Sobre As confissões de plomo, do poeta George Pellegrini
Alfredo Bosi (2000, p. 77), ao discutir o surgimento da frase no âmbito do discurso, na obra O ser e o tempo da poesia, afirma categoricamente que “a fantasia e o devaneio são a imaginação movida pelos afetos”. Assim, se articulamos a fantasia com o seu modo de expressão, através de um discurso poético, a frase é sempre o resultado de um processo de significação cuja essência é a predicação e cujo suporte é a corrente dos sons. Nesse sentido é que podemos falar do ritmo enquanto um movimento uniforme de produção sonora. É como ritmo, uma marcha cadenciada, uniforme e harmônica, que a obra As confissões de plomo, do poeta George Pellegrini, se configura. Ao ser dividido, em quatro partes, o texto mantém um equilíbrio entre a matéria e a forma, um equilíbrio entre o simbólico e o “concreto”, entre a vida e o sonho, entre o poético e o real. Nesse sentido, podemos notar que o substantivo feminino “confissão”, enquanto o ato de confessar-se, encontra ligação com o verbo transitivo confessar; declarar ou revelar – declarar pecados. Por outro lado, o substantivo masculino “chumbo” indica para uma substância metálica, cinzenta, muito densa, usada em várias ligas. Estas confissões de plomo poderiam ser facilmente traduzidas por revelações densas de um acontecer poético. O poeta confessa (a si mesmo e ao leitor) a substância da sua criação poética na forma de poemas e imagens.
Desde o início, o leitor é convidado a acompanhar, passo a passo, aquilo que, numa confissão, parece sublime e divino: a revelação (e por isso também o reconhecimento) de pecados “poéticos” frente ao poder divino simbolizado pela ausência do pai. Da mesma forma que Pablo Neruda – que, no início da obra Canto geral, afirma: “Estou aqui para contar a história” –, o poeta George Pellegrini coloca-se diante do confessionário anunciando: “Eis-me aqui...” Com essa expressão, o poeta desnuda-se para o leitor, seu confessor simbólico e possível, sem qualquer preocupação formal. Estas confissões são marcadas por uma harmonia que começa com esse verso inicial e se estende por toda a obra até culminar com a fala final do pai, na forma de conselho: “Meus filhos/ Busquem meu perdido rosto/ Nos velhos álbuns de fotografias/ Nos antigos negativos embaçados/ Guardados por suas famílias./ Procurem meu desconhecido rosto/ Nas paisagens bordadas/ Por suas avós/ Onde sempre constará um girassol/ Uma casa, uma cerca, uma árvore/ Uma montanha, um sol”.
Há aqui um apelo feito pelo pai a cada filho, no sentido de que cada um deva buscar a essência daquilo que o pai é em coisas guardadas. Notamos claramente que essa noção de reminiscência, orientada por um guardar simbólico, ultrapassa o simples “guardar uma coisa qualquer, de qualquer maneira, em um móvel qualquer”, pois “indica uma enorme fraqueza da função de habitar” (BACHELARD, A poética do espaço, 1993, p. 91). Essa unidade que perpassa o texto, por meio de um ritmo quase religioso e “epicamente plebeu”, como aparece em Whitman, por exemplo, obriga o leitor – num bom sentido – a mergulhar num ambiente poético de grande profundidade e beleza. O ritmo é algo tão forte nestas confissões que ele aparece, aqui, na forma de uma harmonia de base temporal.
