A PAISAGEM DO CAATI NA MEMÓRIA DO RAÍDO

A PAISAGEM DO CAATI NA MEMÓRIA DO RAÍDO

Serley dos Santos e Silva

Resumo: Discute-se a presença de duas memórias na poética de Helio Serejo. A primeira se processa na memória do raído. Uma percepção metafórica permite observar a construção dessa memória, por meio de paisagens fortalecidas como imagem do caati. Essa paisagem denuncia em primeira instância a agregação de elementos nessa memória. A segunda memória se estende à construção de uma memória mimética, que se vincula a memória autoral, indício preliminar e substancial do narrado. As histórias dos ervais são fortalecidas na memória autoral, transmitidos à memória mimética em um campo relativo de subjetividade.

Palavras-chave: Memória; Caati; Raído; Mimético; Paisagem.

Abstract: We discuss the presence of two memories in the poetry of Helio Serejo. The first takes place in memory of the raído. A metaphorical sense to observe the construction of this memory through landscapes strengthened as a picture of caati. This scene betrays primarily the aggregation of elements in that memory. The second memory extends to the construction of a mimetic memory, which is linked to memory copyright, preliminary evidence and substantial narrated. The stories of herbals are strengthened copyright in memory, transmitted to the memory mimetic in a related field of subjectivity.

Keywords: Memory; Caati; Raído; Mimetics; Landscape.

1. A imagem da paisagem além do caati

O registro da memória é sem dúvida mais seletivo e opera no double bind entre lembrança e esquecimento, no tecer e destecer (...). Mas assim como devemos nos lembrar de esquecer, do mesmo modo não devemos esquecer de lembrar.

(Márcio Seligmann-Silva).

No constructo imaginativo, a paisagem se opera em campos verdejantes ou mesmo no espaço urbano. Alastrada a esfera comum se traduz em paisagem subjetiva não imaginada, mas absorvida de um espaço aparentemente não delimitado. “A paisagem dos ervais, para quem passa de longe, nada tem de atrativa. Aquele gigantesco manto de clorofila pode, quando muito chamar a atenção do viajor. Nada mais.” (SEREJO, 2008, p. 233).

A percepção de Bhabha (2006), ver “além” denota um sentido de desorientação, de não-direção do espaço objetivado. O “além” não se perde no vazio, preso à paisagem retoma-se uma possível ideia de direção, em um sentido aparentemente metafórico de espaço “real”. O além constitui a metáfora imagética do relativo na poética, a paisagem é o próprio sentido formatado de uma possível direção.

A consecução de uma imagem simbólica se revela na ação operante de um sujeito, sobrevivente do local e de sua origem, que se filiou ao tempo de permanência. Uma permanência relativa nas bordas do narrado, uma espécie de construção de aparência, que se efetiva no âmbito da narrativa. Não se atém à origem na abrangência do termo, percebe-se uma filiação simbólica construída no local de sua cultura.

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais (BHABHA, 2006, 20).

Pensar a paisagem na esfera do caati (erval) revela uma versão antiestética, que foge ao comum, ao excepcional, privilegia-se o simbólico como campo atrativo de imagens. A paisagem a priori pode denotar uma local da cultura do ervateiro, porém, impossibilitado de mensurar uma localidade efetiva geográfica, é reconhecida como espaço simbólico presente na construção narrativa. Subscreve-se um caminho percorrido pelo ervateiro “ei-lo, na madrugada ainda, pelo tape-hacienda orvalhada, em marcha contra as arboleadas. Via satisfeito, pois sabe que o raído desse dia lhe garantirá, na certa, uma semana de vida regalada” (SEREJO, 2008, p. 236).

A paisagem que verseja o presente texto palmilha os aspectos literários da poética de Helio Serejo. A retomada, por meio das imagens, enfatiza na esfera do literário os textos presentes em Homens de Aço, de Helio Serejo, organizados no Vol. I da série Obras Completas.

