O SUJEITO EM PRIMEIRO LEVI
RESUMO: Neste artigo, faço uma análise investigativa de duas obras literárias: É isto um homem (1988) e Os afogados e os sobreviventes (1990), do escritor italiano Primo Levi, que viveu a terrível experiência dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. A questão que investigo é justamente a questão do sujeito submetido ao Outro por completo. As noções de esclarecimento e razão são utilizadas aqui como um caminho a ser seguido, procurando compreender a situação de morte/vida de alguém que passou pelo campo de extermínio nazista e sobreviveu, condenando-se, dessa forma, às rememorações do vivido.
Palavras-chave: Primo Levi; sujeito; campo de concentração; experiência.
ABSTRACT: In this text I do an investigative anlyse of two Primo Levi’s works É isto um homem (1988) e Os afogados e os sobreviventes (1990). This writer lived the terrible experience of concentracion camp during the Second World War. The question that I investigate is exactly the question of subject, who is submited completely to the Other. The notions of clarification and reason are used here as a way to be follow, looking for understanding the situation of death/life of someone, who lived in the nazist concentration camp and survived, condemning himself, ins this way, to remembering what he had lived.
Key-words: Primo Levi; subject; concentration camp; experience.
A sobrevivência, de fato, está nas ligações entre as coisas; nos termos de Eliot, a realidade não pode ser privada dos “outros ecos [que] habitam o jardim”.
Edward Said - Cultura e Imperialismo
Quando Henry Major Tomlinson escreve no início de The Sea and the Jungle (1912), que o seu jardim é “parte necessária de sua narrativa” leva o leitor a interrogar-se, imediatamente, sobre duas coisas: a) que lugar teria um jardim em um relato de viagem que fala do mar e da selva amazônica?, b) que sentidos poderiam ter os termos jardim, mar e narrativa no contexto da viagem? Vejamos, então, o desabafo de Tomlinson: “My garden, on such a morning, is a necessary feature of the narrative, and much as I should like to skip it and get to sea, yet things must be taken in the proper order, and the garden comes first” [Meu jardim, em tal manhã, é uma parte necessária da narrativa, e gostaria muito de ignorá-lo e chegar ao mar, mas as coisas devem ser tomadas na devida ordem, e o jardim vem em primeiro lugar ]. Esses signos, acredito, podem ser compreendidos como metáforas, respectivamente, da vida, do tempo e da própria viagem humana. A poeticidade sugerida por Tomlinson em sua prática literária deveria fazer parte da vida de qualquer ser humano. Mas a belíssima narrativa The Sea and the Jungle foi escrita muito antes do terrível extermínio de milhões de pessoas nos campos de extermínio nazistas em Auschwitz, durante a segunda guerra mundial.
Assim, comparar a vida com um jardim, o mar com o tempo e a narrativa com a junção de experiências e ações do próprio sujeito, isto é, da história do sujeito pode ser bastante produtivo e enriquecedor em termos de esclarecimento sobre grandes questões da humanidade, a saber: o que é a vida?, de onde vim?, o que é a morte?, para onde vou?, etc. O jardim pode representar a beleza que são as cores, o perfume, o toque, a visão, em suma, o poder dos sentidos, a vida. Do nascimento até a morte há um mar que deve ser atravessado. Ele pode simbolizar o desconhecido, mas imaginado; o temido, mas desejado; o longínquo, mas obrigatoriamente ultrapassado. Assim como os mares bravios (com o Ciclope, a Circe, Calipso e as belas e mortíferas sereias e tudo que esses seres possam significar na contemporaneidade) atravessados por Ulisses, o herói da Odisséia, representam a eterna busca do esclarecimento [alfklärung], a metáfora do jardim, do mar e da narrativa podem ser lugares em que o indivíduo se constitui e é constituído ao longo de sua existência terrena. Dessa maneira, para refletir acerca do sujeito em É isto um homem (1988) e Os afogados e os sobreviventes (1990), do escritor italiano Primo Levi, penso que certa menção à idéia da viagem humana pode ser tematizada a partir dessa construção metafórica construída por Tomlinson em seu relato de viagem à Amazônia do início do século 20.
