O Fantástico em Entre Santos

HORA,Jeane Caldas1

Resumo: O presente artigo tem como proposição analisar os aspectos fantásticos do conto Entre Santos, de Machado de Assis, publicado originalmente na Gazeta de Notícias, em 1886, na cidade do Rio de Janeiro. A perspectiva do fantástico será ancorada através das produções de dois mestres que se dedicaram ao estudo desse gênero tão envolvente, e que requer de qualquer profissional ou apreciador da arte literária o debruçar sobre várias leituras, uma vez que estudo do fantástico é uma temática que não se esgota em si mesma. Assim, faz-se necessário buscar em Todorov (1968) e Kafka (1915) a fundamentação básica para sedimentar nossos estudos.

Palavras-chave: Machado de Assis; fantástico; realístico.

02

Introdução

A análise sobre qualquer obra machadiana é sempre um desafio para aquele que se propõe realizá-la. Desafio ainda maior é permear as entrelinhas do fantástico no conto, Entre Santos, visto que o texto em discussão não foi classificado pelo próprio Machado nem por críticos como um conto fantástico. Acreditamos que o Bruxo do Cosme Velho ao fazer isso intencionou divertir-se com as excitações, indagações e curiosidades das diversas gerações leitoras. Pois nos últimos anos, o referido conto tem despertado o interesse de muitos estudantes e pesquisadores da área da Literatura, essencialmente, dos machadianos.

Machado de Assis escreveu em média duzentos contos que ao longo do tempo espalharam-se por inúmeros jornais do Brasil e grande número deles não chegaram a ser publicados. Ao produzir esse acervo literário, Machado exercitou muitas variações que apresentam tanto características moralizantes como fantásticas. No entanto, ele não se deixou prender por categorias fixas. Sua literatura é profundamente marcada pela força do efeito estético associada a uma criação singular, alicerçada por aspectos críticos, humorísticos, psicológicos, realísticos, oníricos e muitas vezes delirantes, dentre outros bastante significativos.

Estudos sobre a vida e a obra de Machado revelam-nos que suas fontes literárias foram várias e distintas. Ao pesquisá-lo, percebemos que ao longo de sua trajetória profissional, ele dialoga com toda a tradição ocidental, sendo

__________________________

1Possui graduação em Letras Português/Inglês – FFPP (1996), pós-graduação em Didática do Ensino Superior - Faculdade Pio Décimo (1999) e é pós-graduanda em Literaturas Brasileira e Portuguesa - Faculdade Pio Décimo. É escritora de literatura infantojuvenil, contribui com publicações de memórias, artigos e resenhas no Caderno de Cultura do Jornal Cinform/SE e no portal literário Recanto das Letras. Atualmente coordena o Projeto Descobrindo Autores Sergipanos, na Secretaria de Estado da Educação - SE e é membro do Comitê Sergipano de Leitura. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Infantojuvenil, Literatura Infantojuvenil Sergipana e Leitura e Produção de Textos. jealdas@yahoo.com.br

03

leitor ávido dos moralistas e satiristas do século XVIII. Nesse prisma, ele comunga das idéias de Vauvenargues e La Rochefoucauld a Voltair, Diderot e outros pensadores influentes daquela época. Ele recorre também, a grandes autores franceses do século XIX como: Stendal e Xavier Maistre. Foi também, leitor assíduo do português, Almeida Garrett. Além de ler outros textos clássicos que inspiraram tantos outros escritores de renomes. Textos bíblicos, textos de Dante Alighieri, Shaskespeare e o famoso Diálogo dos Mortos, do grego, Luciano Samosata serviram-lhe tanto de prazer literário como fonte de inspiração. Sem contar com leituras de Ernest Theodor Amadeus Hoffmann, Edgar Allan Poe e Théophile Gautier, os quais eram usados como referências em suas pesquisas e discursos, e consequentemente o influenciaram através de suas literaturas fantásticas.