A poética de Serejo, assente aos contos em Homens de Aço, denota uma expectativa de imagem produzida no caati (erval). A ideia primeira revela a imagem do próprio Serejo. Nas esferas densas da escritura mediante as marcas criadas na narrativa, o escritor traz em si traços de sua experiência, daquilo que vivenciou nos campos ervais. Revela-se traços de si, inscrito e etnografado no outro. Denota-se um mergulho do exergo traduzido naturalmente em sua poética.

A paisagem alastrada ao núcleo do narrado, é submetida a outros princípios fundamentais na percepção da memória. Ressoam imagens nas paisagens grandiosas do caati, agregado ao lapso de experiência do escritor, observa-se a máscara do ervateiro, edificada nas personas do erval. A memória de Serejo mergulha na intersubjetividade denunciando nas narrativas a memória do raído construída na paisagem caati.

Desmantelam-se as máscaras para se reconhecer um pouco do ervateiro a partir da narrativa. Um conceito prévio não delimitado foge à lógica da construção do narrado, e se processa no trabalho ficcional de rememoração espontânea na memória do raído. Para Benjamin (1986, p. 37) “ a rememoração é trama e o esquecimento a urdidura”.

Revela-se na poética de Serejo uma memória de segunda escritura. A ideia de segunda escritura é reconhecida como segunda pele, película escritural pincelada no texto. Essa percepção metafórica é pertinente, ao mesmo tempo fugaz, como próprio sentido, possibilita criar novos valores na narrativa. Valores que corroboram na constituição do ficcional.

A memória tem a estrutura de uma citação, é uma citação que não tem fim, uma frase que se escreve em nome de outrem e que não se pode esquecer. Manejar uma memória impessoal, relembrar as lembranças de outro (SOUZA Apud PIGLIA, 2002, p. 87).

A condição de segunda escritura se opera no veio da memória do raído na paisagem do caati, “a exuberância desse vegetal selvagem, a que frei Antônio, da Companhia de Jesus, de tão triste memória, chamou erva do diabo, enche os olhos e o coração dos mais indiferentes” (SEREJO, 2008, p. 233). A percepção de primeira escritura se revela nas peias da oralidade, inscritas em um campo de memória visível. Retomam-se narrativas anteriores, não instituídas na esfera da escrita. A rubrica escritura é flexível na visão perene do narrado. Não supõe o escrito somente a partir de caracteres convencionais, mas escrituras constituídas nas narrativas do erval, “fazer alusão ao desconhecido partindo do conhecido. Pela insistência do seu investimento metafórico, torna pelo contrário enigmático, o que se julga conhecer pelo nome de escritura” (DERRIDA, 1995, p. 183). A movimentação aparente para o desconhecido da escritura é o modus operanti para se compreender a memória do raído na primeira visada. “Desde Platão e Aristóteles não se tem deixado de ilustrar por meio de imagens gráficas as relações da razão e da experiência, da percepção e da memória” (DERRIDA, 1995, p. 182).

O sentido familiar da escritura institui uma segurança metafórica de vestígios em princípio não aparente em uma memória, que se torna perceptível a partir da efetivação da escritura. A escritura denuncia a memória do raído, um espaço com marcas naturais deixados no interior. Vislumbram-se os primeiros vestígios de impregnação, por meio das paisagens do (caati), “outras há que nos dão ideia de pequenas ilhas misteriosas” (SEREJO, 2008, p. 233).

