Haicais em dicionário guarani-português
[Caqui: The Brazilian Journal of Haiku] Inverno
2010
Apresento texto de José Marins, na revista Caqui, sobre o dicionário de Cacy Fernandes de Assis, onde há um haikai de minha autoria, publicado há tempos no Recanto das Letras, o que muito me honra.
por José Marins
A escritora Cecy Fernandes de Assis, acaba de lançar a 2ª. edição do seu Dicionário Guarani-Português/Português-Guarani. Com 954 páginas e pesando 1300 gramas, o dicionário traz 18 mil verbetes. Além disso, cerca de 30 haicais comparecem nas exemplificações, traduzindo o gosto da autora por essa forma poética. A obra é fruto de longos anos de estudo e pesquisa, iniciados com o Projeto Karumbe (produção de material didático em português/guarani para aldeias do Mato Grosso do Sul, entre 1988 e 2003). Cecy, escritora profícua, não só investe em pesquisa como estudou as línguas inglesa e japonesa e nos surpreende com a seguinte afirmação: “a estrutura do guarani tem semelhança com o japonês. Facilita o entendimento desta última”. Isto pode ser um bom motivo para o interesse de estudos haicaístas da língua guarani.
Ao buscarmos detalhes sobre como isto seria, a professora nos esclarece:
“Exatamente a mesma não é. Como todas as línguas há semelhanças e diferenças. O fato que mais chama a atenção é que japoneses, coreanos e chineses aprendem o guarani rapidamente e com apenas dois meses de contato já o falam com fluência”.
Segue-se uma exemplificação esquemática dos paralelismos, fornecida pela autora, especificamente para os casos dos guaranis Ñandeva, Paraguaio, Caiuá e Mbya (este dois com algumas diferenças). Japonês e Guarani são línguas aglutinantes que combinam vários elementos de significado distintivo em uma só palavra.
Exemplo de aglutinação em guarani: ipojojáva / justo.
i = partícula da terceira pessoa que supre o verbo ter.
po = mão.
joja = igual.
va = que.
Ipojojáva = que tem a mão igual/justo.
Exemplo de aglutinação em japonês: 三味線: shamisen ou sangen / três cordas de sabor ou três cordas (instrumento musical).
三 = 3
味 = sabor
線 = cordas.
Além disso, há léxicos particulares que variam de acordo com o status relativo entre interlocutores, no caso do guarani, vocabulário (parentesco) diferenciando para homens e mulheres.
Outra semelhança é o uso de partículas para fazer a interrogação: Guarani: pa e japonês: ka.
Mba’éicha pa (Como está?)
あなたはブラジル人ですか。
Anata wa burajirujin desu ka (Você é brasileiro?)
Nota-se também a “ausência” do verbo ser.
Che brasilgua (Eu sou brasileiro)
はい、ブラジル人です(Hai, burajirujin desu. Sim, eu sou brasileiro)
Mais semelhanças:
Consoantes sempre intercaladas com vogais. No guarani exceção apenas nos dígrafos r, nd, ng, r que são considerados letras.
Ausência do artigo.
Ausência de plural ou construção apenas com o vocábulo kuéra/tatchi, se necessário
Não flexão das pessoas verbais.
No guarani antepõe-se a parte regida à regente: pó/pe, mão/com: com a mão; o específico ao genérico: yvyra/rapo, árvore raiz: raiz da árvore; determinado ao determinante: hi/ri, ele/em cima: em cima dele.
Uso de onomatopéias.
Chama a atenção um fato inusitado, em se tratando de uma obra de referência, incluir haicais para exemplificação de muitos verbetes. Cecy, que também é poeta, utilizou em torno de 30 haicais de 18 autores. A autora explica o porquê dos haicais:
“Não sou haicaísta, mas louca de marré pelo haicai, olhos e ouvidos, por excelência de iluminuras. Sendo poeta estou sempre espiando dentro da calcinha da palavra usando os olhos de ver poesia, e as idéias são como milho pipoca… Puff, explodem e me deixam mais alegre que minha alegria. – Haicai no dicionário, com orgulho e sem pudor, foi uma feliz colagem das mimby (flauta) com o shamisen. Um belo arranjo para flauta, desvarios e assobios”.
Segue abaixo, um haicai de cada autor vertido ao guarani:
- Afrânio Peixoto, p. 78:
Observei um lírio./ De fato, nem Salomão,/ é tão bem vestido.
Ohecha peteĩ lírio./ Añetegua, Salomõ jepe,/ namondepyre porãive.
- Alice Ruiz, p. 97:
entre uma estrela/ e um vagalume/ o sol se põe
mbyja petei mbyte/ há ysondy/ kuarahy oike
- Anibal Beça, p. 157:
Sol no girassol./ Sombra desenha outra flor/ no corpo dourado.