A narrativa, como o próprio ato da viagem, sugere o atravessar; sugere o alcance do outro lado da duração de si mesmo no tempo. A atividade narradora de Primo Levi, numa tentativa de descrever os fatos vividos através da escrita, é o próprio ato de especular sobre suas experiências terríveis, porque intermináveis, de vida (ou de morte?) de algo que lhe quer escapar e que se distancia a cada instante. Como bem o diz Gagnebin “Para poder descrever, pois, seus próprios atos, o espírito não pode se pensar a si mesmo como o palco, gigantesco e sempre cambiante, de uma representação infinita, não pode se pensar em termos de espaço e de representação, mas deve, para se pensar a si mesmo, pensar simultaneamente o que está “além” dele, o que, portanto, lhe escapa, o que ele não pode nem conter nem compreender” (GAGNEBIN, 2005: 71). Logo, Levi tenta dizer-se intimamente, numa espécie de autolibertação, como é passar pelas experiências desumanas às quais fora obrigado a experienciar e, por isso mesmo, está condenado a revivê-las continuamente na “viagem ao fundo do poço” sem fundo.
É esse “chegar no fundo” que a narrativa de Primo Levi consegue descrever de forma tão vivamente dramática e aterrorizante. O pano de fundo dessa projeção é o testemunho vivo das experiências vividas por Levi em um campo de concentração, em Monowitz, perto de Auschwitz, no terrível ano de 1944, na Polônia. Ao (re)atravessar, através da rememoração, essas terríveis ondas de um mar de insanidades nazistas, Levi leva-nos a refletir sobre o que é o homem ou, para ser mais abrangente: que características devem possuir um representante da espécie humana para ser considerado um ser humano em seu sentido mais abrangente. Precisa-se mais que um corpo em si mesmo, isto é, um corpo nu, natural, orgânico, sem qualquer produção cultural, como designa o termo körper, em alemão; precisa-se do leib, o sublime, o humano, para que se possa continuar a existir como uma estrela cintilante e não como um fantasma de si mesmo.
Nesse sentido, antes de iniciar a narração de suas lembranças, Levi nos adverte: “pensem se isto é um homem/que trabalha no meio do barro,/que não conhece paz,/que luta por um pedaço de pão,/que morre por um sim ou por um não/. Pensem bem se isto é uma mulher,/sem cabelos e sem nome,/sem mais força para lembrar,/vazios os olhos, frio o ventre,/como um sapo no inverno” (1988: 09). Para Levi, então, está claro que para ser humano é preciso que haja a razão, a presença da luz divina na alma, a centelha de vida, a dignidade, algo que, paulatinamente, o nazismo tentou apagar em seus prisioneiros incessantemente. O sujeito [sub-jectum] como o suporte de si mesmo fora apagado pouco a pouco, restando tão somente um corpo como uma máquina: frio e inerte. Não uma máquina em seu sentido capitalista, produtivo, mas uma carcaça do que tinha sido antes dos inúmeros flagelos a que fora submetido “desrazoadamente”.
Através da memória de Primo Levi, o quadro que se apresenta diante do leitor é um retrato de quase-morte; é a história de homens, mulheres e crianças, transformados em farrapos, destituídos de todos os seus direitos enquanto humanos. Bichos, porque expostos aos mais terríveis maus-tratos e humilhações, é o termo que mais se aproxima de suas condições de existência naqueles tenebrosos dias do nazismo. Basta um olhar, por desatento que seja, para se verificar que esse grupo de homens, que anda cabisbaixo e faminto, assemelha-se a um grupo de animais prisioneiros, porque submetido à horríveis privações de alimentos, de abrigo, de descanso, de calor humano, de linguagem; em resumo, do prazer da liberdade. No campo de concentração, os prisioneiros aprendem rapidamente “a responder Jawoh!, a não fazer nunca perguntas, a fingir ter compreendido sempre” (1988: 31). Esse exercício repetitivo de submissão faz com que percam, pouco a pouco, a capacidade para refletir sobre seu mundo e sobre si mesmos: exercício necessário para se atingir o esclarecimento. A linguagem lhes havia sido podada. Poucos compreendiam o jargão alemão utilizado nos Lager pelos Kapos e, assim, a comunicação entre os prisioneiros era rara. O mais importante, descobriam, não era compreender a linguagem dos SS, mas manter-se vivo através da concentração no trabalho. Como escreve Levi, “o [trabalho] era como exercício da mente, como a evasão do pensamento da morte, como modo de viver o dia-a-dia”. A frase “O trabalho enobrece”, disposta em vários lugares nos Lager, buscava incutir nos prisioneiros a crença na libertação através do trabalho árduo e não através do esclarecimento possibilitado pelo pensamento crítico.
