O VERTIGINOSO MUNDO DE FUNES EL MEMORIOSO, DE JORGE LUIS BORGES

O VERTIGINOSO MUNDO DE FUNES EL MEMORIOSO, DE JORGE LUIS BORGES

Serley dos Santos e Silva

RESUMO: Este trabalho objetiva estudar a memória no conto Funes el memorioso, de Jorge Luis Borges, a partir da leitura dos seguintes textos literários: O narrador, de Walter Benjamin; A Filosofia da Composição, de Edgar Allan Poe, e Introdução à Semanálise, de Julia Kristeva. A memória, para efeito de estudos, é reconhecida nos seguintes aspectos: lembranças, reminiscências, experiências, memória individual e registros de memória na arte de contar histórias. O narrador nessa perspectiva, é denominado narrador-memorialista, pois ele se utiliza da memória como fio que o conecta à memória de Ireneo Funes (protagonista).

Palavras-chave: Jorge Luis Borges; Memória; Narrador-memorialista.

Este estudo objetiva traçar uma análise do conto Funes el memorioso, de Jorge Luis Borges. Baseia-se, para tanto, nos subsídios dos seguintes textos teóricos: O narrador, de Walter Benjamin (1986); A Filosofia da Composição, de Edgar Allan Poe (2000); Introdução à Semanálise, de Julia Kristeva (1974).

A personagem Ireneo Funes, jovem de dezenove anos, protagonista da narrativa, após sofrer um acidente por um redemón (cavalo não domado), que o derrubou na estância San Francisco, tornou-se paralítico, sem esperança de voltar a andar; sofreu uma perda momentânea de memória, porém ao recobrá-la era extremamente rica e nítida. Assim, sua capacidade de memorização e de percepção tornaram-se superiores à de qualquer mortal.

Aprendeu sem esforço o inglês, o francês, o latim e o português. Ele detinha algumas particularidades, como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora exata, como um relógio. Ao final da narrativa, o narrador depara-se com o temor de imaginar que suas palavras, seus gestos perdurariam na memória de Funes, pois multiplicar seus trejeitos seria demasiadamente inútil. O conto é concluído com a morte de Funes causada por uma congestão pulmonar.

Para contar a história, Borges escolhe a memória como elemento significativo do texto, que se situa no eixo central da narrativa expandindo-se pela periferia. Esse elemento “é capaz de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai além do argumento visual ou literário” (CORTAZAR, 2006, p. 151-152).

Na narrativa, a personagem Ireneo Funes empreende as ações como protagonista da história. Ampliando-se as reflexões acerca do nome do protagonista, Ireneo Funes, pergunta-se: qual o significado desse nome? “Ireneo o Irineo: De origen griego. El amante de la paz. Forma masculina de Irene” (ON LINE, 2007, p. 01). Pode-se fazer uma alusão a San Ireneo de Lyon, considerado “amante da paz, e defensor da Igreja contra as heresias” (ON LINE, 2007, p. 01).

Será que Ireneo Funes transmite paz? Onde estaria essa paz? Em seu vertiginoso mundo, os elementos mnemônicos são incontroláveis, sua capacidade de percepção sobrepõe-se à de qualquer mortal, pois sente que sua memória “es como vaciadero de basuras” (BORGES, 2003, p.268).

Observa-se que as ações que envolvem a personagem Ireneo Funes foram cautelosamente pensadas na história. Sua capacidade de memorização confunde-o, e ele busca incessantemente a paz interior, em seu abarrotado mundo íntimo. Essa paz traduz-se na exteriorização de sua memória.

Em tempo: pode-se conjecturar que Borges, influenciado pela personagem, capitão Ireneo Morris do conto La Trama Celeste, de Bioy Casares, apropriou-se do nome Ireneo na construção da personagem Ireneo Funes na narrativa literária, segundo Rodolfo J. Rodriguez R. (ON LINE, 2007, p. 08), o nome Ireneo e do gramático e historiador francês Charles François Lhomond, também aparecem no conto supracitado.

É importante considerar que

[...] Muitos escritores - especialmente os poetas - preferem ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento [...] (POE, 2000, p.38).

Poe considera fundamental privilegiar a racionalidade para a composição de um texto . Ao referir-se ao poema O Corvo, assevera que

[...] é meu desígno tornar, manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou a intuição, que o trabalho caminhou, passa a passo, até completar-se, com precisão e a seqüência rígida de um problema matemático (POE, 2000, p.39).

