Alice no País das Maravilhas: Na Sociedade e no Sonho do Século XIX

Alice na Sociedade e no Sonho do Século XIX

Introdução

A literatura não se manifesta sozinha. Sua compreensão depende de um intenso diálogo entre leitor e interlocutor (autor da obra). Também é necessário ter consciência dos processos e o contexto em que a obra foi produzida e dos quais faz parte; já que esses, uma vez quando modificados, altera-se também o sentido do seu entendimento. É com esta afirmação de Goldstein (2007) que observamos que o conteúdo da literatura artística está repleto de um caráter de contestação, manifesto e conscientização e sua função na sociedade varia. Ainda assim, há quem não julgue o seu devido valor, categorizando-a de maneira simplória, como mero entretenimento, desconsiderando o seu poder transformador da sociedade.

Outro problema acerca da literatura está na divisão entre gêneros e estilos. Todorov (2004) observa que analisar uma obra por uma perspectiva de gênero, é um empreendimento muito peculiar; ele leva em consideração que as características em comum de um grupo de obras, categorizadas num gênero específico, podem variar dependendo do tipo de análise levantada. Submetê-las a características comuns a outras obras poderia comprometer a análise individual.

Não obstante, o gosto que alguém adota por um gênero ou estilo literário prevaleceria sobre algumas obras em detrimento de outras, gerando preconceitos por parte do leitor, que desconsideraria a suposição de todos os livros terem uma função transformadora nas sociedades habituadas à leitura, independente da maneira como são expressadas nas suas respectivas estéticas (Romantismo, Realismo, Modernismo, etc.).

A partir destas premissas, pretendemos demonstrar com este artigo que a função de uma obra vai muito além do simples entretenimento. Para demonstrar que tal função transformadora é possível, utilizaremos como objeto de estudo o conto Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll; delimitaremos a análise abordando em alguns momentos da obra, especialmente naqueles que fizerem maior referência ao contexto político e acadêmico, traçando paralelos com o contexto social vivido pelo autor, o momento histórico que ele atravessou durante a sua vida e no momento da concepção da obra.

Existe uma relação entre o estudo sobre os sonhos de Freud, a visão de Eric Hobsbawn sobre a Inglaterra do século XIX, e a obra de Lewis Carroll. A partir desta relação que mostraremos uma evidência de que a literatura, ainda que uma literatura voltada para crianças, exerce a sua função transformadora, além do simples entretenimento.

Nesse sentido, é preciso determinar um caminho para que descortine as teias de relação constantes na obra, evitando o perigo desta idéia se perder no trajeto da análise. Primeiro lançaremos um rápido olhar sobre a biografia de Lewis Carroll, centralizando na história da criação de Alice no País das Maravilhas; o segundo passo será traçar um panorama do contexto histórico em que a obra foi dada a pulso, e as conseqüências para a sociedade da época; em seguida, faremos uma análise da obra do ponto de vista psicanalítico, levantando algumas considerações de Freud em Interpretação dos Sonhos; por fim, traçaremos a relação comum entre todos os ponto, para mostrar uma evidência da função transformadora da literatura, tendo a obra de Carroll como objeto de estudo.

1. Uma tarde dourada e as três versões de Alice

Lewis Carroll é o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, primeiro filho de onze, do casal Reverendo Charles Dodgson e Francis Jane Lutwidge. Nasceu no dia 27 de Janeiro de 1832, e foi criado em Daresbury, no auge da Inglaterra Vitoriana. Viveu sua infância em Croft, e concluiu os estudos primários na Rugby School. Continuou sua formação na Christ Church, um college de Oxford, onde se formou em matemática, fazendo parte, mais tarde, do corpo docente, permitindo-lhe uma atuação no ambiente acadêmico.

A biografia mais fiel sobre o Dodgson, ironicamente, foi escrita por ele mesmo. Ele escreveu diários durante quase toda a sua vida, dos quais, 16 volumes sobreviveram, com raras páginas arrancadas.

