OS ESTUDOS CULTURAIS E A RELAÇÃO COM A LITERATURA DE CORDEL
OS ESTUDOS CULTURAIS E A RELAÇÃO COM A LITERATURA DE CORDEL
Leandro Freitas Menezes – UFES
Resumo: Este artigo se divide em três partes. A primeira mostra um panorama geral sobre a Literatura de Cordel relacionado à sua história, suas características e a uma visão atual sobre esse tipo de literatura. A segunda parte apresenta a vida e a obra de Patativa do Assaré e a terceira uma visão resumida sobre as abordagens mais recorrentes dos estudos culturais. Após isso, descrever-se-á por meio de análise, alguns pontos de intercessão entre as teorias dos estudos culturais e a obra de Patativa, tomando por base alguns de seus poemas.
Palavras chave: Literatura de Cordel; Estudos Culturais; Patativa do Assaré.
1- Introdução
As pesquisas de Cavignac (1997) e Diégues Jr. (1975) mostram que a Literatura de Cordel teve sua procedência em Portugal. Essa literatura era difundida em forma de folhetos e retratava a vida cotidiana, falava de romances ou de novelas de cavalaria, trazia narrativa de guerras ou de viagens marítimas e, além disso, era divulgada até mesmo a poesia erudita, como a de Gil Vicente, por exemplo. O motivo pelo qual os portugueses utilizavam o cordel para esse fim reside no fato de, no séc. XVI, não existir a imprensa, assim, tão logo a imprensa foi fundada, houve uma decadência no uso do cordel. De Portugal a Literatura de Cordel veio para o Nordeste provavelmente entre o séc. XVI e XVII. No fim do séc. XIX e inicio do séc. XX aparece Leandro Gomes de Barros , famoso repentista e um dos maiores nomes da Literatura de Cordel, pois ele foi responsável pela divulgação do Cordel do nordeste para muitas outras regiões. O nordeste foi o ambiente propício para a gênesis desse tipo de literatura por questões étnicas e sociais, tais como: a organização da sociedade patriarcal; o surgimento de manifestações messiânicas; o aparecimento de bandos cangaceiros; as secas periódicas, provocando desequilíbrios econômicos e sociais; as lutas de família. Esses fatores propiciaram o surgimento de grupos de cantores que expressavam em suas canções o pensamento coletivo e a memória popular. As canções são apresentadas pelos cantadores de duas formas: a primeira é a tradicional, em que se elabora a canção antecipadamente; a segunda é a improvisada, em que geralmente se elabora a canção na hora. A versificação utilizada em geral é a sextilha hexassilábica ou a décima heptassilábica de rimas contínuas. Os temas utilizados são diversos e houve no Brasil pelo menos duas classificações dessas canções: a primeira de Leonardo Mota (1921) em Cantadores; a segunda deve-se a Casa Rui Barbosa sob a orientação de Cavalcante Proença.
Hoje, a Literatura de Cordel, considerada uma forma de cultura popular, é muitas vezes “[...] associada a certo número de representações negativas que a situam ao lado da literatura menor, em oposição à Literatura” (DEBS, 2000, p. 11). Ainda a propósito dessa discriminação social à literatura popular, a estudiosa Julie Cavignac (1997) mostra que existe uma dualidade no que diz respeito à representação do nordeste. Ela diz que, ao mesmo tempo em que é considerado o berço da cultura brasileira, terra dos poetas e das tradições, o Nordeste também é visto como uma região de selvagens e de místicos, sem história e sem cultura. Assim, o sertão é tido como uma sociedade arcaica e o sertanejo como um homem primitivo . A autora continua dizendo que essa imagem que se faz do sertão é imutável e o Cordel é visto apenas como resquício de uma literatura vinda de Portugal e não como a expressão escrita da poesia e da alma do sertão. Apesar disso, Debs (2000) salienta que a poesia popular independentemente de toda a tradição literária e de toda a aprendizagem ou respeito às regras acadêmicas, e ainda que seja elaborada por cantadores do meio rural que são, em geral, analfabetos, apresenta êxitos dignos de serem reconhecidos.