Ao exercitar o fantástico em seus contos e outros escritos, ele trabalha a favor e contra o próprio padrão estético-ficcional que durante o século XIX é o campo propulsor que alimenta a reflexão sobre os comportamentos e anseios mais intrínsecos do ser humano, ou seja, é o momento de reflexão sobre os limites entre a razão e a loucura; a ciência e a imaginação, como também é o momento de observação e análise dos fenômenos do mundo real, da mente humana, arroubos, fantasias e devaneios românticos.

Nesse contexto, Machado paulatinamente vai construindo uma nova proposta literária movida de autenticidade, e baseada nos comportamentos humanos de um modo geral; incluindo também, no bojo de suas observações, o supersticioso e o fantástico, para ironizar os comportamentos de uma sociedade hipócrita.

Conceituando o Fantástico

Conceituar o fantástico e definir seus limites é também outro desafio enorme, mas fundamentado nos estudos do linguista, filósofo e historiador búlgaro Tzvetan Todorov, sucintamente podemos dizer que o fantástico é semelhante a um pêndulo que oscila entre o acontecido e o não acontecido,

04

entre o explicável e o inexplicável. É tudo aquilo que é inserido em universos considerados estranhos: estados alterados de consciência, visões, sonhos, fenômenos extra-sensoriais, seres fantásticos e outros.

2(...) relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leisda razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornaram familiar. (...) O estranho não é um gênero bem delimitado (...); mais precisamente, só é limitado por um lado, o do fantástico; pelo outro, dissolve-se no campo geral da literatura (os romances de Dostoievski, por exemplo, podem ser colocados na categoria do estranho). (Todorov, 1975).

Seguindo a linha de raciocínio todoroviana, conceberíamos o gênero maravilhoso como o sobrenatural aceito e o gênero estranho como o sobrenatural explicado. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. Na literatura fantástica, os “será...?” ou e “se...?” que vão surgindo na mente do leitor são chamados de hesitação e ambiguidade. “Há textos que mantêm a ambiguidade até o fim, o que quer dizer também: além. Fechando o livro, a ambiguidade permanecerá”. (Todorov, 1979)

Entretanto, durante o século XX, esse gênero tem seu conceito redirecionado. Ele deixa de ser um fenômeno extraordinário que denota as reações de conflitos entre natural-sobrenatural.

Desse modo, a própria realidade passa a ser o espaço natural do 3nonsense, como ocorre na Metamorfose de Kafka (1915), como observa o próprio Todorov. Com Kafka, um dos maiores escritores de ficção alemã do século XX, esse gênero sofre algumas considerações significativas: o acontecimento sobrenatural não consegue provocar mais hesitações, pois o mundo descrito é altamente bizarro, tão anormal quanto o próprio acontecimento que lhe serve de fundo. Kafka trata o irracional como se fizesse parte do jogo. As personagens kafkanianas sofrem de conflitos existenciais como o homem contemporâneo, e seus contos e novelas têm como temáticas básicas: a solidão como fuga, a paranóia e os delírios.

05

Com a evolução científica, especialmente, com o surgimento da Psicanálise, a literatura fantástica nos moldes tradicionais, aos poucos vai se tornando absoleta, pois o sobrenatural vai perdendo espaço para as explicações científicas. Não há mais necessidade do homem recorrer ao diabo ou outras forças sobrenaturais para falar sobre um desejo sexual excessivo.Como também, não há necessidade de fazer uso da denominação “vampiros”, para mostrar o desejo e atração de seres humanos por cadáveres. O escritor contemporâneo não necessita mais usar roupagens fantásticas, uma vez que a Psicanálise e a própria Literatura são retomadas pelas investigações psicológicas do século XX.

Nesse sentido, vai surgindo o fantástico moderno. Machado de Assis inicia sua literatura fantástica representada por suas narrativas curtas tradicionais, no entanto vai experimentando uma nova forma de pensar, de escrever e de representar esse gênero, indo além do seu tempo. Nesse foco, ele vai desenvolvendo uma literatura fantástica moderna. O romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e o conto Sem Olhos (1876) são os melhores exemplos do fantástico realístico, literaturas que propagam um novo estilo machadiano, menos romântico e mais realista.