A paisagem é o veículo balizador da memória do raído. “Bem ajustado o raído-sã, verificada a perfeita colocação da estanquilha, estendida a lonada ou ponchada, ei-lo de volta depois de seis horas ininterruptas de trabalho” (SEREJO, 2008, p. 238). A paisagem tem forma irregular no caati (erval), construídas no imaginário revelam elementos substanciais, que agregam um sentido de memória: “pensar a paisagem implica um posicionamento diante do mundo” (LOPES, 2007, p. 134), um posicionamento criado a partir das paisagens reveladas pela memória do raído, é o primeiro espaço de produção de imagens reveladas pela voz do narrador: “Traz às costas (...), a colheita do dia. Vem tateando, apoiando-se aqui e ali, pois um pisada em falso poderá ocasionar a pronta ruptura de algum órgão” (SEREJO, 2008, p. 233). Uma voz, um fluxo do sujeito, cingido pelas marcas do tempo. Ao carregar o raído o homem ervateiro carrega também o peso de sua memória. A fronteira demarcatória nessa memória é o tom profano estendido além do sagrado. É a história do ervateiro inscrita nas embaralhadas folhas transmitidas no mburear (gritar).

O raído é o vaso receptor na condição de arquivo que consigna, guarda e reserva e coordena. “A consignação tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal”(DERRIDA, 2001, p. 14). Embora se exerça uma diferença espetacular entre a memória e o arquivo, este está em condições normais de receptividade de elementos consignados em outro espaço atemporal. Lê-se nas folhas da erva-mate as trilhas de uma vida além de um série de história do ervateiro. É ele inserido no contexto angular de sua vida, construída paulatinamente com as varas do raído-sã, transformada em memória do raído. O raído, arquivo flexível submetido a um sistema coordenativo concernente a sua própria estrutura composiciona, é o denunciador da memória, por isso se atrela ao significado da memória. Não há dissociação de elementos do raído, tal assertiva não se opera devido à abrangência de receptividade de um arquivo. “Num arquivo, não deve haver dissociação absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar (scernere), compartimentar de modo absoluto” (DERRIDA, 2001, p. 14). No arquivo as histórias são preservadas em seu estado natural, a voz espectral alastra as histórias para além do arquivo, sem dissociar os elementos. “É crença geral que, se o mineiro (ervateiro) durante o ato do sapeco não mburear, obterá um produto inferior” (SEREJO, 2008, p. 238). O Mburear (gritar) é o eco da memória do raído, necessário para que os traços escriturais não se apagam. “A memória, assim como a simpatia, distorce a realidade e não serve para apurar fatos” (DOUEK, 2003, P. 25). Pode-se dizer que a memória do raído cataloga os fatos, e os reserva, em estado consignatório, como um prenúncio contado nas folhas escuras da erva-mate. “ Nos ervais do Porto Baunilha, onde estive durante um ano, tinha meu apartamento, feito de folhas de pindó, ao lado de um barbaquá’ (SEREJO, 2008, p. 239).

O raído, arquivo receptor corporifica a memória, transportado pelo ervateiro traz contido todos os fatos ocorridos na vida do ervateiro. Não há mais nostalgia, nem recordação, há traços espectrais passíveis de serem revistos no tempo e no espaço. O raído traz em seu bojo a memória e a história do ervateiro. Ambas trilham o mesmo caminho sem bifurcação. Em tempo, a memória é também arquivista, passível de registro, de escritura. “É bem verdade que o conceito de arquivo abriga em si mesmo esta memória do nome arkhê” (DERRIDA, 2001, p. 12). Trata-se de um princípio subjacente de memória, naturalmente transferido para as esferas marginais da memória do raído. Um primeiro estágio satisfatório de apreensão dessa memória, subjaz uma ideia de princípio nas folhas da erva-mate. As folhas verdes narram à história do ervateiro, denunciam sua cultura, sua religiosidade, sua própria vida. “É lei dos ervais que todos os mineiros são obrigados a conduzir o raído até uma distância de três mil metros”(SEREJO, 2008, p. 237).