É pela boca do primogênito, aquele filho gerado antes dos outros, que estas confissões são reveladas. Desse modo, o Eu lírico termina por revelar os contornos de uma aventura poética que fortalece um famoso adágio popular: “o bom filho a casa retorna”. Este filho traz na alma coisas para oferecer, não apenas ao seu pai, mas também ao leitor: presentes simbólicos e iguarias fictícias plenas de imagens e profundidades. “Venho, meu pai/ e trago atravessado ao meu peito/ oito cravos de ferro/ tirados de um deus/ que já não me lembro o nome. [...] Trago as penas dos patos selvagens/ que nadam no rio artificial/ que corta minha cidade ao meio. Trago também/ transpassado na ametista/ do olhar revolucionário/ oito alfinetes de cobre/ cunhados com o rosto/ que a história me fez esquecer”. A presença do número oito nessas duas passagens revela uma necessidade inconsciente e mística de uma união a um grupo ou uma comunidade para não sofrer a dor do isolamento. Os versos “oito cravos de ferro” e “oito alfinetes de cobre” indicam para uma mesma decisão: precisamos nos unir aos outros para completarmos mutuamente a existência através de uma adesão solidária. O número oito será também aquele que determinará o paradoxo do seu sentido, com aquilo que o poeta traz dentro de si: “[...] um amigo louco”. Símbolo das pessoas organizadas e cheias de energia, ambiciosas e empreendedoras, o número oito transforma-se aqui numa simples imagem do jogo de espelho que liga a razão à loucura, por isso mesmo o amigo louco “traz, assim, em sua defesa/ um velho baralho incompleto/ com oito cartas de espada”.
Esse destaque indiscutível do número oito dentro do poema revela alguns aspectos interessantes do Eu lírico: uma visão clara das incertezas e das inconstâncias que compõem a vida; uma revelação do poder da linguagem na sua efetiva materialização na forma de jogo; um correto julgamento nas questões da vida, pois “Traz uma história tão dura/ como o ferro forjado/ vozes de outro sítio/ distante do imaginado/ de um tempo e uma pátria/ tão distante e incerto/ de poemas, noites, guerras/ e deserto”. O número oito é aquele que aponta para a solidão e para a melancolia dos negócios – e o jogo para o louco é sempre um negócio divertido.
Como poema de um só fôlego, este As confissões de plomo revela-se como uma descrição metafórica de um ritual de passagem. A figura do pai ganha um duplo contorno: primeiro, o sentido de gerador, como aquele que deu existência a outro, mas que também é corruptível como o filho – “Toma, pai/ este meu corpo adornado/ por gestos sutis/ que te servirá de estátua/ para velar tua lápide/ feita de pó e vento”; segundo, o sentido de criador ou fundador de uma doutrina, ou de um modo de fazer – “Recordo/ teu antigo sorriso/ com cheiro de caça/ (teus gestos tinham hálito de cobra/ de arma sendo luzida)/ Recordo a brandura da tua fala/ como a voz da noite:/ um murmurar de folhas/ um assovio de faca/ cavando carne inocente”. Difícil não notar aqui uma aproximação entre estas confissões e alguns poemas de Lorca, especialmente o poema Se minhas mãos pudessem desfolhar de 1919: “Eu pronuncio teu nome/ nas noites escuras,/ quando vêm os astros/ beber na lua/ e dormem nas ramagens/ das frondes ocultas;/ E eu me sinto oco/ de paixão e de música./ Louco relógio que canta/ mortas horas antigas”. As imagens comuns aos dois poemas se combinam de forma harmoniosa e bela: se pronunciar um nome e recordar a brandura de uma fala aparecem como reflexos de uma mesma imagem, então o murmurar de folhas e o descanso nas ramagens produzem o mesmo resultado – o desejo permanente de manter o tempo sobre o domínio do agora.
Neste ponto, podemos relacionar estas imagens das confissões de plomo com aquilo que Gaston Barchelard escreveu na obra O direito de sonhar (1994, p. 183), afinal a poesia é uma metafísica instantânea. Um curto poema deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, ao mesmo tempo um ser e objetos. Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida; somente pode ser mais do que a vida, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e dos pesares. Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade.
Dessa passagem de O direito de sonhar, do filósofo francês, retiramos os termos que definem com clareza toda a obra As confissões de plomo: unidade e equilíbrio, alegria e dor, solidão e encontro. O poeta destaca essa dialética simbólica que mantém e alimenta a vida no seu modo de ser contraditório: “Me acostumei a sorver/ o caldo duro e seco/ centro de uma solidão amena/ pois o impagável tempo/ havia enganchado as horas/ nos minutos eternos da esfera”. O Eu lírico leva um velho caderno com os conselhos apontados pelo pai, guardando em si um amigo louco, que traz “[...] uma confissão maculada/ endurecida por falhas/ embrutecida e gelada”.