Inúmeros documentos registraram que uma vasta quantidade de atividades criativas e educativas fez parte da vida de Dodgson. Incontáveis artigos, teses, poemas, paródias, cartas para amigos, discursos, desenhos, revistas de família (uma espécie de antologia com papéis, recortes, fotografias de interesse familiar, prática muito comum no período vitoriano) revelam que Dodgson foi muito além de ser apenas o autor de Alice no País das Maravilhas; além de sua contribuição como escritor, foi fotógrafo, alcançando algum êxito nessa área. Morton N. Cohen teve acesso e organizou boa parte destes documentos pessoais, e em 1995 publicou uma das mais completas biografias sobre Charles L. Dodgson.

Na biografia, Cohen nos mostra que o autor de Alice foi um homem excêntrico, porém ao mesmo tempo amável com os amigos, extremamente religioso e preocupado com as questões morais do espírito e do comportamento humano, muito amoroso com os irmãos mais novos e extremamente atencioso com as crianças que conheceu. A criança, na verdade, é um fator importante na vida de Charles, pois o seu amor por elas (geralmente meninas) que foi consideravelmente responsável pela sua obra.

Henry George Liddell assumiu a reitoria de Christ Church em 1855, no mesmo ano em que Charles foi condecorado como Mestre da Casa, e já era professor de Matemática. Num encontro casual com a Sra. Liddell, Charles conhece Harry e Lorina Liddell, e mais tarde, numa visita informal à reitoria, as outras duas filhas mais novas, Alice e Edith.

Desde então, paralela a sua responsabilidade como professor em Christ Church, Charles passava muito tempo na companhia das meninas Liddell: saía para passeios a barco ou a pé, tirava-lhes fotografias, contava-lhes histórias, criava jogos para entretê-las, nada além daquilo que já era do seu hábito com os seus irmãos menores. Em todas as histórias que inventava, Charles envolvia as suas pequenas ouvintes como personagens do cenário, como uma forma de atribuir-lhes algum ensinamento moral, ou até mesmo como forma de dar-lhes suporte emocional para conseguir encarar o difícil e angustiante mundo real.

No verão de 1862, o cônego Robinson Duckworth e as meninas Edith, Alice e Lorina Liddell (contando respectivamente oito, dez e treze anos), acompanhando Charles num passeio a barco pelo rio Tamisa, escutaram dele uma história em que Alice, seguindo um coelho por uma toca, viveria as mais estranhas aventuras num mundo repleto de fantasia, como sempre foram as histórias que Charles contava para entreter as meninas. Mas aquela em especial estaria destinada a ficar para sempre na história. Logo após o passeio Alice Liddell, no dia seguinte, pediu insistentemente para que Charles escrevesse a história que tinha contado para ela e as irmãs durante o passeio.

Anos mais tarde, a própria Alice Liddell relembraria que aquela história “devia ser melhor do que de costume porque no dia seguinte comecei a importuná-lo, pedindo para que ele a escrevesse pra mim, coisa que nunca fizera antes” (COHEN, 1995, pgs157 e 162).

Charles levou dois anos e meio para concluir o volume, e entregou a Alice um caderno de capa verde, totalmente escrito à mão, com ilustrações próprias, que deu o nome de As Aventuras de Alice sob a Terra, que pode ser considerado a segunda versão da história.

Com as visitas dos amigos à casa do reitor, o caderno verde, exposto numa mesa na sala de estar era de fácil acesso a inúmeros acadêmicos e celebridades, que não resistiam à tentação de mergulhar naquela história escrita para Alice. Rapidamente foi despertada a curiosidade sobre quem seria o autor. Sugestões e recomendações para que Charles publicasse aquela história começaram a surgir por parte dos amigos.

Após grandes insistências, Charles resolveu publicar, reescreveu a história original, acrescentando novas situações, e praticamente duplicou o número de páginas. No ato de publicação criou o seu pseudônimo, Lewis Carroll, uma inversão em Latin do seu primeiro e segundo nome Charles Lutwidge (COHEN, 1995).

A versão definitiva de Alice no País das Maravilhas foi publicada em 1865, com ilustrações de John Tenniel, na época cartunista político da revista Punch. Recebeu críticas tanto positivas quanto negativas, porém, foi em questão de meses que as aventuras descritas em Alice no País das Maravilhas conquistaram leitores por todo o mundo, recebendo traduções para diversas línguas, e até mesmo uma versão para teatro.

