A INSPIRAÇÃO NORDESTINA DE PATATIVA
José Neres
joseneres@globo.com
Patativa: um homem do campo
Nascido em 05 de março de 1909, na cidade de Assaré, cerca de 500 quilômetros de Fortaleza, no seio de uma família bastante pobre, Antônio Gonçalves da Silva ao oito anos perdeu o pai e teve de trabalhar na roça para ajudar no sustento da família. O fato de haver frequentado apenas alguns meses de escola, o suficiente para ser alfabetizado, não foi obstáculo para que o garoto deixasse de lado o gosto pelos versos populares e pelo ritmo cadenciado dos poemas cantados pelos repentistas que faziam sucesso na época.
Ainda rapazinho, encantado com o poder melódico das palavras, Antônio começou a recitar poemas em festas de amigos e familiares. Não demorou muito para ele ser apelidado de Patativa, por causa da melodia de seus versos, que eram comparados ao canto do pássaro de mesmo nome.
Em 1956, Patativa do Assaré publicou seu primeiro livro, intitulado Inspiração Nordestina. O livro depois foi republicado em 1967, acrescido de alguns novos poemas. Depois vieram outras obras, como, por exemplo, Cante lá que eu canto cá (1978), Ispinho e Fulô (1988), Aqui tem coisa (1994), Digo e não peço segredo (2001), além de diversas antologias publicadas em vida ou postumamente.
Patativa do Assaré foi reconhecido ainda em vida como grande poeta e recebeu diversos prêmios por sua obra, inclusive cinco títulos de Doutor Honoris Causa, sendo também estudado em diversos trabalhos universitários e em ensaios de críticos renomados.
O reconhecimento nacional, porém não veio por meio de seus livros, mas sim por causa de um de seus poemas – Triste Partida – que foi cantado por Luís Gonzaga. A partir desse episódio, o nome de Patativa começou a chamar atenção também nos meios acadêmicos. Mesmo conhecendo o sucesso, o poeta jamais deixou o contato com sua terra natal e com seu povo. Ele faleceu, em 2002, aos 93 anos, na mesma cidade em que nasceu
Patativa: um homem de poesia
O que de imediato chama a atenção na poesia de Patativa do Assaré é sua forte tendência à oralidade. Aproveitando-se de suas origens humildes, o poeta utiliza com maestria a licença poética e trabalha a voz do homem do sertão em seus versos, sem esquecer a musicalidade, que é outra marca de sua poesia.
Ao se apresentar ao público, Patativa se mostra com um poeta da roça, rude, com poucos estudos e vindo de família pobre, como pode ser visto no fragmento abaixo extraído da primeira parte de Inspiração Nordestina:
Sou fio das mata, cantô da mão grossa,
Trabáio na roça, de inverno e de estio.
A minha chupana é tapada de barro,
Só fumo cigarro de páia de mío.
(...)
Não tenho sabença, pois nunca estudei,
Apenas eu sei o meu nome assiná.
Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre,
E o fio do pobre não pode estudá.
Esse apego às origens sertanejas aparece em outros poemas, como é o caso do famoso Cante lá, que eu canto cá, no qual ele mostra as diferenças entre um poeta criado na cidade, com acesso à educação e aos luxos urbanos e outro que teve sua educação tirada do convívio com o campo. Como em uma longa resposta a um desafio, Patativa mostra as qualidades inerentes ao poeta do campo:
Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.
Para terminar o poema, ele pede que o poeta da cidade se contente em ficar no lugar onde foi criado, pois tudo o que tem na zona urbana tem, mesmo que de forma diferente, no campo.
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem.
Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá.
É interessante notar que o uso de expressões regionalistas e das aparentes falhas gramaticais não tiram a beleza rítmica do poema e ainda confere ao leitor ou ouvinte a sensação de ouvir a voz de um homem do campo em seu interminável diálogo sobre as qualidades da vida longe das cidades, em uma espécie de fugere urbem com sotaque nordestino.
Outra característica que faz parte da poética de Patativa do Assaré é sua tendência a fazer críticas sociais. Consciente de que literatura não é apenas expressão de uma beleza idealizada, o poeta aproveita a cadência de seus versos para fazer denúncias sociais e críticas ao que julga errado. Isso pode ser visto em grande parte da obra do autor de Aqui tem coisa, mas se torna mais pungente em Triste Partida e em seu ABC do Flagelo, no qual as letras do alfabeto referem-se ao sofrimento do povo. De modo bastante poético, Patativa leva o leitor a refletir sobre as condições no Nordeste, sobre a seca que mata o gado e espanta o trabalhador, levando-o para longe de sua terra natal. Nas letras B e J do poema, reproduzidas a seguir, é possível perceber o tom de lamento que permeia o texto inteiro.
