Breve análise do romance gótico Vathek, de William Beckford
RESUMO
O artigo, intitulado “Breve análise do romance gótico Vathek, de William Beckford”, visa apresentar uma análise literária da obra em questão, ressaltando pontos como foco-narrativo, tempo, espaço, personagens, conteúdo e ideologia.
PALAVRAS-CHAVE: Vathek, William Beckford, Literatura Gótica.
O romance gótico Vathek, escrito em 1782, em francês, pelo escritor aristocrata inglês William Beckford é um dos grandes representantes do gênero narrativo da literatura de terror produzida no século XVIII e XIX. Publicado, aproximadamente, depois de dezoito anos do lançamento do primeiro livro considerado gótico, O castelo de Otranto, de Horace Walpole, o romance de Beckford, muitas vezes acrescentando em seu subtítulo “Um conto árabe”, explora justamente uma das características mais enfatizadas pelos autores românticos do seu período, que trata-se do gosto pelo exótico, ao representar uma história passada num mundo árabe, cheio de encantamentos e de artefatos e costumes desconhecidos do público ocidental.
Em conjunto com a exploração da cultura oriental e o exagero típico que acomete aos românticos, o autor apresenta, em Vathek, características típicas do romance gótico, como: a utilização de enormes palácios, com vastas torres, cadeias de negras montanhas, florestas habitadas por feras selvagens; o terror representado por meio de pactos e ritos macabros, demônio, gênios e vampiros, bem como as punições terríveis àqueles que se entregam ao Mal; inúmeros assassinatos e até mesmo orgias amorosas.
Em Vathek é relatada a história de um poderoso califa do mundo árabe, detentor de inúmeras riquezas, palácios que visavam a saciedade plena dos sentidos humanos e uma torre na qual quase alcançava o céu, onde estudava astrologia, junto com sua mãe, a feiticeira Carathis. Vathek, mesmo sendo muito sábio, não se sentia satisfeito e almejava por mais conhecimentos. Um dia, surge um indiano, de aparência macabra, em seu palácio, com objetos que ele nunca havia contemplado antes, e que lhe são vendidos por um valor meramente simbólico. Vathek tenta descobrir a origem do homem e de onde ele trouxe tais objetos, mas como o indiano se cala, o califa o manda prender e torturar até que fale alguma coisa. O indiano foge, o que faz com que Vathek entre em pânico e seja acometido por uma violenta sede, que mesmo bebendo de todos os líquidos existentes, sua sede nunca é saciada. Quando está às portas da morte, o indiano retorna e o salva com um licor mágico. Vathek perdoa ao homem, de nome Giaour, que retorna ao palácio, tornando-se tão popular ao ponto de despertar a irritabilidade do califa. O Giaour ainda não sana as dúvidas de Vathek, agindo com profundo deboche para com o soberano. Vathek passa a persegui-lo com ferocidade e seus seguidores fazem o mesmo. O indiano consegue fugir tomando a forma de uma bola e adentra uma fresta cavernosa. Desesperado por perder novamente a chance de descobrir a origem das coisas fantásticas trazidas pelo indiano, o califa passa a frequentar a fresta todas as noites. Numa noite, o Giaour atende ao seu chamado e lhe avisa que abriria as portas do inferno, de onde trouxe tais objetos e lhe concederia todo o saber que ele desejava obter, contanto que o califa sacrificasse as cinquenta mais belas crianças do reino. Vathek, que até então era tido como um bom governante, reluta, mas a sua ânsia pelo saber, faz com que pregue uma peça em seu povo e atraia as crianças até um precipício onde as lança. Por conta das artimanhas de sua mãe, o califa é perdoado pelo povo, mas a promessa de Giaour não se concretiza. Carathis acredita que mais sangue inocente deva ser derramado para saciar a sede do demônio e, por meio de um ritual macabro, mata os mais leais servidores do reino. Giaour então se manifesta, dando orientação para onde o califa deveria seguir até encontrá-lo. Vathek sai em comitiva com suas esposas e seus seguidores. No caminho, grande parte do séquito é atacado por feres e perece, a fome também se torna preocupante; até que, um grupo de anões surge e o leva em segurança até uma bela terra habitada por um Emir, sua família e os devotos de Maomé. Lá, Vathek se apaixona perdidamente por Nouronihar, filha do Emir, que já era prometida ao seu primo Gulchenrouz. Com a ajuda das magias de Giaour, o califa tenta enfeitiçar a moça, a família do Emir se revolta e arma um plano para afastar a jovem do hóspede traiçoeiro. Ministram a ela e ao primo um narcótico, que faz com que pareçam mortos e possam escondê-los de Vathek. Os jovens, ao acordar, acreditam que estão mortos e pagando por seus pecados. Num determinado dia, Nouronihar foge do lugar e acaba por reencontrar Vathek, ambos então descobrem os planos do Emir em afastá-los. A comitiva de Vathek foge do lugar e ele, por fim, entrega-se às delícias do amor. Uma de suas esposas, enciumada, escreve à Carathis relatando que Vathek abandonou sua missão por causa de uma mulher; a mãe se revolta e com a ajuda de suas servas e de vampiros, que mais parecem zumbis, descobre o