CINEMA E LIVROS...

Trazida por uma editora que tem publicado em Portugal a sua obra, chegou à Madeira a romancista luso-francesa Joanne Michèle Sylvie Harris, para a apresentação de «O Rapaz de Olhos Azuis». Não sendo uma escritora unânime, há algo na sua escrita que surpreende e encanta. Os seus romances são pouco ortodoxos, livres de regras e pudores. Falam de amor, do fantástico e de factos históricos mas não são necessariamente românticos, nem fantasiosos e tão pouco procuram dar lições de história. A dificuldade em classificar os livros de Joanne está na originalidade das suas histórias e na genialidade da sua escrita. Produto do bilinguismo herdado e de culturas diversas, começou por sentir-se deslocada, refugiando-se na leitura, que povoou o seu imaginário de amigos construídos pelo sonho. Também passou grande parte da sua adolescência a escrever, sempre à procura de um estilo próprio: conseguiu inegavelmente os seus intentos, os que transformam a criação em obra de arte. Começou com «The Evil Seed» mas seria precisa uma década para o sucesso, surgido verdadeiramente graças à adaptação de «Chocolate» ao cinema. Actualmente, os seus livros já venderam mais de 4 milhões de exemplares só Reino Unido e estão traduzidos em mais de 40 países. «Vadiar, espreguiçar-se, pavonear-se, tocar mal música, chatear padres e subverter silenciosamente o sistema, apesar de gostar também da ofuscação, sordidez, rebelião, bruxaria, assalto à mão armada, chá e biscoitos» são, segundo ela própria, os seus passatempos favoritos.

Como alguém disse, «os livros de Joanne Harris são como o chocolate negro – doces e intensos». Precisamente em «Chocolate», Vianne é a mãe solteira que chega a uma pequena aldeia, com a sua filha, e ali abre uma chocolataria. A oposição entre Vianne e o padre Reynaud cria uma grande tensão dramática: «Todos nós somos divididos interiormente», diz Joanne. « O Padre Reynaud é uma espécie de anoréctico. É repressivo, a sua severidade para com os outros baseia-se no facto de se odiar profundamente». E é contra isso que «Chocolate» se insurge, defendendo os pequenos prazeres da vida, neste caso os gastronómicos, e o direito à diferença, numa pequena aldeia, fechada ao que vem de fora.

Já na colectânea «Danças e Contradanças» são 22 os contos, caracterizados pela condensação das intrigas e pelo carácter surpreendente dos temas escolhidos, muitas vezes ligados ao insólito, «a par de narrativas que tratam das questões ligadas aos afectos e à necessidade de felicidade da personalidade humana».

Em «A Praia Roubada», a sua linguagem exuberantemente sensorial transporta-nos de imediato para a praia, e quase sentimos a areia debaixo dos pés e o gosto salgado do ar: «As ilhas são diferentes. E quanto mais pequena for a ilha, mais isto é verdadeiro. Reparem na Grã-Bretanha. É quase inconcebível que uma faixa de terra tão estreita contenha tamanha diversidade: o jogo de críquete, chá com natas, Shakespeare, Sheffield, peixe e batatas fritas avinagrados em folhas de jornal, o Soho, Oxford e Cambridge, a praia de Southend, esperguiçadeiras listradas em Green Park, os Beatles e os Rolling Stones, Oxford Street, as indolentes tardes de domingo. Tantas contradições. E todas elas marchando juntas como manifestantes embriagados que ainda não perceberam que a principal causa de protesto são eles próprios. As ilhas são pioneiros, grupos dissidentes, descontentes, peixes fora de água, isolacionistas naturais. Como já disse, diferentes».

Quanto a «O Rapaz de Olhos Azuis», sei apenas que «ele a conhece há uma eternidade e, contudo, ela nunca o viu». Mas ele vê-a a ela e, até então, nunca se apaixonara. Assusta-o a maneira como tudo se conspira para que ela nunca lhe saia da cabeça...

Importa ler o livro antes que surja um novo filme. Recordo: esta escritora só foi devidamente descoberta, amada, odiada e «lida» depois da adaptação do seu romance «Chocolate» ao cinema!

ANTÓNIO CASTRO

(IN REVISTA «SABER»

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(António Manuel Antunes de Castro)
Enviado por (António Manuel Antunes de Castro) em 05/11/2010
Código do texto: T2597723
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