Simultaneamente, e como não podia deixar de ser, inevitavelmente, críticos debruçados sobre diversas questões que surgem das personagens excêntricas deste conto peculiar, a aventura que Charles escreveu, apesar de uma origem completamente ingênua, faz uma alusão parodiada do nosso mundo, compondo o País das Maravilhas de forma estranha, mas que em nada difere do que existe no mundo real em termos de relações sociais. A questão é que nesta terceira versão considerada definitiva, Charles teria aproveitado a oportunidade da publicação para rearranjar a história e manifestar, através de seus personagens simbólicos, as suas inquietações e insatisfações com o mundo real.

2 – Uma tarde acinzentada e a Inglaterra no Século XIX.

A Inglaterra do século XIX esteve praticamente toda sob o reinado da Rainha Vitória sucessora de Guilherme IV, que assumiu o trono inglês em 20 de Junho de 1837 até a sua morte, em 22 de Janeiro de 1901; cabe dizer que a Rainha Vitória reinou durante quase todo o período de vida de Charles Dodgson. Muito do que foi o reinado da Rainha Vitória foi acompanhado por Charles. Cohen (1995) afirma que Charles, apesar de não ser uma pessoa ligada às questões mundiais, era muito preocupado com o que acontecia na Inglaterra, especialmente se estas preocupações estivessem voltadas para o ambiente acadêmico, o que em geral, envolvia o seu trabalho.

Os ingleses da Era Vitoriana viram as conseqüências da revolução industrial Inglesa do século XVIII, que à época sequer tinha esta definição; diante dos olhares ansiosos, excitados e assustados, começavam a surgir as formas que foram moldadas por este novo modo de produção e trabalho.

É inevitável falar da revolução industrial inglesa e as suas conseqüências quando se relata o século XIX, pois o surgimento desta nova forma de produção mudou completamente as relações de trabalho, resultando no surgimento de novas classes sociais; em conseqüência disso, todas as relações que compunham o sistema econômico da Inglaterra foram afetados, inclusive o ambiente acadêmico do qual Charles fazia parte, uns em maior escala, outros apenas tendo uma visível alteração na renda familiar.

Eric Hobsbawn (1979) tenta não se posicionar, porém confessa a importância da mudança:

“(...) ela não representou um simples processo de adição e subtração, mas uma mudança social fundamental.” (HOBSBAWN, 1979, pg. 75).

“Sob qualquer aspecto, este foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades. E foi iniciado pela Grã-Bretanha.” (HOBSBAWN, 1962, pg. 45).

Pela primeira vez na história da humanidade, as cidades inflaram e o número de habitantes urbanos ultrapassou o número de habitantes da zona rural. Entretanto, a aristocracia e os proprietários da época foram muito pouco afetados pelas transformações, a não ser pela valorização de suas propriedades. Além do inchaço habitacional urbano, houve também uma explosão na renda destes proprietários, que viram o aumento crescente e violento do surgimento de produtos agrícolas e industrializados, fazendo assim aumentar a sua renda; também o próprio crescimento populacional favorecia as classes dominantes, pois em parte a urbanização ocorria nas terras dos próprios donos das fábricas em demanda de serviços. O crescimento populacional acelerado e desorganizado agravou a pobreza das famílias rurais. A demanda crescente por mão de obra para suprir a gananciosa máquina industrial inglesa fez comum a presença de crianças nas fábricas, trabalhando por baixos salários em atividades que não exigiam tanta disposição física, entretanto submetendo-as a longas jornadas de atividades em situações precárias.

Para Hobsbawn, mudanças neste novo cenário demorariam a acontecer. O seu ceticismo se dá pelo excesso de corrupções das aristocracias, torpes aos crescentes problemas que acometiam a sociedade da época:

“Se o século XVIII foi uma era gloriosa para a aristocracia, a época de Jorge IV (como regente e como rei) foi um paraíso (...). Suas casas de campo multiplicavam-se mais que em qualquer época, exceto a elizabetana. (...) Não tinham de deixar de ser feudais, pois há muito haviam deixado de sê-lo. (...) Igualmente próspera era a vida dos parasitas da sociedade rural (...). Aquele mundo de funcionários e fornecedores da nobreza e dos proprietários de terras e as profissões tradicionais, entorpecidas, corruptas e, à medida que se processava a Revolução Industrial (...). A Igreja e as universidades inglesas pachorreavam, acomodadas em suas rendas, privilégios e abusos, protegidas por suas relações com a nobreza.” (HOBSBAWN,1962, pg. 76)