A memória do raído guarda seus testemunhos nas folhas da erva-mate, reconhecer os traços dessa memória requer uma percepção às paisagens dos ervais. Não há uma transferência das imagens para carga (raído) nas costas do ervateiro. Uma condição metafórica denuncia a construção dessa memória. O arkê revisto por Derrida, é o veio do início natural de construção. Tal assertiva se processa no âmbito da narrativa, um olhar mais significativo revela no núcleo espetacular do narrado, vestígios de uma memória lida nas margens. Submete-se o margeamento um sistema de significação sensível à base analítica. Para se chegar a uma percepção mais acurada da memória do raído, é necessário se amparar na voz presente ao texto. Não há uma nominação da voz, embora se esboce em uma ação espectral: “Quando é longo o percurso a vencer, faz parada, apoiando a carga no burrinho. (...) Quantas arrobas? Pouco lhe importa isto, sabe unicamente que poderá conduzir trezentos quilos” (SEREJO, 2008, p. 239).

Vislumbram-se traços no de-dentro da memória do raído, ela não agrega apenas as histórias do homem ervateiro, ela é, em outra instância, a memória viva do erval, carrega em seu bojo a vida do ervateiro. Aparentemente se obtém uma ideia do raído, enquanto elemento de carga do ervateiro, mas ela esconde segredos, dores, lamentos, sofrimentos e alegrias. O ervateiro na ação do colocar sobre as costas, leva consigo toda sua história presa a memória do raído, única e verdadeira do ervateiro. Nela não há apaziguamento das imagens da paisagem do erval. “A memória não está presente uma única e simples vez, mas se repete, ela é consignada” (DERRIDA, 1995, p. 192-193). A memória do raído consigna as paisagens do caati nas histórias do ervateiro, sem tempo, sem mescla, apenas denuncia uma memória, uma vida sobre outras tantas vidas no caati.

1.1. PRESENÇA DE UMA MEMÓRIA MIMÉTICA NA NARRATIVA DE SEREJO

[...] Como os imitadores imitam pessoas em ação, e estas são de boa ou má índole (porque os caracteres quase sempre se imitam a esses), sucede que, necessariamente, os poetas imitam homens melhores, ou piores, ou então iguais a nós, como fazem os pintores. [...] Cada imitação se compõe dessas diferenças, e cada uma delas variará, por imitar coisas diferentes (ARISTÓTELES).

A memória imitativa nas narrativas serejoanas agrega na sua infância as primeiras moléculas das histórias dos ervais. Elas estão estruturadas em base solidificada nos casos narrados pelo homem ervateiro. Os casos trazem em sua gênese substância especial absorvida pela memória. Substâncias que acumulam elementos do crioulismo. Embora tais elementos pertençam a uma memória anterior, que se abre para outras instâncias literárias, eles não estão circunscritos a um espaço comum, delimitado, pois gozam de uma liberdade na espacialidade. Tal liberdade é conferida pela própria absorção da memória. Esses elementos estão, apenas, retidos momentaneamente por uma lei natural que institui sua permanência na própria natureza. O sentido de natureza se constrói em todo contexto não criado pelo homem. Esses elementos, ao serem solicitados pela memória autoral , voltam-se para um estado pleno, sendo retomados e expostos para outra memória – uma memória imitativa, com valor substancial de uma memória construída ficcionalmente.

Busca-se um conceito de memória imitativa a partir da memória autoral. Esta fornece subsídios para conferir os elementos expostos do universo ervateiro para um outro estado de memória. Um estado mimético do qual o narrador-espectral utiliza-se para denunciar as memórias presentes na narrativa de Serejo. Pode-se inferir que a memória autoral, que confere a paixão pelos ervais de Serejo, é o primeiro grau notativo de memória. Uma transferência para outro estado de memória não acontece naturalmente, mas por meio de uma potência de vontade da memória autoral, possibilitando condições explorativas para a memória imitativa. Nesse caso, podemos conferir um segundo grau de memória, que de certa forma altera-se em seu próprio estágio de conservação dos elementos compactados. “O canto deve imitar os gritos e os lamentos. Donde, uma segunda determinação polar da natureza: esta torna-se unidade - enquanto limite ideal – da imitação e do que é imitado, da voz e do canto” (DERRIDA, 2006, p. 241).