paradeiro do casal e de Gulchenrouz, que resgata da selva e entrega em sacrifício ao Giaour. Carathis se dirige a Vathek e ordena que ele retome a caminhada até chegar à cidadela infernal de Istakhar. Maomé tenta interferir, na tentativa de conceder uma última chance, e manda um gênio disfarçado de pastor alertar Vathek sobre seus pecados. O califa se arrepende, mas sua ambição continua desmedida; ele prossegue e junto com sua amada, é recepcionado por Giaour nas portas negras do Inferno. Ele adentra o reino infernal e é recebido por Eblis, que apresenta-lhe todas as riquezas e poder antes inimagináveis, mas já o adverte que haveria um preço a ser pago: seu coração se inflamaria com o fogo do inferno e sofreria terríveis agruras. Vathek se conscientiza de todos os seus erros, mas isso já não lhe salvaria mais e, percebe que, ao final, possuir todo o conhecimento não lhe serviria para mais nada. Manda buscar a mãe, esta antes de se dirigir ao Inferno, destrói todo o seu reino e se entrega com deleite aos prazeres demoníacos, querendo ter mais poder que o próprio Eblis. Logo ela é punida pelos seus excessos, bem como todos os que para lá foram por conta de suas ambições. Vathek e sua amada passam a se odiar e, antes da perdição final, contemplam as cinquenta crianças inocentes e Gulchenrouz desfrutando da infância eterna e prazeres que eles nunca mais teriam acesso.
William Beckford teria se inspirado em alguns fatos reais para compor sua narrativa gótica, tal como a existência de um califa, obcecado pela sabedoria, por volta dos anos 800 e também pelo que pôde estudar sobre a cultura árabe, já que era versado em diversos idiomas e, principalmente pela influência que os textos das Mil e uma noites causou no seu imaginário. Segundo o próprio autor, levou apenas três dias para compor o romance. O escritor não apenas descreveu uma vida atribulada ao personagem-título, como ele próprio foi uma figura extremamente conhecida em sua época, primeiro pela grande fortuna, considerada uma das maiores de sua época, adquirida diretamente por herança paterna a qual dissipou completamente, o gosto excêntrico pelas artes e arquitetura, e os diversos escândalos sexuais vivenciados com várias mulheres e homens, o que o levou a ser exilado de sua terra natal.
O personagem central da obra, o califa Vathek é um indivíduo detentor de inúmeras posses e também de grande sabedoria, é um governante bom, inicialmente, para o seu povo, mas a ambição desmedida faz com que seu destino seja a mais completa ruína. Os demais personagens que seguem, relatados por ordem de importância na obra são: sua mãe, a feiticeira Carathis, mulher absolutamente sem escrúpulos e que empurra o filho em direção ao seu trágico fim na mãos dos demônios; Giaour, o indiano, que na realidade é um demônio que seduz Vathek com presentes e promessas de alcançar todas as proezas infernais; Eblis, que seria a figura máxima no inferno; Morakanabad e Bababalouk, fiéis servos do califa; Nouronihar, jovem bela e inocente, por quem Vathek se apaixona, e que também acaba corrompida pelas forças demoníacas; o Emir, pai de Nouronihar, que tenta afastar a filha do califa; Gulchenrouz, o primo predestinado a casar-se com Nouronihar e que é entregue ao indiano por Carathis; dentre vários outros, incluindo personagens que representam um todo fantástico na obra como as cinquenta mais belas crianças do reino entregues ao demônio, como primeiro sacrifício de sangue; os fiéis servos do califa e de sua mãe, que em maior parte eram negros como a noite, cegos, mudos e surdos, e que por diversas vezes participavam dos rituais de magia de Carathis; havia também servos eunucos e belas donzelas habitantes do harém do califa; anões de aparência curiosa e vampiros, evocados por Carathis, que funcionam na obra mais como oráculo, do que bebedores de sangue propriamente ditos.
Os espaços presentes na obra são variados e sempre amplos, suntuosos, retratando a excentricidade e riquezas desmedidas atribuídas ao mundo árabe. Dentro desse reino árabe são descritos os diversos palácios do califa, que para cada sentido do corpo humano atribuiu um local fantástico. Ainda há a torre do califa, que visava chegar até as estrelas e é nesse local que trechos significativos da narrativa se constroem como as conversas sobre astrologia entre mãe e filho, o surgimento do indiano, os momentos de desvario que atingiam Vathek; é na torre que Carathis mantém um lugar secreto para seus atos de feitiçaria e também ali se localiza a cela na qual o Giaour foi aprisionado. Tem-se a fresta, por onde o indiano fugiu, a beira do precipício ao qual seriam jogadas as crianças. Ao sair em viagem rumo a Istakhar, o califa e sua comitiva passam por cidades, vales, floresta cheia de ferozes criaturas até chegar à morada dos anões e ao palácio do Emir. Também aparece um local criado, pelo Emir para esconder sua filha de Vathek, uma cabana isolada na selva. Ao final, o califa chega às portas negras do inferno, guardado pelo Giaour e adentra, conhecendo inúmeros palácios e câmaras secretas da morada de Eblir.