O objetivo geral deste trabalho é, dentro da situação contextual da Literatura de Cordel como arte popular, analisar e apresentar a poesia lírica e o estilo de um dos grandes nomes do nordeste: o poeta Patativa do Assaré.
3- A Vida e a Obra de Patativa do Assaré
O poeta nordestino Antônio Gonsalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, teve esse apelido popular em homenagem à cidade onde nasceu e a uma saudosa ave do sertão. Ele é de origem humilde assim como seus conterrâneos. Nasceu filho de lavrador, oficio de que se ocupou desde os oito anos de idade, por esse motivo não pôde freqüentar a escola, tendo aprendido precariamente a ler e a escrever sozinho. No entanto, algo que marcou profundamente a sua vida foi à literatura de cordel, pela qual foi influenciado ainda muito novo, mas suas primeiras composições foram feitas a partir dos 14 anos. Daí por diante, elas se tornaram cada vez mais freqüentes e também não se pode esquecer que tiveram grande influência dos poetas clássicos, por exemplo: Camões. Aos 20 anos de idade, Patativa tornou-se um poeta itinerante, tendo feito diversas viagens e compartilhado sua obra com diversos poetas e cantores. Mais tarde, retornou ao seu lugar de origem e voltou a lavrar a terra que recebeu como herança de seu pai e nunca quis ganhar dinheiro com suas composições artísticas.
A obra de Patativa é riquíssima e sua marca é a oralidade, a fala típica do sertanejo. O tema principal é a vida do nordestino, assunto tratado pelo poeta em tom de crítica social, mas sua poesia é muito mais que uma crítica de cunho sociológico, pois ele se aprofunda subjetivamente nessas questões, de forma que sua vivência sofrida, porém motivada, é concretizada em seus versos, e a isso se juntam as rimas e a cadência dos versos que se alternam em sílabas fracas e fortes ajudando o crítico ou o leitor comum a compartilhar, com o autor, os efeitos produzidos por esses recursos e a ser tocado pela mesma motivação que tocou o poeta. Assim, pode-se ver perfeitamente Patativa falar sobre: o amor pela terra e pelas paisagens, que são verdadeira fonte de inspiração; sobre a compaixão por aqueles que compartilham com ele os dissabores do clima árido, o labor diário na lavoura e outros afazeres de subsistência; o descaso pelas autoridades; a exploração patronal; o pensamento místico e a vida religiosa; a efemeridade da vida.
Há dualidade nos poemas de Patativa, quando fala do sertão e da cidade, do rico e do pobre, do progresso e do rudimento das técnicas de trabalho, de maneira que todos esses temas, juntos, caracterizam a filosofia e o estilo do escritor fazendo-nos ver uma marca que lhe é peculiar e que jamais poderia ser encontrada em outro com tanta paixão.
4- Os Estudos Culturais
Em todo o contexto histórico da humanidade, sempre existiram os dominadores e os dominados e, isso pode ser visto no Contrato Social de Rousseau, quando ele diz que o processo dominante começou no momento em que um homem cercou um pedaço de terra, tomando posse dela e, consequentemente, fazendo homens dependente de si. Pode-se ver também nos estudos de Marx sobre o materialismo histórico, quando o ele falou sobre o modo de produção escravagista, o modo de produção feudal e o modo de produção capitalista. Há ainda as teorias naturalistas que mostram que o homem é um ser que tem a tendência natural de se associar: o homem não consegue viver só. Dessa forma, isso teria dado origem à sociedade, em que o homem suprime parte de sua liberdade para viver em função de normas e regras coletivas.
