... recorte de "A PONTE DO PRECIPÍCIO" - segundo volume
Em Fortaleza
A vida de Gilson estava monótona. Só e saudoso da família, numa cidade grande, tornava-a mais difícil ainda. Mas seriam só mais alguns meses. Os pais voltariam da viagem dos seus sonhos e ele mataria a saudade deles. Iria para o sul no fim do ano para matar, também, a saudade dos irmãos.
Dentro do peito havia um quartinho reservado no qual, adormecida em plácido sono, achava-se repousando o nome de Miriam. Às vezes passavam dias sem que dela se lembrasse mas, bastou que a melancolia da saudade da família minasse-lhe as resistências, de pronto viu na lista da saudade surgir, em letras garrafais, o nome dela. Nunca a esquecera. Fora por assim dizer, arrancado dos seus braços por circunstâncias adversas à sua vontade e esse fato e por causa dele, talvez, guardava, ainda, no coração e na mente, intactas a sua imagem, sua graça e meiguice. Agora tudo fazia lembrar seu nome. Estava em casa. Não tinha fotos dela para olhar aquela carinha sorridente, esbanjando meiguras. Mas no seu coração estava tatuado seu nome e seu semblante.
Entardecia. Logo viria o crepúsculo, após esse maravilhoso pôr-do-sol, que, por instantes/momentos, fez Gilson esquecer sua eterna melancolia. Lera algumas páginas de um livro, mas sem sentir gosto pelo valor literário do texto. Fazia muito calor. Foi à geladeira, encheu um copo com água e sentou-se para saborear aquele líquido hidratante. Deixou o copo sobre a mesa e dirigiu-se para a porta do apartamento e saiu. Caminhando ao léu pela calçada do prédio, resolveu entrar num restaurante nas imediações para conversar com alguns amigos que sabia estarem lá bebericando um chope. Mas nada o satisfazia. Não achou o verdadeiro Gilson, alegre e extrovertido. Seus pensamentos/sentimentos e as próprias batidas do coração, estavam longe. Ritmavam em compassos das praias do Rio de Janeiro. Emolduravam a lembrança de quem foi seu primeiro amor. Onde andaria ela agora? Estaria levando aquela vidinha de trabalhos, estudos, festas nos finais de semana, reuniões com seus companheiros do bar do seu Manoel? Estaria, também, pensando nele ainda? Ou arranjara um novo amor? Eram pensamentos silenciosos que perpassavam sua mente e o deixavam ainda mais triste.
Saciou a sede com um copo de chope e saiu. A noite morna convidava-o a caminhar. Nem ouviu os risinhos e alegres falas femininas na calçada quando em meio delas passava; nem sentiu o impacto da algazarra da juventude masculina que, com euforia desmedida, procurava chegar às suas festas ou colégios. Simplesmente caminhava. Sua memória cansada de sentir saudade esvaziada, parece que silenciara. Ao seu redor tudo era alegria/suor/correria e vai-e-vem de sandálias. Sapatos de salto ritmavam carregados de luxo, fazendo o toc/toc rítmico que dança as baladas da noite. O crisma que untava as luzes da noite urbana, exalava odores de restaurante. Molhos e carnes e peixes e sabores misturados faziam a festa noturna da culinária fortalesiana. Andou calado, calcando calçadas debaixo dos pés. Os pés no morno da noite urbana, levaram centenas de minutos para produzir-lhe fome. Seguiu adiante sugando o aroma que seduziu suas narinas, evolando em ondas da casa de pasto. Escolheu uma mesa discreta, passou o dedo sobre o cardápio e pediu. Tomou mais três chopes gelados enquanto esperava sua refeição. Mais outros dois tiveram o mesmo destino enquanto jantava sozinho. Ninguém o notou e assim incógnito, também, após o repasto, saiu do restaurante.
Ganhou a calçada, pediu um táxi e deu o endereço. Estava novamente em frente ao mesmo salão onde dançara e farreara já por inúmeras vezes. Ganhou a portaria e seguiu o corredor para chegar à sala dos fundos. Fez com os nós dos dedos o sinal convencional e entrou. Consumiu o pó, que não era da terra, que vinha do vegetal/tóxico/químico/alucinante e foi dançar e beber.