Sussurros de outrora

Em plena flor da juventude e cheio de sonhos, estava Eriberto a vagar pela sinuosa estrada da fazenda Boa Absolvição. No caminho, tropeça numa pedra e vem a cair. Na queda, sentira que o joelho direito sofrera um leve corte... Curva-se ante a singela e dorida ferida... Observa-a... Nesse entremeio, uma suave brisa a face lhe oscula. Um cheiro de relva às narinas graciosamente invade. Na mente desperta borbulha o desejo de reencontrar a sua amada, cujos idos sonhos de menino foram mitigados pelas mudanças repentinas de uma vida desfigurada pela irrespirável fumaça do destempo. Imagens pueris em meio à dor amenizavam o instante que lhe consumava a alma e sufocava-lhe o espírito...

Lembra-se de que, quando tinha sete anos, conhecera uma menina da mesma idade. Seus pais tinham acabado de chegar de terras distantes e alugara uma casa defronte à sua. Seu genitor era uma pessoa sábia e bondosa, e, a sua mãe, ao contrário dele, era uma pessoa malévola. Ficou-se sabendo anos depois do ar em vivência de que ela não era sua genitora verdadeira, mas sim madrasta... – E das mais indigestas...

Às asas do vitrô entreaberto das casas, os dois, sob as lentes da inocência, se entregavam às acriançadas conversas... O pai dela saía todo o dia para a labuta com intuito de advogar. Quando retornava, chegava sempre à noitinha e cansado. Já a Madrasta vivia sempre vigiando Eriberto quando se aproximava dela para brincar de pega-pega pelas vielas íngremes do bairro, de escrever sobre os encantamentos da natura, de ouvir o gorjear dos pássaros nos galhos quase desnudos da laranjeira... Isso, quando não puxava as orelhas dela, à toa, num ar rompante e desconexo.

Às vezes, aos berros, gritava como uma gralha desenfreada: - Vá já pra dentro sua ‘pestinha’ ou lhe chinelo, pois não quero vê-la brincando com ninguém e muito menos com esse pirralho de quinta... Sentida, e com lágrimas nos olhos, muitas vezes se despedia do amicíssimo infante recolhendo-se ao aposento de seus dias mais penumbrados. E ele, sob o manto da humildade e de sua amizade entrecortada pelas ferinas falas dessa mulher sem coração, assentia embevecido de solidariedade para com a circunstância em que a envolvia...

O inverno se aproximou e com ele a pequena Florisbela para longe levou. Pois, o pai dela não contente com a morada e o com escasso trabalho que minguava aos pouco, mudaram para São Paulo levando consigo toda a esperança que ora se lhes descortinavam... A madrasta, com um riso sardônico, debochou à lágrima doída daquela angelical flor adoecida de amor por querer ali ficar e sonhar... As vontades estilhaçadas pelo convívio da querência de ambos se perderam no oceano da amargura... Apagaram-se também nas ondas da inocência os rastros lúdicos... Noctívagas notícias calaram-se ao vácuo... Nada mais se ouviu deles. Na memória os sublimes reflexos o gênio doentio à fronte enfebrecida deturpava: pálida sombra que de uma insana saudade a imagem o autorretrato do ontem a si fulgurava... Solerte o enlevo à posteridade presumia: de que um dia sob a abobada celeste de um sinistro porvir no além-horizonte o estelar brilho perderia...

De súbito, se desperta. Vê a arbórea floresta tatear a curvilínea estrada com a sombra da copa entrelaçada pelos verdores da natura. Agigantada pelo esplendor luxuriava-se em folhas verde-negras na maciez das plumas debruadas. Atinam-se os anseios, e em uníssono som, grita: - É ela! É ela! É ela!... Aproxima-se... Decepciona-se com a repentina visão: uma senhora às retinas os joelhos nus curvaram-se diante de si. Reconhece-a: a enfadonha madrasta de outrora... No cadavérico semblante o arrependimento ante o passado maledicente por si já destinado: a do subjetivo calvário... Clama pelo perdão ensimesmado do ontem que à perversidade para trás havia deixado e que agora a sua alma precisava se reconciliar com o abstrato cotidiano do agora em face das mazelas vividas e semeadas... E lhe exclama com suave advertência: - Retorne, meu filho! Pois o sonho a que tanto almejava se desfez como a neblina ao sol, quando à flor daqueles dias de angustia e de incertezas os laços do destino foram interrompidos pela rispidez de minha fealdade... Infelizmente, dessa má querência não só o sorriso dela se apagou a muito numa sinuosa curva, mas a de seu pai e a mim também, que agora se lhe ajoelha e pede perdão pela inumana e abrolhada verdade...

Ao ouvir as minúcias do terno arrependimento dita pela fantasmagórica senhora, lágrimas de dor escorreram-lhe o semblante... Do vulto desbotado um cristal fleche lunar o coração de Eriberto transpassa, e, num ato de compaixão, a perdoa... Da imagem senil um feixe de luz o céu alcança e idilicamente se desfaz... Desaparece nas sombras obscuras do abstrato... Reequilibra-se à repentina visão e retorna ao caminho de dantes... De volta ao oriente de seus dias à vida retorna guardando junto ao balaústre da memória a angelical lembrança do quão importante lhe fora essa infância...

Pálido poeta
Enviado por Pálido poeta em 17/03/2011
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