Estas confissões, auto-confissões de um Eu lírico, se mostram reveladoras para o leitor que termina por ver nelas algo de seu, de próximo, de íntimo: as dores profundas que marcam as despedidas indesejadas, as mortes inesperadas e as horas de solidão que consomem aqueles que, de algum modo, encontram-se exilados longe da pátria e da família. Por isso mesmo, esse amigo louco “Traz cicatrizes ferozes/ enfeitadas com imagens/ de chumbo, pó e estrada/ traz calos, cortes e cartas/ uma jogada incompleta: são oito as cartas de espada”. Muitas são as imagens que aqui podemos destacar para fortalecer a idéia de distância, sofrimento e dor: as “cicatrizes ferozes”, o “pó” e a “estrada”, os “calos” e as “oito cartas de espada”.
O canto desse amigo louco se mostra como um encômio ao ritmo breve e rápido das quadras populares. Neste ponto, o canto plúmbeo ganha força e profundidade. Toda a confissão do louco – pelo ritmo ora compassado, ora quebrado (pois o poeta não se preocupa em manter o rigor formal das rimas alternadas) – faz lembrar um jogo ordenado de cartas cujo fim parece indicar para a prática do blefe como uma estratégia de sobrevivência. Assim, nas palavras do poeta, cabe ao jogador “Jogar com todas as cartas/ Cambiar, se for o caso; Combinar naipe com naipe/ Tornar penoso o trabalho”. Essa combinação de naipes não pode ser algo inocente ou fortuito, mas sim algo elaborado e calculado. Mas o louco adverte que o excesso de reflexão pode ser de algum modo um mal, pois o tempo conspira sempre contra o bom senso, e num jogo de cartas marcadas, o bom mesmo é ser “loucamente” prudente: “Porque, amigo, não tens/ Todo o tempo a pensar/ Perguntas infames vêm/ Ferir teu juízo ao passar/ Não há qualquer privilégio/ Que seja o de meditar/ Obtêm por teu talante/ As respostas do azar”.
A relação entre o jogo, o blefe, o azar e a morte demonstra algo fundamental: o louco não teme os improváveis caminhos do acaso, nem se preocupa com a desdita que a falta de sorte, num jogo de cartas, pode proporcionar. No ímpeto do jogo, no desespero da hora do acerto de contas pelo blefe não encaixado, nenhum jogador está livre da astúcia de quem tem sempre uma carta na manga, por isso mesmo, as confissões do louco são máximas para o destino humano naquilo que ele possui de inevitável e certo: a hora da morte. Nesse sentido, o amigo louco enfatiza o que cabe a todo homem: “Esperar calmo, tranqüilo/ perguntas, idéias, vozes/ esperar como se espreita/ a hora do ímpio golpe”, afinal, “Quem traz o plomo embutido/ na cobertura do corpo/ Não é preciso que diga/ É improvável, está morto”.
Há nesse final das confissões do louco uma nítida ligação entre o plúmbeo e a morte. O poeta, neste ponto do texto, relaciona de forma precisa a cor do chumbo com a cor da morte. A morte tem a cor do chumbo. A morte é também uma metáfora para o fim do canto do amigo louco. Morte, rigidez e acaso se mostram numa harmoniosa presença. O corpo sem brilho e opaco se mostra com o tempo rígido. O morto plúmbeo torna-se mais pesado. Assim, a temática da morte, enfatizada neste ponto da obra, não causa desespero ou angústia, apenas sinaliza, como um simbólico farol, para o destino final da odisséia humana. Aquilo que o amigo louco revela, pela sua forma rápida de marcar o tempo da linguagem, é a força do ritmo poético. Num “poema clássico, o ritmo tende a demarcar, no interior de uma língua geral, uma área particular de regularidades” (BOSI, 2000, p. 85), mas nestas confissões de plomo, o ritmo rompe com aquilo que, enquanto andamento da fala submetida a leis de polaridade estrita, costumeiramente se conhece por verso metrificado. Essa passagem da obra, por si só, já valeria uma leitura, uma escuta, uma audição em bom tom daquilo que estas confissões de plomo possuem de musical e harmônico, expressivo e profundo, afinal, a correta entoação desses versos desvela os movimentos da alma que estão trabalhando a frase à procura de palavras.