Intelectuais da época, alarmados, acompanhavam estes fatos que inspravam obras como as de Charles Dickens, com o seu alusivo Oliver Twist, denunciando estas barbáries por meio da literatura corrente. Entretanto, na era vitoriana, uma conturbação abalaria pouco as bases que sustentavam a elite e a mantinham no seu patamar social privilegiado, fazendo parecer que as denúncias soassem ineficientes, uma vez que ainda não existia por parte da própria classe trabalhadora a consciência da exploração a que eram submetidos.

Nos anos de 1850 ocorreram algumas mudanças no sistema de ensino, que transformariam também o governo inglês, propostos pelo ministro da época, William Ewart Gladstone, frutos de recomendações das Comissões Universitárias. Entre as novas leis consistiam:

- A eliminação de regulamentos constitucionais medievais;

- O estabelecimento do critério de méritos para a conferência de bolsas de estudo;

- Abrir oportunidades de ingresso universitárias não apenas para os não-anglicanos, mas para a classe média em geral;

- Instituir um currículo mais amplo e liberal para atender às necessidades dos alunos de todas as categorias acadêmicas;

Embora estas mudanças estivessem demasiadas distantes dos essenciais problemas que acometiam a sociedade inglesa, pois mudariam apenas o aspecto da vida das famílias das classes médias, no círculo social vivido por Charles Dodgson, entretanto, causariam uma grande influência, e esta influência se debruçaria até mesmo sobre a sua obra literária.

3. O País das Maravilhas e a Sociedade Inglesa

Nos anos 1850 apareciam sinais de uma reforma na educação. Charles freqüentou as reuniões da Câmara dos Comuns que envolviam o seu trabalho em Christ Church. Além de participar da polêmica envolvendo a autonomia Irlandesa, quase ao final do século XIX. Suas participações nestas ocasiões eram, mais tarde, expressadas por meio das suas paródias, para expor ao ridículo as opiniões adversas às dele.

Cohen (1995) ressalta que Charles não era a favor das idéias do primeiro ministro Gladstone, entretanto, a reforma na educação era de interesse mútuo:

“Charles demonstrava um interesse crescente por assuntos acadêmicos, por questões relativas à cidade de Oxford e redondezas e até por questões de interesse público em geral. A academia era um alvo fácil da paródia, e Charles aproveitava-se de seu talento natural para ridicularizar convenções e rituais (...)” (COHEN, 1995, pg. 294)

“(...), em 15 de novembro de 1865, teve a idéia de escrever paródias de boletins de notícias americanos baseados em comunicados sobre a Guerra Civil, incorporando alguns fatos da comunidade de Christ Church, e dois dias depois enviou o manuscrito, American Telegrams,para a gráfica. Os “fatos” dizem respeito à batalha dos membros de Christ Church para tirar das mãos dos cônegos parte do seu poder decisório.” (COHEN N., Morton. pg 294)

“Por mais obscuro que pareça hoje, American Telegrams mostra a inclinação de Charles em favor da reforma educacional e administrativa em Christ Church.” (COHEN N., Morton. pg 295)

4. Simbologia e Tipo

Na sua extensa biografia, não há menção com alguma relação próxima a crianças ou pessoas de uma classe que não seja da nobreza ou da classe média, ou até mesmo do grupo de intelectuais que ele convivia. Também é revelado que quanto mais envelhecia, ia se tornando um homem arrogante e ensimesmado, pouco satisfeito com a vida, embora a sua obra tenha seguido um caminho diferente, repleta de bom humor. Seu desagrado crescente era comum ao espírito da época vitoriana, que será discutido num tópico adiante.

Entretanto, vale mencionar que o período de maior triunfo de Charles Dodgson aconteceu na sua juventude, enquanto ainda envolvido com a sua literatura infantil, e mesmo que suas relações com a classe trabalhadora fossem distantes, ele não evitava em revelar o seu repúdio pela sua própria classe fazendo gozações de sua própria classe com alusões simbólicas:

“The Fish-Footman began by producing from under his arm a great letter, nearly as large as himself, and this he handed over to the other, saying, in a solemn tone, ‘For the Duchess. An invitation from the Queen to play croquet.’ The Frog-Footman repeated, only changing the order of the words a little, ‘From the Queen. An invitation for the Duchess to play croquet.’Then they both bowed low, and their curls got entangled together.Alice laughed so much at this, that she had to run back into the wood for the fear of their hearing.” (CARROLL, cap. 6, pg. 59).

