Miguel Torga, poeta da terra e da esperança
Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia Rocha, foi um dos mais importantes escritores portugueses. Foi considerado o maoir poeta português do século XX.
Nascido em São Martinho de Anta, Trás os Montes, em 12 de Agosto de 1907.
Filho de gente humilde do campo, frequentou o seminário e emigrou para o Brasil em 1920, com 12 anos, para trabalhar na fazenda do tio, na cultura do café. O tio apercebe-se da sua inteligência e patrocina-lhe os estudos liceais, em Leopoldina. Distingue-se como um aluno dotado. Em 1925 regressa a Portugal e ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Publica o seu primeiro livro de poesia "Ansiedade".
A partir de 1939 escreve a maioria dos seus livros. Em 1933 concluiu a formatura em Medicina com o apoio financeiro do tio do Brasil. Exerceu no início nas terras agrestes trasmontanas, de onde era originário e que são pano de fundo da maior parte da sua obra.
Decide adotar o pseudónimo de Torga. Não escolhe o nome por acaso. Torga, ou urze, planta bravia, humilde, espontânea e com o seu habitat no chão agreste por todo o Portugal, mas particularmente nas serranias do norte do país, é o correspondente no reino vegetal dessa força que será o poeta e o prosador.
A problemática religiosa é quase constante na sua obra literária. Embora não tomando uma atitude de ateu, Torga, ao negar Deus, não nega a sua existência; nega, sim, a representação que os homens fazem deste. O que perturba Torga é o fato de não existir um Deus humano e iminente que se possa sentir e ter.
A obra de Torga tem um carácter humanista: criado nas serras transmontanas, entre os trabalhadores rurais, assistindo aos ciclos de perpetuação da natureza, Torga aprendeu o valor de cada homem, como criador e propagador da vida e da natureza: sem o homem, não haveria searas, não haveria vinhas, não haveria toda a paisagem transmontana e duriense, feita de socalcos nas rochas, obra magnífica de muitas gerações de trabalho humano.
Ora, estes homens e as suas obras levam Torga a revoltar-se contra a Divindade Transcendente a favor da imanência: para ele, só a humanidade seria digna de louvores, de cânticos, de admiração: (hinos aos deuses, não/os homens é que merecem/que se lhes cante a virtude/bichos que cavam no chão/actuam como parecem/sem um disfarce que os mude).
Para Miguel Torga, nenhum Deus é digno de louvor: na sua condição onisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e enquanto ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a natureza - mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se impor à natureza, como os trabalhadores rurais transmontanos impuseram a sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a natureza mau grado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, ao ver de Torga fazem do homem único ser digno de adoração.
Para Torga, o Homem deveria ser capaz de realizar-se no mundo. Deve unir-se à terra, ser-lhe fiel, para que a vida tenha sentido e o próprio sagrado se exprima. A terra é o lugar concreto e natural do Homem. Na terra, a vida acontece e aí se deve cumprir. Nela acontece a origem da vida e dos tempos, em Trás-os-Montes, o seu Reino Maravilhoso, com essa bravia erva, a torga.
Na sua terra natal, encontrou a ternura e o sofrimento, o povo concreto com as suas alegrias e as suas tristezas, a sua tranquilidade e o seu esforço.
Verdadeiramente humanista, problematiza a criação, as limitações humanas e o ser-para-a-morte, que o existencialismo do século XX desenvolveu.
A poesia de Miguel Torga está ligada ao canto da terra dura e bravia e dos seus valores de integridade, sobriedade e grandeza; ao canto das coisas elementares; à simplicidade poética, inspirada na natureza; ao sentimento telúrico; ao forte apego à terra; à apologia da terra firme e das raízes que nela se cravam; à valorização da realidade rural, terrena; à valorização da sabedoria da terra.
Considerado por muitos como um avarento de trato difícil e carácter duro, foge dos meios das elites pedantes, mas dá consultas médicas gratuitas a gente pobre e é referido pelo povo como um homem de bom coração e de boa conversa.
Jorge Amado considerou-o acima dos prémios, inclusive do Nobel, para que é proposto em 1960. Sem êxito, possivelmente por interferências do poder de então. Voltou a ser considerado uns anos mais tarde, não lhe tendo sido atribuído, como se sabe.
Não pretendendo mostrá-lo, os amigos entrevêem o seu desgosto.
Avesso a galardões, recusa em 1954 o prémio "Almeida Garrett".
São-lhe entretanto atribuídos vários outros. Em 1976 o "Prémio Internacional de Poesia" de Knokke-Heist e, alguns anos mais tarde, o "Prémio Montaigne", da Fundação Alemã F.V.S. Dos nacionais, entre outros, recebe em 1989 o "Prémio Camões", o "Prémio Personalidade do Ano" (1991) e, no ano seguinte, o prémio "Vida Literária" da Associação Portuguesa de Escritores, na sua primeira atribuição. Havia já recebido em 1969 o prémio literário "Diário de Notícias" e, em 1980, ex-aecquo com Carlos Drummond de Andrade, o "Prémio Morgado de Mateus". A capacidade criadora de Miguel Torga manter-se-á até próximo da morte, que irá ocorrer em 1995.
O homem é, por desgraça, uma solidão: "Nascemos sós, vivemos sós e morremos sós."
Partiu há 15 anos. Deixou-nos este chão repleto de palavras que lemos e relemos.. Porquê? Porque também somos torga, urze, raiz que ainda depois de queimada dá alento pelo carvão que produz. Se não somos, ele, Miguel Torga, a urze, o mosto, a casta nobilíssima de uvas que se transformam em vinho, ensina-nos a sê-lo, a sua obra uma leitura premente e necessária para todos os que procuram uma consciência pura, a esperança, a teimosia em romper caminho.
As suas palavras são vigorosas, lúcidas, plenas de sentimento telúrico, o amor à terra que lhe avassala a alma:
“Sempre que, prestes a sucumbir ao mórbido do desalento, toco estas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva. Sei, contudo, que o prodígio não aconteceria sem a força amorosa do meu apelo, que as virtudes terapêuticas da fonte estão também na certeza da sede de quem bebe. (…) E quando chegar o dia em que a debilidade do ânimo seja tanta que já não consiga sequer confiar no valor do condão? Finos, os antigos, entenderam logo de entrada que o fabuloso não é mais do que a realidade aureolada. Que basta um homem ficar com a vontade tolhida para que Héracles – um dos muitos disfarces da morte – o vença irremediavelmente.” (Diário XI, 1943).
O poeta transmontano deixou-nos no dia 17 de Janeiro de 1995.
A morte
E o poeta morreu.
A sombra do cipreste pôde enfim
Abraçar o cipreste.
O torrão
Caiu desfeito ao chão
Da aventura celeste.
Nenhum tormento mais, nenhuma imagem
(No caixão, ninguém pode
Fantasiar).
Pronto para a viagem
De acabar.
Só no ouvido dos versos,
Onde a seiva não corre,
Uma rima perdura
A dizer com brandura
Que um Poeta não morre.
(Miguel Torga)
Ana Flor do Lácio (19/12/2010)