Outro final para o conto “A Cartomante” de Machado de Assis.

Em fins de 2010 a Academia Brasileira de Letras lançou um concurso onde propunha aos participantes a elaboração de um final diferente para o famoso conto machadiano “A Cartomante”. O regulamento impunha um máximo de 1778 caracteres (que foi o que Machado usou para terminar o conto) e uma finalização distinta da original, a partir da palavra cocheiro, na frase: “ – Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.”
(Para ler o original de Machado, basta acessar www.academia.org.br e clicar, em sequência ao ícone “Machado de Assis: – Mapa do Site – Bibliografia – Obras Digitalizadas – Obra Integral – “A Cartomante”).
Achei que poderia ser um interessante exercício, mesmo porque, pessoalmente, nunca consegui gostar do final original do conto em que Vilela, o marido traído, mata os amantes a tiros de revólver. Ademais, vi nisso a oportunidade de incluir, sutilmente, uma referência de 'flerte com o leitor' no melhor estilo de Laurence Sterne (1713/1768), escritor irlandês e persistente influência na arquitetura textual machadiana. Vai daí, imaginei o final a seguir:

“Ao escrever a palavra cocheiro senti como se um cheiro de cavalo suado me impregnasse as narinas. E isso me trouxe de volta à realidade com um ligeiro estremecimento. Pela segunda vez meu texto topava com o dilema de sua própria sequência. Na primeira, linhas atrás, deixei em suspenso a narrativa para esclarecer ao leitor quanto às origens da trama que se tecia. Para contar-lhe que Vilela e Camilo eram amigos de infância e que o primeiro voltara da província casado com a formosa Rita, de olhos cálidos e boca interrogativa. Estava pronto o desenho, o resto advinhava-se: teria de haver um caso entre Camilo e a mulher do amigo.
Mas agora, olhando para o papel, com a pena suspensa e imóvel, a dúvida que me assaltava era de diverso teor: se Camilo sucumbira à tentação do 'odor di femina' na proximidade da tenra carne e traira sua amizade mais profunda, como havia eu de resistir à tentação de carregar nas cores de algum valor moral, finalizando estas linhas com a morte dos amantes como justa punição pelo seu pecado? Você, tolerante leitor, sentirá uma ponta de pena pela imprudência dos jovens enamorados ou será completamente indiferente ao que o destino lhes reserva?
Estava eu absorto nesses pensamentos quando, tornando os olhos ao papel me dei conta de que o texto prosseguira por si só, o tílburi estancara em frente à casa do Vilela, que esperava em pé à porta, de braço dado com Rita.
Como o seu passageiro não desembarcava o cocheiro acreditou que tivesse adormecido e desceu para chamá-lo e abrir-lhe a portinhola do carro.
Vilela desceu os degraus da entrada da casa para ir ter com o amigo que chegava. Notou o embaraço do cocheiro e aproximou-se para ajudar. Parou ao lado do tílburi e lívido de susto viu o amigo: olhos muito abertos, mas que já nada viam; estava morto.
Vilela cuidou de tudo com desvelo como já houvera feito no passado quando a mãe de Camilo falecera. Durante todo o transe e até o sepultamento Rita não dissera palavra. Só à noite, tudo terminado, Vilela disse a Rita que aquilo de morrer de repente era comum na família de Camilo, coisas do coração. Rita caiu-lhe nos braços arrebatadamente e grudou seus lábios nos dele com verdadeira paixão. Nessa noite amaram-se como se fosse a primeira vez.”
luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 22/02/2011
Reeditado em 18/09/2014
Código do texto: T2807067
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