Não confundir simbologia com tipologia, pois as personagens do país das Maravilhas não representam uma totalidade social, quando muito, simbolizam um evento ou personalidade que fez parte de seu dia-a-dia, preexistiu em sua obra, e o inspirou a mencioná-lo.

Sobre símbolos e tipos, Eco (1999) esclarece:

“El símbolo se diferencia también del tipo em que puede perfectamente preexistir a la obra como elemento de um repertório mitológico, antropológico, heráldico, mágico. Puede preexistir como “lugar” originariamente literario y actualmente oculto en el convencionalismo, como situación cotidiana que la literatura há hecho tópica y cargada de posibilidades alusivas (el viaje, el sueño, la noche, la madre).”(ECO, 1999, pg. 233-234)

4.1 As Referências Simbólicas de Alice no País das Maravilhas

Não seria por acaso que Charles escolheria um cenário que envolvesse reis e rainhas, nobres, acadêmicos, artistas, professores, fidalgos, entre outras figuras representativas. Fez questão de descrever um ambiente que seria facilmente reconhecido por Alice, quando também é possível dizer que estivesse criando um terreno familiar para disparar as suas críticas à sociedade, ainda que pusilânimes. Entre elas estariam a sua insatisfação com a burocracia acadêmica, o cansaço com a desordem da política inglesa, os preconceitos sobre a criança, a falta de compreensão e respeito com o universo infantil.

Uma referência à desordem e à falta de produtividade das reuniões políticas na Inglaterra pode aparecer no capítulo A Caucus-Race and a Long Tale. Alice e todos os animais estão encharcados por causa da lagoa de lágrimas, e o Dodô, um pássaro que assume uma postura discursiva solene, sugere que a melhor coisa para eles se secarem seria uma Caucus-Race. Em português foi traduzida como “Corrida do Seca-Seca”, mas na versão original em inglês, o duplo sentido torna-se cômico, ao mesmo trágico. Na demonstração do Dodô, a Caucus-race consistia em fazer uma marca circular no chão, e em seguida os animais correriam desordenadamente de um lado a outro, cujo vitorioso dificilmente seria determinado.

A palavra Caucus é de origem norte-americana em referência às reuniões entre os líderes de alguma facção para determinar uma candidatura ou direcionamento político. Quando o Dodô é questionado “But who has won?” ele simplesmente responde “Everybody has won, and all must have prizes.” Nas reuniões das Câmaras Inglesas eram comuns as discussões cujos interesses limitavam-se a um pequeno grupo que não queria abrir mão de seu poder (no caso de Charles, os cônegos e a reitoria de Christ Church), ao mesmo tempo em que estas reuniões eram confusas, sem sentido, e não chegavam a lugar algum.

E as alusões não param até o final da obra:

“The King and Queen of Hearts were seated on their throne when they arrived, with a great crowd assembled about them – all sorts of little birds and beasts, (...)” (CARROLL, cap. 11, pg. 114).

Em referência aos tribunais do parlamento, ou às reuniões na Câmara dos Comuns, ou até mesmo às reuniões entre o corpo docente e a reitoria de Christ Church..

No capítulo sete, A Mad Tea Party, novas possibilidades aparecem.

“Have some wine,” the March Hare said in an encouraging tone. Alice looked all around the table, but there was nothing on it but tea. “I don’t see any wine,” she remarked. “There isn’t any,” said the March Hare. “Then it wasn’t very civil of you to offer it,” said Alice angrily. “It wasn’t very civil of you to sit down without being invited,” said the March Hare. (CARROLL, cap. 7, pg. 73).