Todos os pressupostos apresentados são importantes para mostrar a dominação no campo político e material sobre os homens. Porém, esse tipo dominação não aconteceu apenas pela força, mas também por meio da chamada dominação cultural. Tal dominação acontece quando uma etnia se intitula melhor do que a outra pelos seus méritos de conhecimento acumulado. É nesse sentido que a palavra “cultura” se torna preconceituosa ao ser apropriada por tais pessoa que pensam assim. Sobre esse conjunto de conhecimento acumulado, Reis (1992) explica que inicialmente só existia a linguagem oral e os conhecimentos e os saberes eram passados as gerações seguinte dessa forma. Posteriormente, com o advento da escrita todos os conhecimentos puderam ser escritos em livros e, assim, se tornou possível que um povo ou uma pessoa adquirisse os conhecimentos de outros povos que até então não era possível. Assim, com a posse de um número maior de conhecimento, aquele que o possui acha-se no direito de dominar sobre outros povos menos favorecidos.
O pensamento tradicional e elitizante sempre esteve presente. Cevasco (2003) exemplifica isso ao comentar sobre o processo da expansão marítima e da revolução industrial. Dois momentos em que o europeu julgando-se superior aos outros povos e usando a desculpa de que precisavam ser civilizados e precisavam também de cultura, partiram para o seu empreendimento de conquista.
Um ponto auto da tradição cultural foi marcado pelo pensamento de Matthew Arnold (1822-1898) nos fins do sec. XIX. Nesse período havia grande conturbação política e social e a religião, desacreditada, já não cumpria mais seu papel apaziguador, por isso a literatura para Arnold seria o melhor remédio para a sociedade. Sua teoria visava fazer com que a sociedade se tornasse melhor por meio do conhecimento e “cultura”. Os principais tópicos da teoria de Arnold são: a) a cultura deveria ser estudada e cultivada separado das questões sociais e políticas, diferentemente do que acreditava, que no passado a ideia de cultura e sociedade eram fundidas, e segundo ele esse modelo não se aplicava a sociedade vigente; b) assim, a cultura não era mérito de todos, mas de uma minoria que seria responsável por difundi-la, fazendo de forma paternalista. Arnold fez muitos discípulo e conseguir levar a frente sua teoria debaixo de muitas críticas.
Em 1950, a partir desse pensamento tradicional e exclusivista de Arnold, Williams viu uma grande oportunidade para mudá-lo. Essa mudança visava transformar a cultura de minoria em uma cultura comum, em outras palavras, tinha o objetivo de resgatar os da “cultura de baixo” e os nivelar com os da alta cultura na produção de sentidos e de valores formados na comunidade e que pudesse ser vivido por todos.
O surgimento dos estudos culturais está intimamente relacionado à mudança da concepção de cultura. Maria Elisa Cevasco defende que as mudanças semânticas da palavra cultura encapsulam e informam reações às intensas mudanças sociais. Assim, ao lado da acepção tradicional, que entende a cultura como desenvolvimento espiritual e estético bem como algo separado das relações reais e materiais, os estudos culturais a entende na sua acepção antropológica. Aqui, cultura é definida como um modo de vida e é produzida de forma mais abrangente do que pela elite social que se apropriava dela (CEVASCO, 2003).
Há nos estudos culturais, portanto, uma dilatação do conceito de cultura ampliando a sua abrangência. Dessa forma, cultura não é sinônimo de arte, e nem de algo produzido apenas pelas classes mais favorecidas ou dominantes . Todos os modos de vida fazem parte da cultura, e ela não é descolada da realidade material. Logo, são produtores de cultura tanto Carlos Drummond de Andrade como Patativa do Assaré. Mas, por que a tradição acadêmica considera o primeiro uma obra canônica (ou de alta literatura) e o segundo literatura menor? A razão está na adoção da acepção tradicional de cultura, considerando como cânone a obra escrita dentro dos padrões estabelecidos pela elite cultural. Nas palavras de Roberto Reis
[...] o conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se desvincular da questão do poder; obviamente, os que selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.) [...] (REIS, 1992).
Isto posto, fica claro pensarmos os motivos da não canonização dos textos escritos por Patativa do Assaré. Eles supostamente não apresentam verdades universais e valores estéticos porque não são escritos por alguém enquadrado nos padrões da elite cultural. Nem tão pouco fazem parte da cultura na sua acepção tradicional. Ou seja, são excluídos em uma seleção que atende a interesses da classe que seleciona.