A memória imitativa nasce a partir da memória autoral, sendo construída num espaço não figurativo, não perceptível a uma memória “real”, no sentido de existência plena. Sua concepção retém em si traços mnemônicos de fatos ocorridos ou captados pela memória autoral. Embora não se afirme uma memória “real”, em grau de realidade absoluta, há uma memória que se atém a aspectos reais, livres, que são aglomerados e compactados pela memória autoral. Esta atende a um princípio geral que possibilita um desdobramento de memória.

O estatuto do signo se encontra marcado pela mesma ambigüidade. O significante imita o significado. Ora, a arte é tecida de signos. Na medida que a significação parece ser apenas, pelo menos inicialmente, um caso de imitação [...] (DERRIDA, 2006, p. 248).

Se a arte é tecida de signos, vislumbra-se na junção poética do narrado em Serejo, um feixe de relações onde se busca a compreensão da significância na própria estrutura a que esses feixes estão submetidos. A poética serejoana encontra-se, assim, vinculada ao conceito de escritura, originário das relações que se agregam num mesmo sentido. O sentido está submetido a agregações escriturais que denunciam a presença do homem ervateiro. Sua vida, sua história, (re)contada pelo narrador-espectral, no caso específico das narrativas de Serejo. Essas relações se encontram em condições de serem absorvidas e denunciadas no circuito da memória imitativa.

Entende-se a escritura serejoana em dois vieses: o primeiro referente ao sentido textual, em que as relações escrituradas se encontram, ou seja, onde elas estão catalogadas no espaço fictício de escritura, numa percepção textual. Embora esta não se subscreva a uma transcrição de fato, “[...] o texto consciente não é, portanto uma transcrição porque não houve que transpor, que transportar um texto presente noutro lugar sob forma de inconsciência” (DERRIDA, 1995, p. 200). O segundo, uma escritura psíquica, que confere o fluxo psíquico depositado do próprio Serejo, para efeito de escritura, sob um comando de memória. A escritura psíquica “[...] quer respeitar ao mesmo tempo o estar-no-mundo do psíquico, o ser-local e a originalidade da sua topologia, irredutível a toda a intramundaneidade vulgar [...]” (DERRIDA, 1995, p. 201). Nessas condições, em que os fatos se desdobram pela memória, eles podem ser desconstruídos no eixo da própria estrutura, compreendendo assim o significado, que se encontra oculto nessas relações: “Na ranchada, durante dias e dias, não se falava em outra coisa, a não ser na aparição de Jesus Cristo, e na fuga do peão. Alguns acreditavam piamente na visita de Jesus. Cercaram o lugar e ergueram uma cruz” (SEREJO, 1998, p. 102). Uma memória mimética que (des)constroi redes de significações no próprio conteúdo narrado.

O narrador espectral mergulha nos elementos que se apresentam em cenas ficcionalizadas, presentes em uma “realidade” subjetiva, posta num espaço criado, especificamente para o núcleo de ação. As condições em que são geradas as cenas na escritura, são notadamente controladas pela memória autoral. Não é um jogo de cenas do universo ervateiro, mas este fornece elementos essenciais para que as cenas aconteçam. Pode-se conferir um jogo de articulação, pensado a partir do universo imaginário em que se assenta o crioulismo: “Nhá Palmilha, seca e espremida como folha de mandioca queimada pela geada e pelo sol, desceu do carro e do varandil, retorcendo na ponta dos dedos o desalinhado vestido azul de chita, contou ao médico o mal do filho” (SEREJO, 1998, p. 47).

Podemos chegar a uma percepção de memória mimética nas narrativas serejoanas. A memória autoral institui fatos coletados de uma realidade relativa na vida do ervateiro, a efetivação ocorre mediante a palavra do narrador espectral. É dele que podemos esboçar um conceito de memória mimética. Se para Derrida o significante imita o significado, podemos transferir tal assertiva para uma memória construída na narrativa serejona. Uma memória imitativa onde o narrador espectral colhe elementos, cuja significação ocorre a partir da imitação. Num processo desdobrável, que não acontece aleatoriamente, há um desejo ardente de memória impulsionado pela memória autoral, que se apresenta como articuladora dos elementos presentes na cultura ervateira. Cria-se uma ambientação, mais próxima possível, do estado “natural” de memória, onde circulam cenas cotidianas da vida do ervateiro.