Entre Santos - Aspectos Fantásticos

Entre Santos está inserido no quinto livro de contos de Machado de Assis, denominado de Várias Histórias. Sendo que, Várias Histórias é o terceiro livro publicado em 1896. Nessa obra, o autor reuniu dezesseis dos seus

_________________________________

2TODOROV, apud LULA, Darlan. Dissertação de Mestrado: Machado de Assis. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2006, p. 02

3Expressão inglesa que denota algo disparatado, sem nexo. A expressão é utilizada para denotar um estilo característico de humor perturbado e sem sentido. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nonsense

06

melhores contos, publicados no Jornal Carioca, Gazetas de Notícias, entre 1842 e 1891.

O conto em pauta trata de uma narrativa dentro de outra narrativa. Esta estratégia literária usada por Machado, uma trama dentro da outra trama, lembra-nos os contos encontrados na coletânea de contos clássicos orientais, As Mil e Uma Noites.

Em Várias Histórias, ele consegue externar características e influências que já havia desenvolvido em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Papéis Avulsos (1882): a inconsistência dos desejos humanos face às possibilidades do real, do humor e do sarcasmo que impedem que as personagens transcendam em seu cotidiano, assim como a escrita em forma de parábola, objetivando o questionamento da existência humana.

O conto em análise tem o narrador em primeira pessoa e narra à experiência de um capelão que ouviu em sua capela a conversa de alguns santos, os quais assumiram forma humana. Dentre os santos que faziam parte desse contexto extraordinário, estavam São Francisco de Paula, São João Batista e São Francisco de Sales. A conversa animadora girava em torno de observações e analogias sobre os fiéis, quando estes faziam uso do confessionário. 4“Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (...) tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens”. (Assis, Machado de, p.23)

Dessa forma, numa conversação de imensa ironia, São Francisco de Sales relatou o caso de um senhor que estava prestes a perder sua esposa

_________________________________

4 ASSIS, Machado de. Várias Histórias. São Paulo: Escala Educacional. 2008, p. 23.

07

que fora acometida de erisipela, no entanto a avareza do nobre senhor era tão imensa, que não lhe deixava prometer mais do que uma enorme quantidade de rezas. No momento de suas preces, a garra da avareza não lhe deixava concluir a promessa (uma perna de cera), pois o valor que a perna iria lhe custar interferia fortemente na concretude da promessa.

No conto em destaque, Machado através de uma trama bem conduzida e auxiliada por personagens singulares consegue presentear os leitores com um realismo fantástico sutil, surpreendente e totalmente inusitado. Essa inferência é retratada nas cenas descritas, em que o capelão ouve vozes estranhas; estátuas ganham formas humanas e começam a ridicularizarem as atitudes de seus confessores, além de questionarem sobre sentimentos e comportamentos ínfimos como avareza e luxúria, dentre outros preservados pela natureza humana.

No primeiro parágrafo do conto, o narrador já evidencia características do gênero fantástico, quando menciona: “Quando eu era capelão de São Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária”. Ao analisarmos o vocábulo “extraordinário” mencionado pela personagem, o capelão, compreendemos que a palavra em análise deriva do latim extraoordinariu e designa não ordinário; algo fora do comum; ou seja, a palavra conceitua excepcionalidade de acontecimentos.

Dando continuidade à busca de achados fantásticos em Entre Santos, também, no segundo parágrafo há impressões de hesitações que atingem o leitor, o qual vai sendo envolvido como o capelão-narrador, pela atmosfera de mistério e estranheza expressada por ele sobre a presença de uma luz inexplicável. O clima de apreensão e tensão vivido pela personagem já é claramente perceptível, no trecho extraído do referido conto que segue abaixo:

5 (...) Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura de ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria das velas ou lanternas das pessoas que estivesse roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tendo ido

08

passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei. (Assis, Machado de, p.23).