Segundo Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem, a palavra é o produto da interação entre dois sujeitos falantes que se compreendam mutuamente. Assim, o eu só pode existir na medida em que exista o tu. Cito: “A palavra é uma ponte lançada entre mim e o outro” (2004: 95). Entende-se, então, que nos campos de concentração, o prisioneiro estava privado desse outro e, por isso mesmo, era obrigado a inventariar com outros eus de si mesmo, isto é, dialogar consigo mesmo na maioria das vezes. Para Bakhtin, “o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, a interação verbal” (2004: 123). Assim, Levi, no capítulo IV – Comunicar - de Os afogados e os sobreviventes, escreve que “o fato de 'não ser interpelado' tinha efeitos rápidos e devastadores. (...) se você não encontra ninguém [com quem falar], a língua se esvai em poucos dias, e, com a língua, o pensamento” (1990: 54). A destituição do sujeito iniciava-se, então, nos Lager, a partir da falta de comunicação que lhe garantiria as informações sobre os modos possíveis de sobrevivência.
Na opinião de Levi,
A maior parte dos prisioneiros que não conheciam o alemão - portanto, quase todos os italianos – morreu nos primeiros dez ou quinze dias de sua chegada: à primeira vista, por fome, frio, cansaço, doença; num exame mais atento, por insuficiência de informação. Se tivessem podido comunicar-se com os companheiros mais antigos, teriam se orientado melhor: aprenderiam antes a obter roupas, sapatos, comida ilegal; a evitar o trabalho mais duro e os encontros, muitas vezes mortais, com os SS; a cuidar sem erros fatais das doenças inevitáveis. Não quero dizer que não morreriam, mas teriam vivido por mais tempo, tendo maiores possibilidades de recuperar o terreno perdido (LEVI, 1990: 54).
Immanuel Kant, em seu célebre texto Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento, afirma que o “Esclarecimento [Aufklärung] significa a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado” (1995: 100). Entretanto, como se atingir a maioridade, digo, o esclarecimento, se nos for privada a liberdade até mesmo da comunicação completamente? É preciso, então, como o fez Primo Levi, inventariar com o pensamento; imaginar-se outro, ou melhor, constituir-se de outra forma que seja possível a vida, enquanto a liberdade não é alcançada. A imaginação, como um produto criativo, é capaz de livrar o indivíduo de suas próprias amarras, de elevá-lo a outras esferas do próprio cotidiano. Somente a força do pensamento positivo, a crença na beleza da vida e a renúncia à situações terríveis, em nome da esperança de momentos felizes, pode superar qualquer sofrimento e providenciar a paz e a felicidade humana, pensa-se. O nazismo, porém, como doença da razão, mostrou que não.
Todos esses enunciados povoam a mente de todo indivíduo. Contudo, quando em situações de perigo à vida, precisam ser ativados com toda a força mental. É preciso produzir “a verdadeira reforma do modo de pensar”, esclarece Kant em um outro contexto, e isso, num plano comum, pode levar muito tempo. Na situação em que se encontrava Primo Levi há uma inversão abrupta desse raciocínio. Quando privado de tudo que o fazia sentir-se homem, perde essa afinidade humana, escreve Levi, e tanto faz viver ou morrer. Cito Levi:
Um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência , esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado da expressão “Campo de extermínio”, bem como o que desejo expressar quando digo: chegar no fundo (LEVI, 1988: 25).