“Well, I’d hardly finished the firts verse,” (da canção parodiada de Jane Taylor, Twinkle, twinkle. N.A.) said the Hatter, “when the Queen bawled out ‘He’s murdering the time! Off with his head!’” “How dreadfully savage!” exclaimed Alice. “And ever since that,” the Hatter went on in a mournful tone, “he won’t do a thing I ask! It’s always six o’ clock now.” A bright idea came into Alice’s head. “Is that the reason so many tea-things are put out here?” she asked. “Yes, that’s it,” said the Hatter with a sigh: “it’s always tea-time, and we’ve no time to wash the things between whiles.” “Then you keep moving round, I suppose?” said Alice. “Exactly so,” said the Hatter: “as the things get used up.” “But what happens when you come to the beginning again?” Alice ventured to ask. “Suppose we change the subject,” the March interrupted yawning. (CARROLL, cap. 7, pg. 77).

De acordo com as notas de Martin Gardner, o personagem Mad Hatter (Chapeleiro Louco) tem relações com uma expressão da época: “As Mad as a Hatter”. Parte do que se conhece das origens desta expressão tem a ver com o material utilizado na fabricação de chapéus, feitos de feltro. O mercúrio utilizado para o tratamento do feltro dos chapéus causava envenenamento, e os sintomas mais visíveis eram espasmos que definiram como “Hatter’s shakes”, afetando a visão, os membros e a língua; também causava efeitos alucinógenos. Não por acaso, a figura do Mad Hatter ilustrada por John Tenniel tem muita semelhança com as feições do primeiro ministro Gladstone, de quem Charles discordava das idéias. Quanto à loucura da March Hare (Lebre de Março) está relacionada a uma crença de que as lebres do sexo macho usualmente entravam em frenesi quando estavam no período de cio, que era no mês de março,

Temos aqui outra referência à política. Party também tem duplo sentido, uma vez que o seu significado implica tanto “festa” quanto um “time” ou “grupo” reunido com um propósito em comum. Há um confronto entre Alice e os argumentos e comportamentos esquisitos do Mad Hatter e a March Hare.

Outra alusão simbólica à desordem política surge no capítulo doze Alice’s Evidence, onde está acontecendo um tribunal para julgar quem roubou as tortas da rainha. O motivo do julgamento é inútil, as leis de tribunais são absurdas e até discriminatórias:

At this moment the King called out (...), “Silence!” and read out from his book: “Rule Forty-two: all persons more than a mile high to leave the court.” Everybody looked at Alice. “I’m not a mile high,” said Alice. (CARROLL, cap. 12, pg. 125).

Como qualquer outra obra de literatura, Alice no País das Maravilhas nos permite horas de extensas análises e referências simbólicas, e uma visão ampla de todas estas referências seria impossível num simples artigo. A questão levantada agora seria: o que acontecia a Charles Dodgson, sendo um acadêmico respeitado e admirado pelos colegas, para que a sua crítica limite-se unicamente às paródias e alusões simbólicas, sem fazer referência direta aos alvos de suas insatisfações?

5. Alice e o Sonho

O período vitoriano é mais conhecido pelas regras sociais baseadas em princípios extremamente religiosos, cunhando uma moral rígida, inflexível. Quando a Rainha Vitória assumiu o trono em 1837, a classe média e a burguesia puderam vivenciar uma nova época de prosperidade e de uma aparente paz pós-guerras napoleônicas. Entretanto esta classe ignorava que a Revolução Industrial manchava o histórico do Império Inglês, por conta dos inúmeros problemas que tornava as classes pobres a condições cada vez mais decrépitas, e precárias condições de sobrevivência que só tendiam a se agravar.

A cultura reflexa tinha uma funcionalidade eficiente, pois ainda não existia a organização social para levantes contra a aristocracia. O puritanismo, o decoro e a domesticidade existentes na realeza vitoriana era o comportamento que aristocracia esperava dos seus súditos. A nuvem negra da Revolução Francesa que assombrava as classes dominantes já não era mais uma ameaça, e parte do conservadorismo surgiu como uma medida reacionária ao liberalismo francês.

Embora aparentassem uma civilidade impecável, dentro dos modos formatados pelos aristocratas, a sensação de repressão era inversamente proporcional, e a angústia do cidadão vitoriano perpetuou na difusão de um ideal anti-racionalista, resquícios de uma característica bem marcada da época romântica. A imaginação era exaltada, os poetas não mais demonstravam preocupação em ter versos respeitando uma métrica, pois o sentimento deveria correr livremente.