O narrador apresenta-se na narrativa, por meio do verbo recuerdar, no presente do indicativo – “ Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar ese verbo sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo derecho y ese hombre ha muerto) (...)”(BORGES, 2003, p. 263).

As ações na narrativa acontecem com discurso direto: “Bernardo le gritó imprevisiblemente: Qué horas son, Ireneo? Sin consultar el cielo, sin detenerse, el otro respondió: faltan cuatro minutos para las ocho, joven Bernardo Juan Francisco” (Borges, 2003, p. 264). E discurso indireto, conforme denuncia o narrador: “me dijo que el muchacho del callejón era un tal de Ireneo Funes, mentado por algunas rarezas como la de no darse con nadie y la de saber siempre la hora, como un reloj” (BORGES, 2003, p. 264).

Na narrativa, o narrador pode ser denominado homodiegético : “recuerdo claramente su voz; la pausada, resentida y nasal del orillero antiguo, sin los silbidos italianos da ahora [...]. Me parece que no le vi la cara hasta el alba; creo rememorar el ascua momentánea del cigarrillo (BORGES, 2003, p. 263- 267).

Quanto ao ritmo da narrativa, considera-se circular, pois o narrador inicia a narrativa narrando acontecimentos e situações do passado, com vistas ao presente: “recuerdo sus manos afiladas de trenzador [...]. Sin el menor cambio de voz, Ireneo me dijo que pasara. Estaba en el catre, fumando” (BORGES, 2003, p. 263-267).

O conto borgiano intitulado Funes el memorioso apresenta a memória como mote central na narrativa literária. É a partir desse elemento, a memória, que o narrador conta a história de Ireneo Funes.

Embora na narrativa a memória denuncie o estado emocional do protagonista, ela não se configura no âmbito psicológico, ao contrário, a memória é vista sob os seguintes aspectos: lembranças, reminiscências, experiências, memória individual e registros de memória na arte de contar histórias, pois o narrador sabe da importância de se preservar uma história, para que ela não se perca; portanto, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1986, p.198).

Para que as histórias permaneçam vivas, retidas na memória do ouvinte, elas devem ser “transmitidas de boca em boca” (BENJAMIN, 1986, p.198). O narrador que tece e fia sua história acredita que há uma autoridade que transcende às portas da imortalidade, quem sabe, “ a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É a morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural” (BENJAMIN, 1986, p. 208).

Borges (2003, p. 268) assevera que “tal vez todos sabemos profundamente que somos inmortales y que tarde o temprano todo o hombre hará todas las cosas y sabrá todo”. Porque elementos mnemônicos estão retidos nos arquivos de memória do homem, eles se entrelaçam por meio da essência (a memória), impregnada ao longo do tempo pelos conhecimentos adquiridos. Portanto, “ é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida - e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1986, p. 207). Essa transmissão ocorre pela memória, é dessa forma que as histórias são preservadas de geração em geração.

Reiteramos que a memória, na narrativa literária, não é considerada do ponto de vista psicológico, pois se configura na tradição da arte de contar histórias e se processa como elemento de continuidade que não pode ser rompido a menos que, seja apagado na memória do ouvinte. Por isso, “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são conservadas” (BENJAMIN, 1986, p. 205).

O narrador utiliza-se da própria memória como fio que o conecta a memória de Funes (protagonista). Dessa forma, o narrador abre seus arquivos de memória, onde se encontram as lembranças, as impressões e as marcas deixadas pela história de Funes. “ Seus vestígios estão presentes em muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata” (BENJAMIN,1986, p. 205).

Nesta análise do conto Funes el memorioso, o narrador é denominado narrador-memorialista, considerando que a memória é o elemento que fecha a abertura por onde se configuram as reminiscências do narrador-memorialista a partir da memória de Funes. Para (Benjamin, 1986, p.211), “a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração”.

As experiências do narrador-memorialista são transmitidas por meio da arte de contar histórias, conservando a tradição, apesar de serem “[...] cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente [...]. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. (BENJAMIN,1986, p. 197).

A memória, no sentido dicionarizado, segundo Houaiss (2004, p.489), é a “capacidade de lembrar ou recordação de algo passado”. Para que seja considerado memória “é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância” (DAVALLON, 1999, p. 25), e passe a ser inscrito na memória coletiva e não absorvido por ela.

Verifica-se que a memória é o elemento que prevalece na estrutura central da narrativa; é dela que o narrador-memorialista utiliza-se para falar da memória de Funes. Apoia-se para tanto no recurso da metalinguagem, que confere a explicação do código pelo código: mais precisamente a linguagem sobre a linguagem.