“Chegar no fundo” é esvaziar-se, ou ser esvaziado de qualquer valor humano. É não ter mais nem mesmo um nome, apenas um número, como nos campos hitlerianos de extermínio. É ser massacrado em “proporções tão amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivações tão intrincadas” [que o indivíduo] “tende a rejeitá-las em razão de seu próprio absurdo” (1990: 01). Aliás, na sociedade capitalista moderna, o número de um CPF, RG, etc. tem mais valor do que o nome do indivíduo. Assim, o indivíduo é representado a partir desse identificador numérico. Se na sociedade capitalista aprende-se, desde cedo, a pensar-se a si mesmo a partir do ter, do possuir coisas, esquece-se, muitas vezes, dos bens espirituais, do cultivo de si, do cuidar de si, isto é, da “ética de si mesmo”. A posse, os bens materiais, possui um valor inestimável para muitos, senão para a maioria das pessoas. O ser, então, é engolido pelo ter. “Chegar no fundo” significa perder-se a si mesmo; encontrar-se em um estado de completa letargia em que viver ou morrer nada significam. Nesse estado, a esperança não mais vive, a chama interna da alma humana está apagada. A felicidade não mais é pensada. Como diz Levi, “Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável” (1988: 15). Todavia, apressa-se Levi em mostrar o outro lado dessa afirmativa: “é irrealizável a infelicidade completa”. Provavelmente, Levi procure compensar a si mesmo pela infelicidade de ter vivido no campo de extermínio e ter sobrevivido através de frases compensatórias como a citada acima. É através da reflexão, portanto, que Levi descobre que a própria condição humana “é contra qualquer infinito” (1990:15).
Sem dúvida, essa dificuldade de cultivo do indivíduo tenha sido acentuada na modernidade, pois como acredita Eagleton, “o cultivo individual agora depende mais e mais da cultura no seu sentido social” (2005: 40). O sujeito moderno, então, pode perder facilmente sua singularidade e somente conseguir constituir-se a partir da coletividade, principalmente quando aprisionado em situações desumanas. A dignidade, tão necessária à constituição de qualquer ser humano, é, constantemente varrida da vida dos prisioneiros em Auschiwitz. Muito mais terrível para o intelectual não pelo fato de não estar habituado ao trabalho pesado, mas porque estava consciente de sua desumanização diária, pois procurava raciocinar com lucidez, na medida do possível, sobre tudo que estava acontecendo. Cito novamente Levi:
À parte o trabalho, também a vida no alojamento era mais penosa para o homem culto. Era uma vida hobbesiana, uma guerra contínua de todos contra todos. (...) O soco dado pela Autoridade podia ser aceito, era, literalmente, um caso de força maior; ao contrário, não se podiam aceitar, porque inesperados e fora das regras, os golpes recebidos dos companheiros, aos quais raramente o homem civilizado sabia reagir. Alem disso, uma dignidade podia ser encontrada no trabalho manual, inclusive no mais cansativo, e era possível a ele adaptar-se, quem sabe nisto percebendo uma ascese grosseira ou, segundo o temperamento, um “medir-se” conradiano, um reconhecimento dos próprios limites. Era muito mais difícil aceitar a routine do alojamento: arrumar a cama no modo perfeccionista e idiota que descrevi entre as violências inúteis, lavar o chão de madeira com sórdidos trapos molhados vestir-se e desnudar-se sob ordens, exibir-se nu por ocasião dos inúmeros controles de piolhos, sarnas, da limpeza pessoal, adotar a paródia militarista da “ordem unida”, da “posição de sentido”, de “tirar o gorro” de improviso diante do SS graduado, de ventre suíno. Isto, sim, era percebido como uma destituição, uma regressão mortal para um estado de infância desolado, carente de amor e de mestres (LEVI, 1990: 82).