5- Análise do Poema “O Sabiá e o Gavião”
O poema é narrado em primeira pessoa e, no decorrer de todo ele, pode-se perceber as marcas da subjetividade do eu lírico .
O título "O sabiá e o gavião" apresenta a temática sobre a qual o texto tratará. Observa-se que ele é bastante direto, composto apenas de artigo definido e substantivo; outra particularidade que se pode observar é a oposição que existe entre os dois pássaros: o sabiá, ave típica com canto melodioso que encanta e alegra; e o gavião ave destituída dessas características e que, por se alimentar de outras aves, é considerado mau.
O poema apresenta vinte e quatro estrofes com dez versos (décima) que se alternam entre sete sílabas poéticas, sendo o verso formado pela célula rítmica pé trocaico ou troqueu. Embora a estrutura do poema seja considerada clássica, esse tipo de estrutura é muito usado na poesia popular, especialmente na literatura de cordel (CAVIGNAC, 1997). As rimas são externas: sendo que os primeiros quatro versos são alternados, o quinto e o sexto são emparelhados e os quatro últimos versos são interpolados. Quanto às internas pouco se pode perceber, e as aliterações e assonâncias que aparecem não têm sentido relevante para o texto em geral. Quanto ao som, as rimas acontecem segundo a posição do acento tônico e geralmente são agudas, porque na maioria das vezes rimam com palavras oxítonas ou com monossílabos tônicos; também podem aparecer como graves quando rimam com paroxítonas. Quanto à função vocabular, as rimas se intercalam entre pobres e ricas.
Um recurso natural, usado pelo autor e que contribui com as rimas e, conseqüentemente, com o sentido do texto, é a linguagem oral regional empregada por ele. Por exemplo, ocorre com certa freqüência a permuta entre um fonema e outro, mostrando o estilo oralizado do sertanejo: armoçá/ frauta/ resorvê/ disciprina. Outro traço importante é a ausência de marca de plural: das coisa boa/ os passarinho cantá/ muitas vez/ dos anima. Pode-se detectar a supressão de fonemas no final das palavras, como em: amá/ fazê/ qué/ sê/ animá/ miserave/ naturá/ celestiá. Sintaticamente, o texto apresenta "erros" de acordo com a norma culta, por exemplo, na expressão mais pió de que a serpente, pode-se ver que o advérbio pior está empregado como um comparativo de superioridade, porém nesse caso deveria usar um advérbio de modo.
O poema trata de uma experiência vivida pelo poeta, em que se pode perceber, no encadeamento dos versos, a expressão, os seus pensamentos, os seus juízos sobre o que descreve e a afetividade com que trata do assunto. No início, o autor faz afirmações deixando bem claro aquilo que ele é em relação aos demais sou cabôco rocêro e, em seguida, cita a falta de amor e de carinho das pessoas pelos animais. Na segunda estrofe ele diz sou bem deferente e, em seguida, exalta a natureza, especialmente o canto das aves. Na sétima, podemos ver o pensamento místico do sertanejo por meio de figuras do cristianismo quando ele trabalha com um antagonismo: o bem (Deus) no momento em que se refere ao sabiá, e o mal (diabo) no instante em que se refere ao gavião. A partir da oitava estrofe, o poeta deixa clara a evidência de sua experiência ao retomar um fato acontecido em sua infância para, na nona estrofe, voltar no tempo e narrar os fatos acontecidos: diz o poeta que saiu para um lugar próximo a sua casa num pé de juá para escutar o canto dos pássaros. Encontrou ali um ninho com dois filhotes de sabiá. Desde então, aqueles pássaros significaram muito para ele, pois se podem perceber, ao ler o poema, o amor e a ternura que envolveram o poeta. No décimo quarto verso, ele diz: Mas, tudo na vida passa - mostrando a efemeridade da vida. Certo dia, ele acordou e o dia era diferente dos demais, parecia mais triste e sombrio, então, mais que depressa, foi ver o ninho e não encontrou senão o casal de sabiás cantando a falta dos filhotes. Com isso, pode-se notar a compaixão extrema nas palavras do repentista. Na vigésima quarta estrofe, Patativa descreve a malvadeza feita pelo gavião, dizendo: Pois o gavião marvado/chegou lá e fez o que quis. /Os dois fiote tragou,/O ninho desmatelou..., por isso, já ao final do verso, ele mostra toda a sua indignação. Depois de toda essa narração, no vigésimo terceiro verso, Patativa fala a respeito do povo da cidade grande, o que nos dá uma idéia da dualidade cidade grande X sertão, o que é uma marca freqüente ao longo de toda a sua obra.