Charles era um grande admirador dos poetas de seu tempo, cujas idéias influenciaram largamente a sua obra. Dentre os quais, os mais mencionados em sua biografia estão os precursores românticos Samuel Taylor Coleridge, William Woldsworth e o vitoriano Alfred Tennyson, de quem teve a chance de tirar uma fotografia (COHEN, 1995. pg. 197).

A fuga para o universo imaginário era ao mesmo tempo uma fuga da rígida sociedade vitoriana, e os artistas da época tinham consciência disso. As alusões críticas chegavam com pouca força, e a conturbação social resultava em, no máximo, causar o riso. O excesso de individualismo despertava nos cidadãos uma angústia solitária, e a única saída era habitar um mundo idealizado.

O que consideraríamos como absurdo em Alice no País das Maravilhas pode ser vista a partir da psicanálise.

O primeiro ponto a ser observado é a trajetória da aventura da menina Alice, no conto de Carroll. Num resumo breve, Alice está sentada ao lado da irmã, tem a atenção despertada por um coelho vestindo trajes tipicamente vitorianos, seguindo-o impulsivamente. O coelho guia Alice por um túnel, que leva até uma porta, e atrás desta porta, existe o País das Maravilhas, onde vive muitas situações consideradas absurdas, entretanto, de fortes referências simbólicas conforme já foi demonstrado. A justificativa que Charles encontra para explicar todos os eventos ocorridos na trajetória de Alice é a de que a menina estava dormindo e adentrou o mundo dos sonhos, como relata o desfecho da história:

“Wake up, Alice dear!” said her sister. “Why, what a log sleep you’ve had!”

“Oh, I’ve had such a curious dream!” said Alice. And she told her sister, as well as she could remember them, all these strange Adventures of hers that you have just been reading about; (CARROLL, cap. 12, pg. 130).

Partindo do pressuposto Freudiano que a imaginação é o sonho consciente, no estado de vigília, pode-se dizer que Charles tinha alguma consciência de como o sonho funcionava na mente humana, e por isso escolheu o momento de um sonho para justificar todas as aventuras de Alice. Ainda seguindo esta lógica, talvez Charles fosse a própria Alice, e ali estava o seu ideal vitoriano de sociedade, ou, a sua representação simbólica, onírica, de um mundo que tanto o desagradava. Levando em conta a sua religiosidade rigorosa, somada à sua tristeza de ter rompido suas relações com os Liddell (COHEN, pg. 131), além de conviver num período de moralismo extremamente repressor, o único lugar onde Charles poderia discorrer livremente as suas insatisfações seria o seu universo imaginário.

Em Interpretação dos Sonhos, Freud (1900) nos explica que os sonhos são a realização de um desejo, mesmo os sonhos ruins e distorcidos. Através do método empregado para analisar seus pacientes, ele se refere aos sonhos como acontecimentos que se alojam no inconsciente, e despertam ao consciente quando atingimos um estado de relaxamento:

“Tenho observado em meu trabalho psicanalítico que todo o estado de espírito de um homem que esteja refletindo é inteiramente diferente do de um homem que esteja observando seus próprios processos psíquicos (...). Em ambos os casos a atenção deve ser concentrada, mas o homem que está refletindo exerce também a sua faculdade crítica; isso o leva a rejeitar algumas idéias que lhe ocorrem (...). O auto-observador, por outro lado, só precisa dar-se ao trabalho de suprimir sua faculdade crítica. Se tiver êxito nisso, virão a sua consciência inúmeras idéias que de outro modo ele jamais conseguiria captar.” (FREUD, 1900, pg. 122.)

Na época da publicação de Alice, Freud ainda não tinha nascido, e as pesquisas relacionadas aos sonhos só apareceriam cerca de meio-século depois, quando Charles já haveria falecido. A idéia aqui não é demonstrar que Charles descobriu a função psicanalítica dos sonhos, mas, que num estado de sono, as diversas idéias surgem à consciência, até mesmo as absurdas, tal a explicação para o “absurdo” de Alice. Contudo este ainda é o meio do caminho para a conclusão do que estamos propondo.