Mais adiante, no quarto parágrafo, percebemos nitidamente que as tensões e hesitações são intensificadas, através das confissões realizadas pelo protagonista, quando o mesmo exprime medo das pessoas que já morreram, tanto em seu relato, como em suas atitudes de benzer-se repetidas vezes, conforme a descrição a seguir:

6 (...) Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalhavam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. (...) No meio disto, assaltou-me uma ideia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. (...) Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa extraordinária. (Assis, Machado de, p. 23).

O mais surpreendente sobrevém no final do conto, a matriz do fantástico do século XIX retorna trazendo de volta a inclinação do estranho pela explicação do racional que a personagem dá ao acontecimento extraordinário vivido por ele alguns momentos antes. Isso é perfeitamente observável, quando ele diz: 7“Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim já era dia claro... Corri a abri todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos meus sonhos”. (p. 28)

_________________________________

5 ASSIS, Machado de, 2008, op. cit, loc. cit.

6 Idem.

7Ibidem, p.28.

09

Conclusão

A escolha por uma obra machadiana por si suscita um estudo minucioso em suas entrelinhas, um ler e reler incansável, um descobrir e redescobrir sem dimensão, um questionar e requestionar interminável. Enfim, um saborear duvidoso e infinito entre a compreensão do que é explicitado nas páginas de suas obras e a interpretação individual do que ficou implícito em cada linha escrita. Nesse aspecto, o que ora foi analisado não passa de um breve ensaio diante da inesgotável fonte de mistérios, incertezas e indagações que o conto nos sugere.

Em síntese, o conto Entre Santos, de Machado de Assis apresenta em seu âmago uma estratégia de criação estética, em que ressalta uma ambientação fantástica com o intuito de edificar sobre essa base outra construção e efeito sem abrir mão do contexto fantástico, passando a reconstruí-lo por outro viés. Assim, o bruxo do Cosme Velho vai investindo no efeito da presença simultânea de dois eixos básicos: o fantástico e o realístico, sem que um dos eixos sofra qualquer anulação. Ao contrário, o sábio autor do nosso conto fortalece-se literariamente ao usar a ambivalência e a perspectiva entre as duas matrizes, a dedutivista e a hipotética.

Referências

ASSIS, Machado de. Várias Histórias. São Paulo: Escala Educacional, 2008.

FERNANDES, Marcelo J. Machado de Assis Quase Macabro. Poiésis-Literatura, Pensamento e Arte, n 85, abril de 2003. Disponível http://www.novasaquarema.com.br/poesis/85/machado-de-assis.htm

FERREIRA, Letícia. Literatura Fantástica. O Parafuso a mais de Henrry James. Revista Literatura: conhecimento prático, n 30. São Paulo: Escala Educacional, 2010

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

LULA, Darlan. O Lugar do Fantástico em Machado de Assis. Disponível em WWW. Idelberavelar.com/abralic/txt-33.pdf

WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Nosense. Ptwikipedia.org/wiki/Nonsense-4k

Acesso: 12 de junho de 2010.

WIKIPEDIA, a enciclopedia livre. Franz Kafka. PT.wikipedia.org/wiki/Franz-kafka-13k

Acesso: 12 de julho de 2010.

OLIVEIRA, Rosa Duarte de. Entre Santos de Machado de Assis. Revista Cultural Crítica, 05, contos, 1 semestre de 2007. Disponível em WWW.apropucsp.org.br/apropuc/index.php/revista-cultura-critica/29-edicao-n5/90-entre-santos-de-machado-de-assis-um-conto-fantastico-39k

Acesso: 10 de junho de 2010.

POE e Machado de Assis: Diário da Loucura. http://universofantastico.wordpress.com/2009/03/08poe-e-machado-de-assis-diario-da-louc...

Acesso: 02 de junho de 2010.

G Aguiar
Enviado por G Aguiar em 15/11/2010
Reeditado em 16/11/2010
Código do texto: T2617123
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.