Percorre-se um traço existente, não-perceptível no espaço comum de memória. Este traço pode ser percebido na memória imitativa, “[...] a função que se relaciona com este traço mnésico é por nós denominado memória. Se levar a sério o projeto de ligarmos os acontecimentos psíquicos, a sistemas, o traço mnésico só pode consistir em modificações permanentes dos elementos do sistema” (DERRIDA, 1995, p. 206). Para Derrida, a função do traço mnésico é relacionar-se à memória. Ora, se considerarmos que a função da memória mimética é assegurar a transmissão dos fatos presentes na memória autoral, pode-se dizer que, para absorção dos elementos presentes no contexto ervateiro, a memória autoral oferece um campo novo de receptividade à modificação. Nesse campo novo “atrativo”, a memória autoral não perde sua capacidade de recepção. Ao contrário, propicia para que os elementos absorvidos possam ser compactados em outra memória de igual valor, mas em estado diferente. “Reter permanecendo capaz de receber” (DERRIDA, 1995, p. 189). Pois, a memória autoral diferencia-se da memória imitativa, sendo esta a imitação da anterior, embora num processo imitativo em que se encontra, possui flexibilidade de ação para exteriorizar os conteúdos absorvidos. Entendemos que absorção é mais significativa, neste caso, pois os conteúdos, que não são depositados num primeiro momento, podem ser depositados numa segunda instância, porque depende da vontade acionada na memória autoral. Digamos que ela é o ponto de partida para memória mimética. Esta possui certa dependência da outra, devido às próprias condições em que foi criada. Talvez, ela esteja inserida num quadro de representação, o que não diminui seu estatuto valorativo na moldura poética.

O conto, intitulado O crente, apresenta um protagonista cuja memória é invejável: “Bem estudado, poder-se-ia dizer que era uma criatura iluminada, um cérebro fantástico, e até mesmo um gênio” (SEREJO, 1998, p. 93). O narrador espectral trabalha em dois sentidos de memória. O primeiro retém o próprio fluxo do narrado, em que o narrador denuncia os fatos, enquanto o segundo se assenta na própria memória do protagonista, o crente. “Enquanto o professor Jobim ia lendo, o Crente, corpo anguloso, permanecia sentado, olhos cerrados, e mão direita colada à testa, fortemente apoiada pelos dedos” (SEREJO, 1998, p. 95).

A memória mimética parece se corporificar no primeiro sentido, retendo num campo de memória o fluxo narrado, denunciando sua condição mimética. Neste sentido, a memória pressupõe uma imitação do imitado, dos fatos ocorridos nos campos ervais. Não é simplesmente uma transferência de ações ocorridas, mas ações que se articulam numa cadeia mimética de memória com valor predicativo. “Valeu-se da Bíblia. Deu início a uma prova de fogo. Precisava ser duro, implacável. Exigia, com rigor, a repetição de tudo, sem falha, sem vacilações” (SEREJO, 1998, p. 96). Uma ideia factual, provinda de uma memória autoral, articula cenas que se efetivam num grau superlativo de escritura, por meio da memória.

No conto, o protagonista demonstra sua capacidade mnemônica ao expor, sem titubear, os capítulos bíblicos: “Eu não vim chamar os justos, mas aos pecadores, ao arrependimento; Eu sou o caminho a verdade e a vida. Ninguém chegará ao Pai, senão por mim [...]” (SEREJO, 1998, p. 94).

