Lygia Fagundes Telles: Características e Estilos em Ciranda de Pedra

Lygia Fagundes Telles é uma escritora de linhagem humanista, em sua infância, livre de "pés descalços" mergulham as raízes do seu fascínio e compaixão pelo lado oculto, submerso, dramático ou trágico dos seres humanos, matéria-prima da escrita. Além de escritora, contista e romancista consagrada, Lygia ocupa a profissão de advogada. Sua obra versa sobre as experiências humanas, sobretudo as experiências interiores.

Lygia possui características do período conhecido como Pós-45, pois ela escreve investigando os recantos da alma humana, em sondagem psicológica permanente, seus personagens em particular os femininos, são misteriosos e complexos, marcados pela reflexão e pela fragilidade, já seus personagens masculinos são, geralmente, representantes simbólicos de funções sociais ou de poder, riqueza e status, não possuindo contornos marcantes como as femininas, bem como, pela inquietação e procura apresentar com a palavra escrita a realidade envolta na sedução do imaginário e da fantasia, alguns estudiosos defendem que sua obra pertence à esta geração cuja atitude estética foi a de reagir contra o clima da primeira fase modernista.

O caráter ficcional de sua obra sintoniza com o existencialismo - vertente cultural da época - além de correntes literárias como o expressionismo e o surrealismo. A escritora, porém, sempre acompanhou as mudanças existenciais, políticas e sociais que ocorreram ao longo de sua carreira.

Em suas obras Lygia usa um estilo coloquial, conciso, luminoso, que se abre, depois, a uma estrutura narrativa mais dialogante, interrompida por monólogos interiores. A ironia, a subtileza, a delicadeza são o nervo vital de uma discursividade pontuada também pelo gosto da aventura, pelo desconhecido, quem sabe se preso a um seu antepassado português, Capitão João Álvares Fagundes, que, no séc. XVI, esteve ligado à descoberta da Terra Nova.

É através da solidão – drama particular da maioria de seus personagens – que ela nos apresenta, através da análise dos sentimentos e das percepções de suas personagens, o conflito entre o mundo objetivo e o subjetivo, o real e o ideal. A autora utiliza monólogos interiores – recurso estilístico para literário, também chamado fluxo de consciência - como fonte de conhecimento das personagens.

A densidade das temáticas de Lygia Fagundes Telles contrapõe-se, no entanto, a leveza do seu estilo, marca dominante de uma escrita de sugestões, de claridades obscuras. Criadora de ambiências, a autora é hábil ao deixar escapar, nos interstícios da narrativa, o pior do ser humano, ou o melhor, na lenta transformação dos seres e das coisas em algo de enigmático. O desenrolar das tramas é estruturado em detalhes calculados, deixando em cada gesto marcas de uma personalidade ou de uma situação.

A configuração física do ambiente nos enredos é secundária, o foco é a posição interna assumida pelas personagens diante dos episódios. Lygia sintetiza a problemática da petrificação das relações humanas, abordando a incomunicabilidade, o adultério e a impotência. Lygia é uma dissecadora de mistérios e desencontros, da cintilação na ruína (Disponível em: www.acervos.ims.uol.com.br).

Para esta análise, o romance escolhido foi Ciranda de pedra, seu primeiro romance. Publicado em 1955, o romance enfoca o triângulo das personagens femininas, protagonista e suas três irmãs que não se comunicam, se repetem em outras obras da autora, onde o centro das atenções é a tensão familiar. Dentro da obra, as possibilidades da língua são altamente exploradas. A palavra ciranda é um símbolo forte no texto e representa simbolicamente o mundo interior da personagem e encerra o núcleo do tema: o sentimento de rejeição. Formada de anões de cimento, sem vida e sempre na mesma forma, sem modificações e passando a mesma imagem, é comparada a família da protagonista, com valores decadentes.

Será, no entanto, neste romance que as diretrizes da sua obra se definem de uma forma bem mais clara, a partir da figura de Virgínia. O medo, a loucura, a inveja, a maldade e a solidão marcam este livro na consciência da insuficiência da palavra, embora incólume à linha do tempo escrever dir-se-ia um ato interminável e a linguagem algo de descentrado.