Na terceira parte, “tons vivos sobre natureza morta”, a idéia de uma contingência marcada pela busca ganha destaque por sua força lírica. Outra vez a imagem do pai retorna ao centro do poema. Mas há também certa melancolia nesta passagem da obra, uma melancolia cinza, plúmbea e mágica, que prepara o leitor para o encontro com o pai idealizado que cada humano sonha encontrar um dia para poder descansar a cabeça sobre o colo de pluma, algodão e silêncio.
O Eu lírico confessa a sua certeza: “Sabíamos, Pai/ Desde que vosso cansaço de corpo/ Mudou a paisagem dos músculos titânicos/ Desde o tempo em que os feristes de azul/ Desde o tempo em que decidistes criar cavalos de luz/ Sabíamos/ Jamais poderias gerar o exército de querubins”. Apesar dessa limitação do pai, há uma esperança no seu retorno como o retorno de uma boa nova, o retorno de um amigo querido que anuncie a sua chegada, mesmo sem garantir o dia e a hora de chegada, sem trazer os esperados presentes de luz. Desse modo, podemos dizer: “Venhais caçar conosco mariposas noturnas/ Venhais nu, correr as florestas, pântanos e prados/ Venhais devolver-nos a infância, as vozes diurnas”. Nestes versos, o mundo humano não parece mais tão hostil depois daquilo que o poeta identifica no homem, a presença de uma esperança fundada na valentia e no mistério. As confissões de plomo encerram com uma “paisagem amorfa sobre superfície plana”, subtítulo que protege o nome do pai. Esta parte final do poema chama atenção por cinco palavras que servem de guia para aquilo que se busca numa confissão: a declaração dos pecados do confessor. Palavras tais como desculpa, verdade, castigo, discurso e conselho demarcam o sentido dessas confissões de chumbo.
No corpo do texto, essas palavras aparecem acompanhadas dos seus respectivos artigos:
a desculpa – “Por todo esse caminho de ódio/ Por todo esse chão de abandono/ Creiam-me, meus filhos/ Havia uma intenção maior/ De acudir o mundo” – aponta para um pedido de absolvição, ou para um perdão que atenue a culpa trazida no peito;
a verdade – “E quando todos diziam/ Em inoportuna voz/ Dos possíveis erros cometidos/ Eu lhes ofertava a parede/ com a paisagem a óleo/ De brincadeira ao ar livre”/ Eu lhes manchava de amarelo:/ Um único ponto na superfície negra/ Para que explodissem em luz” – revela o penhor de sinceridade que toda confissão deve conter: a adequação entre a razão da confissão e a esperança de uma reconciliação com o divino;
o castigo – “Vieram sobre mim/ As pedras de Madalena/ O golpe na única face/ O cuspe ácido das estrelas/ A corda cheia de cortes/ Vieram sobre mim/ A culpa pela insônia/ por dias de pesadelo/ pela agonia da noite/ pelas lágrimas de Éster” – é essa repreensão pelas faltas cometidas, essa punição justa e necessária para a re-ordenação daquilo que funda a relação entre o livre-arbítrio e a vontade de Deus;
o discurso – “Há que perder a coerência/ Todas as idéias vis/ Todo discurso alienado/ Todas as manifestações/ Em prol da paz e da ordem/ De um tempo deserdado” – é esse arrazoado final, em nada metódico, que demarca outra vez a diferença entre uma prece, um poema e uma súplica, que culmina com algo necessário;
o conselho – “Busquem meus submergidos rostos/ Nas ações revolucionárias das crianças/ Quando saltam as pedras/ Quando inventam rios/ Quando constroem cidades imaginárias e fantásticas/ Quando conseguem enumerar as estrelas” – como uma advertência final (um aviso simbólico) ao leitor desavisado e desconhecedor da diferença entre o divino e o profano; de certo modo este conselho sintetiza uma lei conhecida de todos desde a antiguidade: sem o divino, o homem não é nada. Ao apreender o divino na sua pureza e grandiosidade, o poeta sugere ao homem olhar o mundo com os olhos da criança, reinventando valores, sem transformá-los em grilhões de uma realidade insuportável e fútil. Os versos finais dessas confissões apontam para aquilo que, na nossa liberdade, garante o nosso pleno direito de sonhar.