Prosseguindo com esta lógica, Freud diz que quanto mais repressivo o ambiente mais distorcida será a mensagem, e a mesma lógica funciona nos pensamentos oníricos, resultando em desejos de realizações indisfarçadas:

“(...) nos casos em que a realização de desejo é irreconhecível, em que é disfarçada, deve ter havido alguma inclinação para se erguer uma defesa contra o desejo; e, graças a essa defesa, o desejo é incapaz de se expressar, a não ser de forma distorcida.” (FREUD, 1900, pg. 160).

A personalidade extremamente tímida de Charles o forçava a estas alusões e referências. Alice no País das Maravilhas tem uma figura metalingüística, pois representa a imaginação através do sonho; algo como a imaginação do autor relatando o mundo imaginário da personagem. E levando em consideração que a aparente paz que reinava nas relações sociais dos ingleses, era na verdade, a sua submissão aos comportamentos ditados ao coletivo, é explicável a ocultação das suas críticas:

“(...) O escritor tem de estar precavido contra a censura e, por causa dela, precisa atenuar e distorcer a expressão de sua opinião. Conforme o rigor e a sensibilidade da censura, ele se vê compelido a se abster de certas formas de ataque, ou a falar por meio de alusões em vez de referências diretas, ou tem de ocultar seu pronunciamento objetável sob algum disfarce aparentemente inocente (...).” (FREUD, 1900, pg. 161).

Freud praticamente responde à questão das tendências alusivas. Uma vez reprimidas, elas surgem em forma de sonhos. O sonho da menina Alice, provavelmente era o que Charles discordava do universo infantil, o que o tornava insatisfeito com seus colegas de trabalho, com a sociedade. Mas em respeito às tradições que lhes foram ensinadas no ambiente familiar, ele preferia manter estas insatisfações presas, relatadas apenas em seus diários, ou soltas ordinariamente em versos e paródias, e quando atingindo o máximo das suas angústias, na forma deste criativo universo descrito em Alice no País das Maravilhas.

6. Conclusão

Neste artigo foram levantadas questões de caráter literário, sociológico, histórico e psicanalítico, sem o aprofundamento devido em cada uma destas áreas, o que necessitaria de um espaço maior de publicação. Apresentamos uma espécie de caminho, ou método por assim dizer, para demonstrar que a literatura, quando é lida por uma perspectiva crítica, eleva o seu grau útil, de entretenimento para um objeto de transformação intrapessoal e interpessoal. Mesmo que a literatura esteja voltada para um público infantil, ela não é digna de preconceitos. Demonstramos que uma literatura aparentemente absurda, como Alice no País das Maravilhas está repleta de temas que levantariam discussões sérias sobre a sociedade e o existencialismo.

7. Considerações Finais

Uma das mais completas análises do universo de Alice está na obra de Martin Gardner, The Annotated Alice, que também foi utilizado como base para a pesquisa deste material. Entretanto, o foco do nosso estudo não é parar em Alice no País das Maravilhas, mas revelar com este método, que ele pode ser aplicável a qualquer obra, e ao mesmo tempo fazer valer a finalidade maior da literatura artística, como objeto de manifestação, contestação e conscientização, dentro das idéias propostas pelo autor.

Sabemos que o mundo como se nos apresenta é a mera representação daquilo que idealizamos, e que as relações humanas se dão através da comunicação nos mais diversos graus, e nos mais variados meios. Uma literatura, ainda que por entretenimento, está sempre querendo nos dizer alguma coisa, e os caminhos para buscar este entendimento vão desde a compreensão proposta por outra pessoa, ao entendimento intrapessoal. Esperamos que a prática da leitura, a partir do que aqui foi proposto, esteja sempre aliada à vontade de obter uma transformação interior, e que todas as formas de literatura publicadas, tenham o seu devido mérito dentro das direções que são esperadas pelos seus respectivos autores. A consciência crítica numa leitura torna-nos cuidadosos com a mensagem, ao mesmo tempo em que nos transforma.

Referências Bibliograficas

COHEN, M. N. Lewis Carroll: uma biografia. 1ª ed. Rio de Janeiro; Editora Record, 1995.

GARDNER, Martin. The Annotated Alice, the Definitive Edition. New York, USA: Penguin Books, 2001.

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Matheus Vieira
Enviado por Matheus Vieira em 27/12/2010
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