O trabalho escravo como forma de dominação e destruição do sujeito era uma das estratégias utilizadas pelos alemães em seus Lager. Como enriquecimento injusto, é claro, através da subjugação de vidas humanas nos campos de extermínio. Uma zona de morte em que o prisioneiro extermina-se a si próprio diariamente e é exterminado sumariamente a qualquer momento. Todas as vergonhas desnecessárias impingidas aos sujeitos sem nomes, então, aos não-sujeitos de si mesmos, conduzem-lhes à guerra total. A loucura impera soberanamente nos Lager. Prisioneiros transformando-se e sendo transformados em animais violentos gradativamente, desde o momento de embarque nos trens superlotados que os conduzia ao inferno até o momento do extermínio derradeiro. A humilhação a que eram submetidos os prisioneiros marcou a todos, não apenas porque ao mesmo tempo em que era uma situação vexatória, era motivo de diversão dos SS de escolta. Mas, também, porque
evacuar em público era angustioso ou impossível: um trauma para o qual nossa civilização não nos prepara, uma ferida profunda infligida à dignidade humana, um atentado obsceno e cheio de presságios; mas também o sinal de uma malignidade deliberada e gratuita (LEVI, 1990: 66-67).
Tanto a obra É isto um homem? quanto Os Afogados e os Sobreviventes estão repletas de episódios de ações grotescas contra os prisioneiros. Cito apenas um episódio ocorrido no comboio que fazia a deportação de Levi e de muitos outros:
O comboio foi parado duas ou três vezes em pleno campo, as portas dos vagões foram abertas,permitindo que os prisioneiros descessem: mas não que se afastassem da ferrovia nem que se separassem. De outra vez, as portas foram abertas, mas durante uma parada numa estação austríaca de trânsito. Os SS da escolta não escondiam seu divertimento ao ver homens e mulheres agacharem-se onde podiam, nas plataformas, no meio dos trilhos; e os passageiros alemães exprimiam abertamente seu desgosto: gente como essa merece o seu destino, basta ver como se comportam. Não são Menschen, seres humanos, mas animais, porcos; é evidente como a luz do sol (LEVI, 1990: 67).
O objetivo não era apenas matar o indivíduo (e uma nação), mas envergonhá-lo, humilhá-lo, torná-lo indigno de si mesmo, despersonificá-lo, triturá-lo, fazê-lo desejar a morte ardentemente. Até mesmo para os sobreviventes, a angústia, o pesadelo, a temeridade do retorno do holocausto tornou-se uma monstruosidade com a qual estava condenado a viver diariamente. A violência “inútil” , como caracteriza Levi as sanções desnecessárias impingidas aos prisioneiros, já destacadas neste texto, volta-se contra o grupo de indíviduos pertencentes ao mesmo grupo racial, étnico, político, etc. Levi afirma que “a capacidade de odiar, frustrada frente aos opressores, se volte, insensatamente, contra os oprimidos; ele ficará satisfeito ao descarregar sobre seus subordinados a ofensa que recebeu de seus chefes” (1988: 92). Assim, o sonho do oprimido é tornar-se um opressor. Frantz Fanon, em seu instigante livro Os condenados da Terra (2005), falando a respeito do processo de colonização e descolonização de territórios africanos pela França, afirma que qualquer indivíduo submetido ao Outro completamente, sonha com o momento em que a situação será invertida. Assim, de acordo com Fanon “É verdade, não há um colonizado que não sonhe, ao menos uma vez por dia, instalar-se no lugar do colono (2005: 56). Mímesis e passividade”, esclarece Gagnebin, “estão assim estreitamente ligadas tanto no início quanto no fim de nossa vida orgânica, tanto nas tentativas de assimilação desesperada ao meio ambiente quanto na fuga caótica para sobreviver” (2006: 88).