Alfredo Bosi (2000, p. 77), ao discutir o surgimento da frase no âmbito do discurso, na obra O ser e o tempo da poesia, afirma categoricamente que “a fantasia e o devaneio são a imaginação movida pelos afetos”. Assim, se articulamos a fantasia com o seu modo de expressão, através de um discurso poético, a frase é sempre o resultado de um processo de significação cuja essência é a predicação e cujo suporte é a corrente dos sons. Nesse sentido é que podemos falar do ritmo enquanto um movimento uniforme de produção sonora. É como ritmo, uma marcha cadenciada, uniforme e harmônica, que a obra As confissões de plomo, do poeta George Pellegrini, se configura. Ao ser dividido, em quatro partes, o texto mantém um equilíbrio entre a matéria e a forma, um equilíbrio entre o simbólico e o “concreto”, entre a vida e o sonho, entre o poético e o real. Nesse sentido, podemos notar que o substantivo feminino “confissão”, enquanto o ato de confessar-se, encontra ligação com o verbo transitivo confessar; declarar ou revelar – declarar pecados. Por outro lado, o substantivo masculino “chumbo” indica para uma substância metálica, cinzenta, muito densa, usada em várias ligas. Estas confissões de plomo poderiam ser facilmente traduzidas por revelações densas de um acontecer poético. O poeta confessa (a si mesmo e ao leitor) a substância da sua criação poética na forma de poemas e imagens.
Desde o início, o leitor é convidado a acompanhar, passo a passo, aquilo que, numa confissão, parece sublime e divino: a revelação (e por isso também o reconhecimento) de pecados “poéticos” frente ao poder divino simbolizado pela ausência do pai. Da mesma forma que Pablo Neruda – que, no início da obra Canto geral, afirma: “Estou aqui para contar a história” –, o poeta George Pellegrini coloca-se diante do confessionário anunciando: “Eis-me aqui...” Com essa expressão, o poeta desnuda-se para o leitor, seu confessor simbólico e possível, sem qualquer preocupação formal. Estas confissões são marcadas por uma harmonia que começa com esse verso inicial e se estende por toda a obra até culminar com a fala final do pai, na forma de conselho: “Meus filhos/ Busquem meu perdido rosto/ Nos velhos álbuns de fotografias/ Nos antigos negativos embaçados/ Guardados por suas famílias./ Procurem meu desconhecido rosto/ Nas paisagens bordadas/ Por suas avós/ Onde sempre constará um girassol/ Uma casa, uma cerca, uma árvore/ Uma montanha, um sol”.
Há aqui um apelo feito pelo pai a cada filho, no sentido de que cada um deva buscar a essência daquilo que o pai é em coisas guardadas. Notamos claramente que essa noção de reminiscência, orientada por um guardar simbólico, ultrapassa o simples “guardar uma coisa qualquer, de qualquer maneira, em um móvel qualquer”, pois “indica uma enorme fraqueza da função de habitar” (BACHELARD, A poética do espaço, 1993, p. 91). Essa unidade que perpassa o texto, por meio de um ritmo quase religioso e “epicamente plebeu”, como aparece em Whitman, por exemplo, obriga o leitor – num bom sentido – a mergulhar num ambiente poético de grande profundidade e beleza. O ritmo é algo tão forte nestas confissões que ele aparece, aqui, na forma de uma harmonia de base temporal.
