fazer sempre sua caminhada em busca de uma leitura e até de uma releitura da Bíblia, mas falar de paz com mãos armadas não funciona. O fator mais preponderante entre todos será sempre o diálogo, a compreensão e o amor.