Apesar de ser uma história na qual são relatados acontecimentos fantásticos, o tempo pode ser caracterizado como cronológico, pois há marcações temporais explícitas, tais como dias e noites, como se pode constatar nas seguintes passagens:
“Vathek convidou o ancião para jantar, e mesmo para permanecer alguns dias no palácio. Infelizmente, para ele, o venerável ancião aceitou a oferta, pois o Califa, fazendo-o chamar na manhã seguinte...”. (p. 17)
“O pássaro da manhã por três vezes renovara a sua canção quando foi anunciada a hora do Divan”. (p. 23)
“Aconteceu àquela tarde que, depois de deixar o Califa no prado, ela correu com Gulchenrouz pela relva verde”. (p. 80).
O foco-narrativo utilizado por William Beckford foi em terceira pessoa, com um narrador onisciente, que conhece os pensamentos e ânsias mais secretos de suas personagens, o que faz com que a narrativa se torne ainda mais fantástica, pois o leitor consegue captar todas as emoções e maldades presentes na obra. Uma passagem que comprova a onisciência narrativa poderia ser:
“Não foi pouca a satisfação de Vathek diante dessa alegria, pois percebeu que só podia beneficiar o seu projeto. Simulou grande afabilidade para com todos”. (p.31)
Sobre a temática da obra fica evidente o posicionamento de William Beckford pela busca desenfreada ao saber, pois é justamente essa ânsia que corrompe ao personagem-título. Esse tema tem sido uma constante na literatura gótica, como se pode comprovar em obras como Frankenstein de Mary Shelley, na qual um cientista tenta criar a vida e acaba por formar um ser abjeto e monstruoso que será sua perdição e a de sua família posteriormente; O médico e o monstro de Robert Louis Stevenson, em que, também um cientista cria uma poção fantástica que acaba por transformá-lo num monstro, revelando sua outra personalidade macabra diante da sociedade; Drácula, o vampiro da noite de Bram Stoker, na qual um jovem advogado acaba por sofrer com as perseguições do vampiro por querer saber demais sobre a sua vida, dentre vários outros romances do gênero.
O saber é visto pelos escritores góticos como algo amedrontador, com espanto e digno de repreensão. Os personagens caem em desgraça por querer saber mais do que é o permitido pelas divindades. Isso mostra o reflexo do que acontecia na Europa dos séculos XVIII e XIX, agitada pelas Revoluções Francesa e Industrial, que trouxeram novas formas de pensar ao homem do período. As pessoas se atemorizavam com o que não conheciam e acreditavam que deviam permanecer na ignorância diante das coisas novas e monstruosas que o mundo estava então apresentando diante de seus olhos, como os avanços na medicina, o descobrimento da eletricidade e formas de vida até então desconhecidas; elas se questionavam se isso, de fato, era permitido, se não pagariam futuramente por sua audácia em querer provar e descobrir coisas que durante tantos séculos permaneceram omitidas. Isso não significa que os autores góticos enfatizavam a ignorância como única forma de felicidade e paz, mas sim que eles refletiam e colocavam em seus textos o imaginário coletivo da época, pois eles acreditavam que devia haver um limite para o saber. O papel de romper com todos os limites adveio com a Contemporaneidade e as análises que esta faz das obras clássicas do passado e também do presente.
O indivíduo romântico vivia num mundo ainda de dúvidas e questionamentos, após a dominação da literatura que cultuava aos clássicos gregos durante tantas eras e o terror provocado pelo pensamento religioso nos séculos que os antecederam. O romance gótico é o reflexo da turbulência que transcorria nas almas das pessoas dos séculos XVIII e XIX, e deve, portanto ser visto como tal. Cabe ao leitor entender o contexto sócio-histórico-cultural da obra gótica para compreendê-la em sua plenitude.
Vathek é uma obra que apresenta esse questionamento sobre a ânsia pelo saber e explora isso com toda a riqueza de expressões e características típicas da literatura romântica de seu período, o que a torna ainda mais encantadora diante de seus leitores ocidentais e digna de ser refletida e analisada constantemente. William Beckford criou uma obra-prima da literatura gótica em que, ele também, explora o desconhecido mundo oriental. No final, mesmo sendo uma advertência para se ter cuidado com a loucura pelo conhecimento, o romance acaba por transmitir ainda mais ensinamentos.
BIBLIOGRAFIA
BECKFORD, William. Vathek. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997, 139p.
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