Impossibilitados de qualquer reação vitoriosa, como muito bem explica Levi em resposta às questões: por que não fugiram? por que não se rebelaram?, os indivíduos prisioneiros são tomados por sentimentos de covardias, vergonhas e de traições de si mesmos e seus irmãos. Tornam-se covardes traidores. Então, era comum, nos conta Levi, que o típico produto da estrutura do Campo de Concentração alemão fosse o “proeminente” judeu. “Basta oferecer a alguns indivíduos em estado de escravidão uma situação privilegiada, certo conforto e uma boa probabilidade de sobrevivência, exigindo em troca a traição da natural solidariedade com os companheiros, e haverá por certo quem aceite”. (1988: 92). O impulso mimético, há muito tempo, oculto na memória do indivíduo, ou a “mimese que foi recalcada”, como dizem Adorno e Horkheimer (1985), ressurge abruptamente e é projetado como advindo do próprio objeto: “a vítima em potencial”.
Neste sentido, Adorno e Horkheimer advertem que
Os proscritos despertam o desejo de proscrever. No sinal que a violência deixou neles inflama-se sem cessar a violência. Deve-se exterminar aquilo que se contenta em vegetar. As reações de fuga caoticamente regulares dos animais inferiores, a formigação das multidões de insetos, os gestos convulsivos dos martirizados exibem aquilo que, em nossa pobre vida, apesar de tudo, não se pode dominar inteiramente: o impulso mimético. É na agonia da criatura, no pólo extremo oposto à liberdade, que aflora irresistivelmente a liberdade enquanto determinação contrariada da matéria. É contra isso que se dirige a idiossincrasia que serve de pretexto ao anti-semitismo” (1985: 151).
O sujeito que perdeu a capacidade de refletir sobre o objeto e sobre si mesmo em determinado contexto é levado a sentir-se como mestre de si mesmo e de seus semelhantes, e isso o leva à paranóia. Para os autores de A Dialética do Esclarecimento, “Não conseguindo mais devolver ao objeto o que dele recebeu, o sujeito não se torna mais rico, porém, mais pobre. Ele perde a reflexão nas duas direções: como não reflete mais o objeto, ele não reflete mais sobre si e perde assim a capacidade de diferenciar” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 156). Então, os proeminentes judeus, isto é, os que tiveram a chance de “salvar-se” através de funções diferenciadas dentro dos Lager e por meio de muitas traições de seus irmãos prisioneiros.
Primo Levi relata, em É isto um homem?, a história de Schepschel, Alfred, Elias e Henri, como forma de demonstrar as maneiras mais aberrantes, extenuantes e traidoras que cada um podia se submeter na tentativa de sobreviver ao holocausto. Cada um a sua maneira, imaginava a maneira para não morrer e a colocava em prática diariamente. Cito Levi: “Muitíssimos foram os meios que imaginamos para não morrer: tanto quanto são os temperamentos humanos. Cada um implicava uma luta extenuante de cada um contra todos, e muitos deles uma longa série de aberrações e compromissos. A não ser por grandes golpes de sorte, era praticamente impossível sobreviver sem renunciar a nada de seu próprio mundo moral; isso foi concedido a uns poucos seres superiores, da fibra dos mártires e dos santos” (1988: 94).
No relato de Levi, as palavras estão carregadas de um tom de testemunho e denúncia e nunca de julgamento para condenação. A busca do narrador é pela compreensão do tempo de horror e, nesse fluxo e refluxo, o encontro com os cacos de si mesmo que se perderam e se perdem com o passar do tempo. Seus relatos objetivam esclarecer as futuras gerações do horror que é a guerra. Assim, suas palavras mostram a possibilidade de uma outra onda de violência e, em tom profético, advertem. Cito Levi:
A violência, “útil” ou “inútil”, está sob nossos olhos; propaga-se, em episódios intermitentes e privados, ou como ilegabilidade de Estado, em ambos os mundos que se convencionou chamar de Primeiro e Segundo Mundo, vale dizer, nas democracias parlamentares e nos países da área comunista. No Terceiro Mundo é endêmica e epidêmica. Só espera o novo histrião (não faltam candidatos) que a organize, a legalize, a declare necessária e devida, e que contamine o mundo. Poucos países podem dizer-se imunes em relação a uma futura onda de violência, gerada pela intolerância, pela vontade de poder, por razões econômicas, por fanatismos religiosos ou políticos, por atritos raciais (1990: 124).