É pela boca do primogênito, aquele filho gerado antes dos outros, que estas confissões são reveladas. Desse modo, o Eu lírico termina por revelar os contornos de uma aventura poética que fortalece um famoso adágio popular: “o bom filho a casa retorna”. Este filho traz na alma coisas para oferecer, não apenas ao seu pai, mas também ao leitor: presentes simbólicos e iguarias fictícias plenas de imagens e profundidades. “Venho, meu pai/ e trago atravessado ao meu peito/ oito cravos de ferro/ tirados de um deus/ que já não me lembro o nome. [...] Trago as penas dos patos selvagens/ que nadam no rio artificial/ que corta minha cidade ao meio. Trago também/ transpassado na ametista/ do olhar revolucionário/ oito alfinetes de cobre/ cunhados com o rosto/ que a história me fez esquecer”. A presença do número oito nessas duas passagens revela uma necessidade inconsciente e mística de uma união a um grupo ou uma comunidade para não sofrer a dor do isolamento. Os versos “oito cravos de ferro” e “oito alfinetes de cobre” indicam para uma mesma decisão: precisamos nos unir aos outros para completarmos mutuamente a existência através de uma adesão solidária. O número oito será também aquele que determinará o paradoxo do seu sentido, com aquilo que o poeta traz dentro de si: “[...] um amigo louco”. Símbolo das pessoas organizadas e cheias de energia, ambiciosas e empreendedoras, o número oito transforma-se aqui numa simples imagem do jogo de espelho que liga a razão à loucura, por isso mesmo o amigo louco “traz, assim, em sua defesa/ um velho baralho incompleto/ com oito cartas de espada”.
Esse destaque indiscutível do número oito dentro do poema revela alguns aspectos interessantes do Eu lírico: uma visão clara das incertezas e das inconstâncias que compõem a vida; uma revelação do poder da linguagem na sua efetiva materialização na forma de jogo; um correto julgamento nas questões da vida, pois “Traz uma história tão dura/ como o ferro forjado/ vozes de outro sítio/ distante do imaginado/ de um tempo e uma pátria/ tão distante e incerto/ de poemas, noites, guerras/ e deserto”. O número oito é aquele que aponta para a solidão e para a melancolia dos negócios – e o jogo para o louco é sempre um negócio divertido.
Como poema de um só fôlego, este As confissões de plomo revela-se como uma descrição metafórica de um ritual de passagem. A figura do pai ganha um duplo contorno: primeiro, o sentido de gerador, como aquele que deu existência a outro, mas que também é corruptível como o filho – “Toma, pai/ este meu corpo adornado/ por gestos sutis/ que te servirá de estátua/ para velar tua lápide/ feita de pó e vento”; segundo, o sentido de criador ou fundador de uma doutrina, ou de um modo de fazer – “Recordo/ teu antigo sorriso/ com cheiro de caça/ (teus gestos tinham hálito de cobra/ de arma sendo luzida)/ Recordo a brandura da tua fala/ como a voz da noite:/ um murmurar de folhas/ um assovio de faca/ cavando carne inocente”. Difícil não notar aqui uma aproximação entre estas confissões e alguns poemas de Lorca, especialmente o poema Se minhas mãos pudessem desfolhar de 1919: “Eu pronuncio teu nome/ nas noites escuras,/ quando vêm os astros/ beber na lua/ e dormem nas ramagens/ das frondes ocultas;/ E eu me sinto oco/ de paixão e de música./ Louco relógio que canta/ mortas horas antigas”. As imagens comuns aos dois poemas se combinam de forma harmoniosa e bela: se pronunciar um nome e recordar a brandura de uma fala aparecem como reflexos de uma mesma imagem, então o murmurar de folhas e o descanso nas ramagens produzem o mesmo resultado – o desejo permanente de manter o tempo sobre o domínio do agora.
Neste ponto, podemos relacionar estas imagens das confissões de plomo com aquilo que Gaston Barchelard escreveu na obra O direito de sonhar (1994, p. 183), afinal a poesia é uma metafísica instantânea. Um curto poema deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, ao mesmo tempo um ser e objetos. Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida; somente pode ser mais do que a vida, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e dos pesares. Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade.
Dessa passagem de O direito de sonhar, do filósofo francês, retiramos os termos que definem com clareza toda a obra As confissões de plomo: unidade e equilíbrio, alegria e dor, solidão e encontro. O poeta destaca essa dialética simbólica que mantém e alimenta a vida no seu modo de ser contraditório: “Me acostumei a sorver/ o caldo duro e seco/ centro de uma solidão amena/ pois o impagável tempo/ havia enganchado as horas/ nos minutos eternos da esfera”. O Eu lírico leva um velho caderno com os conselhos apontados pelo pai, guardando em si um amigo louco, que traz “[...] uma confissão maculada/ endurecida por falhas/ embrutecida e gelada”.