B — Berra o gado impaciente
reclamando o verde pasto,
desfigurado e arrasto,
com o olhar de penitente;
o fazendeiro, descrente,
um jeito não pode dar,
o sol ardente a queimar
e o vento forte soprando,
a gente fica pensando
que o mundo vai se acabar.
J — Já falei sobre a desgraça
dos animais do Nordeste;
com a seca vem a peste
e a vida fica sem graça.
Quanto mais dia se passa
mais a dor se multiplica;
a mata que já foi rica,
de tristeza geme e chora.
Preciso dizer agora
o povo como é que fica.
A crítica às injustiças sociais, como foi dito anteriormente, também faz parte do repertório desse poeta que era ao mesmo tempo lírico e contundente em suas palavras. No longo poema Terra é Naturá, ele condena o latifúndio e praticamente implora por uma reforma agrária, deixando claro que a intenção do trabalhador rural não é igualar-se ao coronel latifundiário, mas sim ter condição de sustentar a família e poder usufruir daquilo que deveria ser um bem coletivo: o direito à terra e a um lugar para trabalhar. Mas antes de fazer seu pedido, o poeta metaforiza as qualidades intrínsecas da terra, que é vista como algo belo, mágico e essencial ao mesmo tempo:
Esta terra é como o vento,
O vento que, por capricho
Assopra, às vez, um momento,
Brando, fazendo cuchicho.
Ôtras vez, vira o capêta,
Vai fazendo piruêta,
Roncando com desatino,
Levando tudo de móio
Jogando arguêro nos óio
Do grande e do pequenino.
Depois de dar ao texto um tom telúrico e lírico, Patativa muda o foco e passa a, nas últimas estrofes, exigir um direito que é negado ao trabalhador rural: o de ser dono da própria terra:
Não invejo o seu tesôro,
Sua mala de dinhêro
A sua prata, o seu ôro
O seu boi, o seu carnêro
Seu repôso, seu recreio,
Seu bom carro de passeio,
Sua casa de morá
E a sua loja surtida,
O que quero nesta vida
É terra pra trabaiá.
Iscute o que tô dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu.
A temática dos “causos” contados pelos caboclos do sertão aparece também na poesia de Patativa dos Assaré, principalmente no poema Uma do Diabo, que narra, no ritmo cadente do cordel, a história de Mané Gibão, um homem que dizia de nada ter medo. Mesmo todo mundo avisando que o demônio aparecia pelas redondezas em forma de um grande bode, o rapaz desdenhava das pessoas, dizendo que aquilo era apenas conversa do povo. Tudo muda quando ele se vê cara a cara com o demônio e busca a proteção da imagem do Padre Cícero. Com o bom humor que lhe é peculiar, o poeta mostra como ficou o valentão após o demônio ter ido embora:
Eu senti grande miora,
Vendo o bicho se afastando
E saí estrada a fora
Com as perna bambeando.
E eu não nego nada não,
Nem que façam mangação
Eu não vou escondê nada
Dos aperto que passei
Quando em casa cheguei
A calça tava moiada
Ter que partir da própria terra, que é um tema recorrente em toda a obra poética de Patativa do Assaré, aparece também nos belos poemas A tristeza mais triste e Lamentos de um nordestino, nos quais o homem é afastado do rincão natal por causa das condições adversas ocasionadas pela seca que assolava o nordeste.
O pungente tom de tristeza pode ser percebido logo na primeira estrofe de cada um dos poemas acima citados:
Neste mundo não existe
Uma tristeza mais triste
Igual à separação
Do caboclo nordestino
Que viajou sem destino
Deixando o caro torrão
(A Tristeza mais triste)
Eu sou sertanejo das terras do Norte,
Mas a negra sorte me fez arribar.
Hoje vivo ausente,
Sem ver minha gente,
O meu sol ardente
E o meu branco luar
Ai quem me dera voltar
Ai quem me dera voltar
Ao meu lar!
(Lamentos de um nordestino)