Após a leitura, pode-se dizer seguramente que “O Sabiá e o Gavião” corresponde a uma metáfora que marca o eu lírico tão presente no poema, pois a experiência à qual o poeta se refere é a concreta vivida e incorporada por ele durante sua vida, porém, não é a simples realidade de que ele fala, mas uma realidade trabalhada por sua subjetiva vivida, pelas suas emoções interiores submetidas aos seus juízos de valor. O poema constitui uma crítica social as condições de vida impostas pelos grandes latifundiários, que praticamente escravizam os pequenos produtores e os meeiros. E o ponto chave dessa crítica está exatamente da dualidade existente entre o gavião e o sabiá. Na obra de Patativa essas dualidades são recorrentes, como exemplo, pode-se observar o poema “Ingém de ferro” onde ele fala também do pequeno produtor versus os latifundiários criticando-os; outra se pode observar no poema “Cante lá que eu canto cá” onde ele fala de si próprio versus o poeta da cidade e os modos diferentes de conceber essas produções.
Dessa forma, podem-se entender os motivos que levaram o poeta a juntar todos esses recursos para glosar seu mote. Na verdade, vendo o sofrimento do nordestino com a seca e a miséria, a opressão dos ricos fazendeiros sobre os trabalhadores e observando, também, o completo descaso do povo da cidade e das autoridades na resolução desses problemas, isso já seria motivo suficiente para Patativa metaforizar sua experiência no poema.
6- Considerações Finais
Os estudos culturais vieram a contribuir para se entender a produção cultural com um todo e que, portanto não pode ser algo abstrato como diz Arnold, mas está completamente atrelada a vivência e as experiências concretas como se pode observar o modo como são concebidos os poemas tanto por Patativa quanto para Drummond. Pautada nessa concepção, a cultura deixa de ser exclusivista e pertencente a um pequeno grupo e passa a integrar o todo.
Nos poemas de Patativa podem-se observar os cenários descritos por ele a respeito do cotidiano, da vida do lavrador, das imposições dos ricos e outros. Por outro lado, observa-se também a crítica de Patativa presente nos poemas contra todas as injustiças cometidas contra os menos favorecidos. Isso está em completa consonância com a teoria dos estudos culturais, na medida em que critica o pensamento tradicional e dominante com o objetivo de resgatar os da “cultura de baixo” e nivelá-los com os da alta cultura.
Com esse conhecimento de que a cultura passa a integrar o todo, pode-se olhar a obra de patativa com outros olhos. O estudo da forma crítica da Literatura de Cordel mostra que esse tipo de literatura deveria ser mais conhecido e mais divulgado. Uma das provas de que o país pouco se interessa por esse tipo de literatura é a pouca divulgação e os poucos teóricos e críticos existentes no Brasil. Assim, com esse descaso quase generalizado, a dita poesia popular fica relegada ao segundo plano, sendo taxada como poesia ruim de temas e idéias simples; de fácil versificação e de rimas banais; de ingenuidade de sentimentos expressos; com falta de originalidade e criatividade; com pobreza vocabular; com recursos estilísticos limitados; e com uma simbologia indigente. O modo como a sociedade enxerga a poesia popular, especialmente a nordestina, é errôneo porque, como Debs (2000) argumenta, essa é uma poesia que tem êxitos e deve ser reconhecida. O argumento da autora se sustenta no próprio estudo sobre o poeta Patativa do Assaré, considerado um dos grandes poetas sertanejos.