Kuarahyjerehápe./ Kuarahy´ã ohai yvoty ambue/ hete ajúpe.
- A. A. de Assis, p. 513, 703:
Os passantes param./ Carregadinhos de flores/ os jacarandás.
Guataha opyta hikuái./ Yvoty myenyhëmi/ jakarandakuéra.
- Basho, p. 246, 654, 804:
Primeira chuva de inverno/ O macaco talvez queira/ uma capa de palha.
Araro´y peteĩha, / ka´i oipota peteĩ/ kapi´ipõcho michĩ.
- Buson, p. 801, 801b:
O rio de verão/ que alegria atravessá-lo/ de sandálias na mão.
Aráhaku ysyry/ tahory ohasa ichupe/ ipópe aope.
- Érico Veríssimo, p. 749
Gota de orvalho/ na corola de um lírio./ Jóia do tempo.
Ysapy hyky/ lírio akãmbytépe./ Hi´ára jeguaka.
- Helena Kolody, p. 73, 92:
Arco-íris no céu./ Está sorrindo o menino/ que há pouco chorou.
Jýi yvágape./ Ipukavy mitã´imi/ hasẽ naymái.
- Issa, p. 245, 729, 735, 806:
Chuva de primavera./ Uma criança/ ensina o gato a dançar.
Arayvoty ama./ Peteĩ mitã´i ombo’e/ mbarakaja ojeroky.
- Jacques Levin, p. 769:
Aragem que passa./ As maritacas quietas/ esperam o sol.
Yvytu vevúi ohasáva./ gua´a´ikirirĩva/ oha´arõ kuarahýpe.
- Jane Reichhold, p. 51:
no espelho/ suas rugas não mudam/ a superfície lisa.
itangechápe/ icha´ĩ nomoambuéi/ ape sỹi
- José Marins, p. 352, 482, 635, 643:
vê-se cor-de-rosa/ sobre o preto do asfalto/ flores de paineira
ohecha pytãngy/ hũ itahũ Ari/ samuhũ poty
- Masuda Goga, p. 245:
Libélula voando/ para um instante e lança/ sua sombra no chão.
Ñahatĩ ovevévo/ opyta sapy´a há oity/ ha´anga yvýpe.
- Millor Fernandes, p. 27:
Olha/ entre um pingo e outro/ a chuva não molha.
Ema´ẽ/ peteĩ rykyryky mbytére/ ama ndakýi
- Paulo Franchetti, p. 246:
Ao sol da manhã,/ imóvel como se dormisse,/ a coruja no fio.
Ko´ẽ kuarahýpe,/ omyi´ỹva koicha okerõ,/ ñakurutu inimbópe.
- Paulo Leminski, p. 586, 667:
acabou a farra/ formigas mascam/ restos da cigarra
opáma vy´a guasu/ tahýi oisu’u/ hembyre ñakyrã
- Rogério Viana, p. 191:
Noite escura/ vagalumes no caminho/ da menina.
Pyhare hũ/ ysoyndy hapépe/ kuñataĩme.
- Rosa Clement, p. 245:
sobre a relva,/ asas de libélulas/ molhadas de orvalho
nũre,/ pepo ñahatĩ/ hayvy aky
A autora
Cecy Fernandes de Assis, é poeta, escritora, pesquisadora e professora. A.A. de Assis, o grande poeta-trovador, a chama de “minha sobrinha”. Ela, por sua vez, diz “… Assis é meu tio emprestado. Ele é tio de meu marido. Quando casei, as mulheres trocavam os sobrenomes”. Autora de várias obras literárias e didáticas nas áreas de poesia, conto, crônica e infantil. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles o internacional Casa de Las Américas, em Cuba, 1999, ao lado de nomes como Vargas Llosa, Lezama Lima, García Marquez, Chico Buarque e Ana Maria Machado. Sobre este prêmio, ela diz: “durante 14 anos, todos os anos, eu concorri ao Prêmio da Casa, porque para dedicação à literatura há mais tempo”.
Serviço:
Título: Dicionário Guarani-Português, 2ª edição
Autora: Cecy Fernandes de Assis
Editora Luiz Assis
ISBN 9788590863106
Tamanho: 16,5 x 23,5 x 4,5 cm, 954 páginas
Capa dura; miolo em papel Pólen.
À venda com a autora, ou nas livrarias Cultura, Saraiva e Loyola
Contato: cecyfernandes@yahoo.com
Autoriza-se a reprodução do todo ou partes desta matéria, desde que feita a referência. Como citar este texto: MARINS, José. Haicais em dicionário guarani-português. [online] Disponível na internet via WWW. URL: http://www.kakinet.com/cms/?p=285. Acesso em dia/mês/ano.
Este artigo foi publicado em 11/07/2009 à(s) 11:49 e está arquivado na categoria Notícias.