O título do livro ilustra perfeitamente as relações conflituosas que envolvem os personagens que compõem a narrativa. Comecemos então a visualizá-lo a partir do seu intrigante título, pois este refere-se a uma roda de anões de pedra que ornamenta o jardim da casa, ciranda da qual Virgínia não pode participar. Os anões são análogos a suas irmãs e os amigos, que se cercam em um grupo sólido, fútil e amoral, ou seja, a morte da família verdadeira e representam uma figura negativa, geneticamente defeituosos, e feitos de pedra, são insensíveis e sem reações diante das ações humanas. A ciranda viva, ou seja, a ciranda de amigos é da mesma forma, negativa na vida de Virgínia. Enquanto os anões verdadeiros a rejeitam, os de pedra a atraem e são seus companheiros. O romance mostra, desde o título, os mundos de Virgínia, onde os vivos são insensíveis e as estátuas sensíveis.

A narrativa está centrada num acontecimento familiar, Virginia, personagem principal, é uma garota solitária, filha de pais separados. Após a separação dos pais, vai morar com sua mãe, que logo adoece. Virgínia passa a morar com os pais e as duas irmãs, num ambiente movimentado e hostil. Devido a doença da mãe e a situação econômica precária da família, Virgínia é levada a deixar a casa onde mora passando então a viver com suas irmãs e com aquele que sempre lhe fora apresentado como pai. A partir desse momento, seus conflitos, medos e ansiedades são intensificados, pois é na nova casa que Virgínia se depara com a solidão e sofre suas piores angústias. Além disso, acontecimentos dramáticos como a morte de sua mãe e o suicídio de seu suposto padrasto - na verdade seu pai - faz surgir em Virgínia um sentimento de culpa, o que aumenta ainda mais seu drama.

Este romance nos remete a concepções tão distintas que podem juntas dar sentido a todo um enredo. No primeiro instante, observamos que o título se refere a uma ciranda de anões de pedra que existe ao redor de uma fonte situada no jardim do casarão onde Virgínia passa a viver. No entanto, durante a leitura vamos compreendendo o quanto este objeto está metaforicamente entrelaçado ao comportamento dos personagens, simbolizando a atitude de um grupo específico que, ao fechar-se diante da presença de outros indivíduos, compõe uma “ciranda”.

Nesse primeiro momento do romance, a presença de Virgínia não é aceita no grupo. Já num segundo momento, Virgínia não só é convidada para fazer parte do grupo como também passa a ser o centro da roda. É ela que pouco a pouco vai desvelando os mais íntimos segredos que cada um carrega e acaba colocando cada qual frente a frente com suas paixões e conflitos. Nesse momento, todos se deixam ver como realmente são.

Ao observar o romance desse ponto de vista, percebemos que o tempo é um elemento essencial. É ele que traz modificações no enredo, pois sua influência permite que os personagens se desloquem em direção a um outro eu, o que define de forma mais coerente a real identidade de cada um. Isso pode ser percebido em todos os personagens, onde cada qual reage e se constitui de forma diferente à mudança do tempo, deixando transbordar aquilo que realmente os constitui como pessoa. Quanto ao espaço, a história se passa num ambiente familiar, fechado, onde os elementos de ordem externa não possuem o poder de afetar diretamente a atitude dos personagens; na verdade, o que os transforma são as ações humanas.

O romance de Lygia proporciona proveitosos momentos de reflexão. Os conflitos que envolvem os personagens nos levam ao encontro de nós mesmos, são sentimentos e sensações inerentes à própria condição humana, independente da época ou da condição social em que cada um se situa. Assim, a história apresenta dois momentos fundamentais: o primeiro, quando a ciranda está fechada e não permite a entrada da protagonista - é a ‘ciranda de pedra’ – e o segundo, quando toda solidez que envolve o grupo é quebrada e ela é convidada a adentrar a roda. Todos lhe oferecem um lugar no círculo.

Para finalizar, o que mais nos chama a atenção no romance é o modo como são abordados aspectos relacionados a esta condição humana; independente de ser homem ou mulher, o ser humano se mostra frágil diante das dificuldades apresentadas pela vida e impotente para lidar e compreender suas próprias sensações. Além disso, o que mais nos deixa fascinados na escrita de Lygia é o poder que ela atribui às palavras a ponto de dar vida, através da descrição, a sentimentos, pensamentos e emoções que envolvem seus personagens, transferindo-os a nós leitores.

Abdul
Enviado por Abdul em 27/10/2010
Reeditado em 29/07/2014
Código do texto: T2580890
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