Referências
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• CAVIGNAC, Julie. La littérature de colportage au Nord-Est du Brésil. De l’histoire éscrite ao récit oral. Paris : CNRS Édtions, 1997.
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• DEBS, Sylvie. Patativa do Assaré: uma voz do nordeste. São Paulo: Ed. Hedra, 2000.
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• MAXADO, F. O que é Literatura de Cordel? Rio de janeiro: Ed Codecri, 1980.
• MICHELETTI, Guaraciaba. Estilística: um modo de ler poesia. São Paulo: Androsa, 2006.
• REIS, Roberto. “Cânon”. In: JOBIM, José Luis (org.) Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Anexo A
O sabiá e o Gavião
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Eu nunca falei à toa.
Sou um cabôco rocêro,
Que sempre das coisa boa
Eu tive um certo tempero.
Não falo mal de ninguém,
Mas vejo que o mundo tem
Gente que não sabe amá,
Não sabe fazê carinho,
Não qué bem a passarinho,
Não gosta dos animá.
Já eu sou bem deferente.
A coisa mió que eu acho
É num dia munto quente
Eu i me sentá debaxo
De um copado juazêro,
Prá escutá prazentêro
Os passarinho cantá,
Pois aquela poesia
Tem a mesma melodia
Dos anjo celestiá.
Não há frauta nem piston
Das banda rica e granfina
Pra sê sonoroso e bom
Como o galo de campina,
Quando começa a cantá
Com sua voz naturá,
Onde a inocença se incerra,
Cantando na mesma hora
Que aparece a linda orora
Bejando o rosto da terra.
O sofreu e a patativa
Com o canaro e o campina
Tem canto que me cativa,
Tem musga que me domina,
E inda mais o sabiá,
Que tem premêro lugá,
É o chefe dos serestêro,
Passo nenhum lhe condena,
Ele é dos musgo da pena
O maiô do mundo intêro.
Eu escuto aquilo tudo,
Com grande amô, com carinho,
Mas, às vez, fico sisudo,
Pruquê cronta os passarinho
Tern o gavião maldito,
Que, além de munto esquisito,
Como iguá eu nunca vi,
Esse monstro miserave
É o assarsino das ave
Que canta pra gente uví.
Muntas vez, jogando o bote,
Mais pió de que a serpente,
Leva dos ninho os fiote
Tão lindo e tão inocente.
Eu comparo o gavião
Com esses farão cristão
Do instinto crué e feio,
Que sem ligá gente pobre
Quê fazê papé de nobre
Chupando o suó alêio.
As Escritura não diz,
Mas diz o coração meu:
Deus, o maió dos juiz,
No dia que resorveu
A fazê o sabiá
Do mió materiá
Que havia inriba do chão,
O Diabo, munto inxerido,
Lá num cantinho, escondido,
Também fez o gavião.
De todos que se conhece
Aquele é o passo mais ruim
É tanto que, se eu pudesse,
Já tinha lhe dado fim.
Aquele bicho devia
Vivê preso, noite e dia,
No mais escuro xadrez.
Já que tô de mão na massa,
Vou contá a grande arruaça
Que um gavião já me fez.
Quando eu era pequenino,
Saí um dia a vagá
Pelos mato sem destino,
Cheio de vida a iscutá
A mais subrime beleza
Das musga da natureza
E bem no pé de um serrote
Achei num pé de juá
Um ninho de sabiá
Com dois mimoso fiote.
Eu senti grande alegria,
Vendo os fíote bonito.
Pra mim eles parecia
Dois anjinho do Infinito.
Eu falo sero, não minto.
Achando que aqueles pinto
Era santo, era divino,
Fiz do juazêro igreja
E bejei, como quem bêja
Dois Santo Antõi pequenino.
Eu fiquei tão prazentêro
Que me esqueci de armoçá,
Passei quage o dia intêro
Naquele pé de juá.
Pois quem ama os passarinho,
No dia que incronta um ninho,
Somente nele magina.