Podemos esboçar uma ideia de ações anteriores, ocorridas na vida do ervateiro, denunciadas posteriormente pela memória autoral, e ao serem retomadas pela memória mimética sofrem degenerescências, ao mesmo tempo em que são retratadas cenas ficcionalizadas na vida do ervateiro. Denota-se, às vezes, uma ideia de desfalecimento, embora eles mantenham relações com outras ações, as quais são regeneradas em outro espaço de memória. A regeneração das cenas dar-se-á na memória mimética. A regeneração estabelece uma condição salutar e, ao mesmo tempo, saudável de impregnação imitativa da memória autoral, que num primeiro momento demonstra um estado de entorpecimento dos elementos.

Ao serem retomados pela memória mimética regeneram-se liberando as memórias, que se encontrava em uma condição cataléptica. A memória é o conjunto de união das ações e formam um núcleo representativo de memórias, que ocupam o mesmo espaço. Na memória mimética os elementos ganham novos sentidos, portanto, não há redução ou perda daquilo que Serejo supõe apresentar em sua poética, ao contrário, as memórias se revitalizam sempre, num processo de continuidade.

Considerações Finais

A percepção de um grau metafórico nas duas memórias delineadas no texto, submete-se numa primeira instância ao elemento do narrado. As memórias figuram na condição de memórias construídas a partir da narrativa literária. Ambas se constroem na particularidade do texto em estado de subjetividade.

A paisagem, observada como imagem criada, é por si, o vestígio natural para se perceber a construção da memória do raído. Essa construção não ocorre aleatoriamente, ela se configura no significado do raído no caati. Percebe-se que significado detém valores substancias com vistas para o narrado e não se submetem a um sentido comum do texto. Pode-se dizer que o significado do raído alcança a espectralidade do texto. Não se reconhece na primeira visada a memória do raído, sua concepção ocorre mediante a observação da vida do ervateiro. O sentido do raído não se submete a escala de valores de uma carga, que o ervateiro traz às costas. Ele detém valores substancias que podem ser (re)vistos em outras cadeias do texto. “O sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido” (DERRIDA, 1995, p. 24). A memória do raído traz no de-dentro conceitos formativos para se ler uma memória em grau superlativo. Quebram-se estruturas aparentes no texto e revela - se na paisagem a memória do raído corporificada pela voz espectral.

A memória mimética atém-se a laços profundos do imitatio, na abrangência do termo ao modo representativo no literário. Esta memória tem certa dependência com a memória autoral. Esta memória é o índice seguro de absorção dos fatos, que são depositados em outro espaço de memória. A consecução da memória mimética dá-se na percepção da narrativa, porém, para que ela exerça sua função de denunciar fatos depende de elementos depositados na memória autoral que se submete a um estado de anterioridade. Para que os fatos sejam evidenciados, entra em cena o narrador espectral. O narrador espectral figura com certa liberdade na narrativa e não é exclusividade de uma memória, exerce certa autoridade para denunciar fatos. Sua criação se opera na legitimidade do literário. É visto em outras instâncias de memória, entretanto a memória mimética agrega em si traços de espectralidade, ao mesmo tempo, em que preserva elementos que aparentemente estavam em latência. Tais elementos denotam as histórias do ervateiro em um processo natural de continuidade.

Bibliografia

ARISTÓTELES, Poética. Trad. Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre Literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.

BHABHA, Homi. K. O local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana L. de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Trad. C. de M. Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. (Coleção Conexões).

_______. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza as Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.

_______. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2006.

DOUEK, Sybil Safdie. Memória e exílio. São Paulo: Escuta, 2003.

LOPES, Denilson A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Ed. UnB; Finatec, 2007.

NOLASCO, Edgar C. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. Annablume: São Paulo, 2004.

SEREJO, H. Helio Serejo. Contos Crioulos. Org. Enilda Mougenot Pires. Campo Grande: Ed. da UFMS, 1998.

__________. Obras Completas. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2008. (V. 1).

SELIGMANN-SILVA, M. História, Memória, Literatura: O testemunho na era das catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

Souza, Eneida M. de. Crítica Cultural. Belo Horizonte: Editora, UFMG, 2002.