Estas confissões, auto-confissões de um Eu lírico, se mostram reveladoras para o leitor que termina por ver nelas algo de seu, de próximo, de íntimo: as dores profundas que marcam as despedidas indesejadas, as mortes inesperadas e as horas de solidão que consomem aqueles que, de algum modo, encontram-se exilados longe da pátria e da família. Por isso mesmo, esse amigo louco “Traz cicatrizes ferozes/ enfeitadas com imagens/ de chumbo, pó e estrada/ traz calos, cortes e cartas/ uma jogada incompleta: são oito as cartas de espada”. Muitas são as imagens que aqui podemos destacar para fortalecer a idéia de distância, sofrimento e dor: as “cicatrizes ferozes”, o “pó” e a “estrada”, os “calos” e as “oito cartas de espada”.
O canto desse amigo louco se mostra como um encômio ao ritmo breve e rápido das quadras populares. Neste ponto, o canto plúmbeo ganha força e profundidade. Toda a confissão do louco – pelo ritmo ora compassado, ora quebrado (pois o poeta não se preocupa em manter o rigor formal das rimas alternadas) – faz lembrar um jogo ordenado de cartas cujo fim parece indicar para a prática do blefe como uma estratégia de sobrevivência. Assim, nas palavras do poeta, cabe ao jogador “Jogar com todas as cartas/ Cambiar, se for o caso; Combinar naipe com naipe/ Tornar penoso o trabalho”. Essa combinação de naipes não pode ser algo inocente ou fortuito, mas sim algo elaborado e calculado. Mas o louco adverte que o excesso de reflexão pode ser de algum modo um mal, pois o tempo conspira sempre contra o bom senso, e num jogo de cartas marcadas, o bom mesmo é ser “loucamente” prudente: “Porque, amigo, não tens/ Todo o tempo a pensar/ Perguntas infames vêm/ Ferir teu juízo ao passar/ Não há qualquer privilégio/ Que seja o de meditar/ Obtêm por teu talante/ As respostas do azar”.
A relação entre o jogo, o blefe, o azar e a morte demonstra algo fundamental: o louco não teme os improváveis caminhos do acaso, nem se preocupa com a desdita que a falta de sorte, num jogo de cartas, pode proporcionar. No ímpeto do jogo, no desespero da hora do acerto de contas pelo blefe não encaixado, nenhum jogador está livre da astúcia de quem tem sempre uma carta na manga, por isso mesmo, as confissões do louco são máximas para o destino humano naquilo que ele possui de inevitável e certo: a hora da morte. Nesse sentido, o amigo louco enfatiza o que cabe a todo homem: “Esperar calmo, tranqüilo/ perguntas, idéias, vozes/ esperar como se espreita/ a hora do ímpio golpe”, afinal, “Quem traz o plomo embutido/ na cobertura do corpo/ Não é preciso que diga/ É improvável, está morto”.
Há nesse final das confissões do louco uma nítida ligação entre o plúmbeo e a morte. O poeta, neste ponto do texto, relaciona de forma precisa a cor do chumbo com a cor da morte. A morte tem a cor do chumbo. A morte é também uma metáfora para o fim do canto do amigo louco. Morte, rigidez e acaso se mostram numa harmoniosa presença. O corpo sem brilho e opaco se mostra com o tempo rígido. O morto plúmbeo torna-se mais pesado. Assim, a temática da morte, enfatizada neste ponto da obra, não causa desespero ou angústia, apenas sinaliza, como um simbólico farol, para o destino final da odisséia humana. Aquilo que o amigo louco revela, pela sua forma rápida de marcar o tempo da linguagem, é a força do ritmo poético. Num “poema clássico, o ritmo tende a demarcar, no interior de uma língua geral, uma área particular de regularidades” (BOSI, 2000, p. 85), mas nestas confissões de plomo, o ritmo rompe com aquilo que, enquanto andamento da fala submetida a leis de polaridade estrita, costumeiramente se conhece por verso metrificado. Essa passagem da obra, por si só, já valeria uma leitura, uma escuta, uma audição em bom tom daquilo que estas confissões de plomo possuem de musical e harmônico, expressivo e profundo, afinal, a correta entoação desses versos desvela os movimentos da alma que estão trabalhando a frase à procura de palavras.