Tão grande a demora foi,
Que mamãe (Deus lhe perdoi)
Foi comigo à disciprina.
Meia légua, mais ou meno,
Se medisse, eu sei que dava,
Dali, daquele terreno
Pra paioça onde eu morava.
Porém, eu não tinha medo,
Ia lá sempre em segredo,
Sempre. iscondido, sozinho,
Temendo que argúm minino,
Desses perverso e malino
Mexesse nos passarinho.
Eu mesmo não sei dizê
O quanto eu tava contente
Não me cansava de vê
Aqueles dois inocente.
Quanto mais dia passava,
Mais bonito eles ficava,
Mais maió e mais sabido,
Pois não tava mais pelado,
Os seus corpinho rosado
Já tava tudo vestido.
Mas, tudo na vida passa.
Amanheceu certo dia
O mundo todo sem graça,
Sem graça e sem poesia.
Quarqué pessoa que visse
E um momento refritisse
Nessa sombra de tristeza,
Dava pra ficá pensando
Que arguém tava malinando
Nas coisa da Natureza.
Na copa dos arvoredo,
Passarinho não cantava.
Naquele dia, bem cedo,
Somente a coã mandava
Sua cantiga medonha.
A menhã tava tristonha
Como casa de viúva,
Sem prazê, sem alegria
E de quando em vez, caía
Um sereninho de chuva.
Eu oiava pensativo
Para o lado do Nascente
E não sei por quá motivo
O só nasceu diferente,
Parece que arrependido,
Detrás das nuve, escondido.
E como o cabra zanôio,
Botava bem treiçoêro,
Por detrás dos nevoêro,
Só um pedaço do ôio.
Uns nevoêro cinzento
Ia no espaço correndo.
Tudo naquele momento
Eu oiava e tava vendo,
Sem alegria e sem jeito,
Mas, porém, eu sastifeito,
Sem com nada me importá,
Saí correndo, aos pinote,
E fui repará os fiote
No ninho do sabiá.
Cheguei com munto carinho,
Mas, meu Deus! que grande agôro!
Os dois véio passarinho
Cantava num som de choro.
Uvindo aquele grogeio,
Logo no meu corpo veio
Certo chamego de frio
E subindo bem ligêro
Pr’as gaia do juazêro,
Achei o ninho vazio.
Quage que eu dava um desmaio,
Naquele pé de juá
E lá da ponta de um gaio,
Os dois véio sabiá
Mostrava no triste canto
Uma mistura de pranto,
Num tom penoso e funéro,
Parecendo mãe e pai,
Na hora que o fio vai
Se interrá no cimitéro.
Assistindo àquela cena,
Eu juro pelo Evangéio
Como solucei com pena
Dos dois passarinho véio
E ajudando aquelas ave,
Nesse ato desagradave,
Chorei fora do comum:
Tão grande desgosto tive,
Que o meu coração sensive
Omentou seus baticum.
Os dois passarinho amado
Tivero sorte infeliz,
Pois o gavião marvado
Chegou lá, fez o que quis.
Os dois fiote tragou,
O ninho desmantelou
E lá pras banda do céu,
Depois de devorá tudo,
Sortava o seu grito agudo
Aquele assassino incréu.
E eu com o maiô respeito
E com a suspiração perra,
As mão posta sobre o peito
E os dois juêio na terra,
Com uma dó que consome,
Pedi logo em santo nome
Do nosso Deus Verdadêro,
Que tudo ajuda e castiga:
Espingarda te preciga,
Gavião arruacêro!
Sei que o povo da cidade
Uma idéia inda não fez
Do amô e da caridade
De um coração camponês.
Eu sinto um desgosto imenso
Todo momento que penso
No que fez o gavião.
E em tudo o que mais me espanta
É que era Semana Santa!
Sexta-fêra da Paixão!
Com triste rescordação
Fico pra morrê de pena,
Pensando na ingratidão
Naquela menhã serena
Daquele dia azalado,
Quando eu saí animado
E andei bem meia légua
Pra bejá meus passarinho
E incrontei vazio o ninho!
Gavião fí duma égua!