No trecho destacado, substantivos como 'violência', 'episódios', 'Estado', 'mundos', 'democracias', e 'países' seguidos por adjetivos como 'inútil', 'privados', 'intermitentes' e 'comunista' unem-se a verbos de ligação 'está', 'é' e verbos de ação, 'espera', 'organize', 'legalize', 'declare', 'contamine' e 'podem' reúnem-se numa ânsia de demonstrar a iminência de um novo holocausto. A permanente onda de crises políticas entre as nações atuais (EUA e Irã, ou a Coréia do Norte, por exemplo) atreladas a conflitos internos podem ser indícios de uma possibilidade de outro conflito, de abrangência global. Para Levi, “os objetivos de vida são a defesa ótima contra a morte: não só no Lager” (1990: 90). Assombrado pelos fantasmas de suas experiências terríveis de vida e morte durante o tempo em que esteve confinado ao campo de extermínio, Levi lutou até o fim de sua existência terrena para demonstrar a seus leitores, principalmente ao leitor alemão, o quanto à guerra tem de horror e estupidez. E os prisioneiros sobreviventes dos campos de concentração dividiam-se, segundo Levi, em duas categorias bem distintas: os que calam e os que falam. “Ambos”, escreve Levi, “obedecem a razões válidas: calam aqueles que experimentam mais profundamente um mal-estar que, para simplificar, chamei de 'vergonha', aqueles que não se sentem em paz consigo mesmos ou cujas feridas ainda doem” (1990: 91).
Seguindo essa categorização proposta por pelo autor, convém afirmar que Levi jamais se calou e assim, buscou, de um lado, através de seus diversos relatos, contar ao mundo as atrocidades sofridas pelos prisioneiros de Hitler e, de outro, tentou reencontrar a liberdade e a paz roubadas, a identidade despedaçada. E assim, os que falam, fazendo da escrita a forma de um reencontrar-se consigo mesmo, diz Levi, “consolidam sua identidade numa corporação e sentem aumentado seu prestígio” (1990: 91). Porém, Levi doeu-se e condoeu-se até o fim e, pelo que se sabe, viveu uma morte interminável. O trauma, como uma ferida, acompanhou Levi até o desfecho de sua vida. Desde a experiência nos Lager até sua morte, Levi atormentou-se com os diversos temas que discute em seus livros: a vergonha, a humilhação, o comportamento humano, a dor, a liberdade, a vida, a morte, etc.
Em conclusão, o capitalismo hoje é um mundo administrado que se opõe à autonomia do sujeito. A exploração a que foram submetidos inúmeros judeus, ciganos, homossexuais, políticos, intelectuais, etc. podou-os de sua própria viagem rumo à felicidade completa, mas conscientizou-os de que “também a infelicidade completa é irrealizável” (LEVI, 1988:15). Depois da experiência, quem sobreviveu, morreu interminavelmente nos pesadelos durante breve sonos, vigílias e cochilos assustavam-se diariamente com o mundo em volta. Cito Levi outra vez: “Logo que fechamos os olhos, percebemos novamente que o cérebro começou a trabalhar, independente da nossa vontade; zune e martela, sem descanso, constrói fantasmas e signos terríveis, sem parar os traça e os agita numa névoa cinzenta na tela dos sonhos” (1988: 62).
A organização totalitária de um governo, portanto, atingiu seu cúmulo no nazismo. A exploração, entretanto, ainda persiste. Como escrevem Adorno e Hokheimer no prefácio da Dialética do Esclarecimento, “O pensamento crítico, que não se detém nem mesmo diante do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da história” (1985: 09). Assim é que Levi provavelmente agiu, quando decidiu pela escrita de suas experiências mortais, durante os longos meses que esteve nas mãos dos nazistas. Entretanto, Levi não se deteve diante de sua “morte interminável” e, lucidamente, narrou em forma de depoimento, as lembranças guardadas em seu corpo e em sua alma. Traumas que carregou até o derradeiro suspiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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