Na terceira parte, “tons vivos sobre natureza morta”, a idéia de uma contingência marcada pela busca ganha destaque por sua força lírica. Outra vez a imagem do pai retorna ao centro do poema. Mas há também certa melancolia nesta passagem da obra, uma melancolia cinza, plúmbea e mágica, que prepara o leitor para o encontro com o pai idealizado que cada humano sonha encontrar um dia para poder descansar a cabeça sobre o colo de pluma, algodão e silêncio.
O Eu lírico confessa a sua certeza: “Sabíamos, Pai/ Desde que vosso cansaço de corpo/ Mudou a paisagem dos músculos titânicos/ Desde o tempo em que os feristes de azul/ Desde o tempo em que decidistes criar cavalos de luz/ Sabíamos/ Jamais poderias gerar o exército de querubins”. Apesar dessa limitação do pai, há uma esperança no seu retorno como o retorno de uma boa nova, o retorno de um amigo querido que anuncie a sua chegada, mesmo sem garantir o dia e a hora de chegada, sem trazer os esperados presentes de luz. Desse modo, podemos dizer: “Venhais caçar conosco mariposas noturnas/ Venhais nu, correr as florestas, pântanos e prados/ Venhais devolver-nos a infância, as vozes diurnas”. Nestes versos, o mundo humano não parece mais tão hostil depois daquilo que o poeta identifica no homem, a presença de uma esperança fundada na valentia e no mistério. As confissões de plomo encerram com uma “paisagem amorfa sobre superfície plana”, subtítulo que protege o nome do pai. Esta parte final do poema chama atenção por cinco palavras que servem de guia para aquilo que se busca numa confissão: a declaração dos pecados do confessor. Palavras tais como desculpa, verdade, castigo, discurso e conselho demarcam o sentido dessas confissões de chumbo.
No corpo do texto, essas palavras aparecem acompanhadas dos seus respectivos artigos:
a desculpa – “Por todo esse caminho de ódio/ Por todo esse chão de abandono/ Creiam-me, meus filhos/ Havia uma intenção maior/ De acudir o mundo” – aponta para um pedido de absolvição, ou para um perdão que atenue a culpa trazida no peito;
a verdade – “E quando todos diziam/ Em inoportuna voz/ Dos possíveis erros cometidos/ Eu lhes ofertava a parede/ com a paisagem a óleo/ De brincadeira ao ar livre”/ Eu lhes manchava de amarelo:/ Um único ponto na superfície negra/ Para que explodissem em luz” – revela o penhor de sinceridade que toda confissão deve conter: a adequação entre a razão da confissão e a esperança de uma reconciliação com o divino;
o castigo – “Vieram sobre mim/ As pedras de Madalena/ O golpe na única face/ O cuspe ácido das estrelas/ A corda cheia de cortes/ Vieram sobre mim/ A culpa pela insônia/ por dias de pesadelo/ pela agonia da noite/ pelas lágrimas de Éster” – é essa repreensão pelas faltas cometidas, essa punição justa e necessária para a re-ordenação daquilo que funda a relação entre o livre-arbítrio e a vontade de Deus;
o discurso – “Há que perder a coerência/ Todas as idéias vis/ Todo discurso alienado/ Todas as manifestações/ Em prol da paz e da ordem/ De um tempo deserdado” – é esse arrazoado final, em nada metódico, que demarca outra vez a diferença entre uma prece, um poema e uma súplica, que culmina com algo necessário;
o conselho – “Busquem meus submergidos rostos/ Nas ações revolucionárias das crianças/ Quando saltam as pedras/ Quando inventam rios/ Quando constroem cidades imaginárias e fantásticas/ Quando conseguem enumerar as estrelas” – como uma advertência final (um aviso simbólico) ao leitor desavisado e desconhecedor da diferença entre o divino e o profano; de certo modo este conselho sintetiza uma lei conhecida de todos desde a antiguidade: sem o divino, o homem não é nada. Ao apreender o divino na sua pureza e grandiosidade, o poeta sugere ao homem olhar o mundo com os olhos da criança, reinventando valores, sem transformá-los em grilhões de uma realidade insuportável e fútil. Os versos finais dessas confissões apontam para aquilo que, na nossa liberdade, garante o nosso pleno direito de sonhar.