A metalinguagem pode ocorrer no nível do discurso denotativo, operando com definições do código, usando para isso o próprio código, quanto no nível do discurso conotativo, operando também como código para chegar a um processo de definição, porém podendo fazê-lo (...) através do tema significado dos termos, em mensagens lineares; através do significante ou visual, ou sonoro, para desenhar o significado; e com o significado; e com o significante, para traduzir-definir estruturalmente o objeto, demonstrando-o, em estreita operação como trabalho da função poética (CHALHUB apud QUEIROZ, MARTINS, 1986, p. 41).

No conto Funes el memorioso, a memória é o elemento que configura a base central da narrativa, é ela que produz os incidentes e as situações que provocam o efeito pretendido pelo narrador-memorialista. As unidades que compõem a estrutura composicional (tom, efeito, brevidade, extensão e beleza) são estudadas considerando-se o grau de significação, a relevância e a especificidade das unidades presentes na memória.

Edgar Allan Poe, em suas concepções, prefere começar uma narrativa levando em consideração um efeito: “Mantendo sempre a originalidade em vista, pois é falso a si mesmo que se arrisque a dispensar uma fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável” (POE, 2000, p. 38).

No conto Funes el memorioso, o efeito inicia-se no sexto parágrafo. O narrador-memorialista demonstra certa excitação, pois anseia em saber notícias de Ireneo:

Pregunté, como es natural, por todos los conocidos y, finalmente, por el (cronométrico Funes). Me contestaron que lo había volteado un redomón en la estancia de San Francisco, y que había quedado tullido, sin esperanza. Recuerdo la impresión de incómoda magia que la noticia me produjo (BORGES, 2003, p. 265).

O efeito na narrativa apresenta-se de forma equilibrada. As ações giram em torno de um efeito provocado pela perda de memória de Ireneo, causada pelo acidente que o deixou paralítico. Tal efeito torna-se mais significativo quando Ireneo recobra sua memória, pois suas percepções apresentam-se extremamente nítidas. Ocorre, nesse caso, um efeito de contraste entre a imobilidade física de Ireneo, provocada pelo acidente, e sua capacidade mnemônica, altamente aguçada.

Al caer, perdió el conocimiento; cuando lo recobró, el presente era casi intolerable de tan rico y tan nítido, y también las memorias más antiguas y más triviales. Poco después averiguó que estaba tullido. El hecho apenas le interesó.

Razonó (sintió) que la inmovilidad era un precio mínimo.

Ahora su percepción y su memoria eran infalibles (BORGES, 2003, p. 267-268).

Nota-se o ápice do efeito no encontro do narrador-memorialista com Ireneo: “me parece que no le vi la cara hasta el alba; creo rememorar el ascua momentánea del cigarrillo . La pieza olía vagamente a humedad. Me senté; repetí la historia del telegrama y de la enfermedad de mi padre” (BORGES, 2003, p. 267).

O encontro estabelece um ponto de contato que possibilita ao narrador-memorialista transmitir ao leitor a história da memória de Ireneo:

[...] No trataré de reproducir sus palabras, irrecuperables ahora. Prefiero resumir con veracidad las muchas cosas que me dijo Ireneo. (...) yo sé que sacrifico la eficacia de mi relato; que mis lectores se imaginen los entrecortados períodos que abrumaron esa noche (BORGES, 2003, p. 267).

A narrativa é construída sob um efeito que se traduz num tom melancólico, sombrio e solitário:

Dentre os inúmeros efeitos, ou mais geralmente as impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu na ocasião atual, escolher? [...], considero que seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o tom – com os incidentes habituais e o tom especial, ou com o contrário, ou com a especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom – depois de procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito ( POE, 2000, p. 38).

O narrador-memorialista utiliza-se do tom melancólico, retratando o efeito provocado pela ação da natureza, nos espaços exteriores: “Mi primer recuerdo de Funes es muy perspicuo. Lo veo en un atardecer de marzo o febrero del año ochenta y cuatro. Después de un día bochornoso, una enorme tormenta color pizarra había escondido el cielo”, (Borges, 2003, p. 264). A descrição da paisagem no entardecer e o indício de tormenta provocam um tom melancólico, silencioso e sombrío: “oí rápidos y casi secretos pasos en lo alto; alcé los ojos y vi un muchacho que corría por la estrecha y rota vereda como por una estrecha y rota pared” (Borges, 2003, p. 264). Os espaços interiores, por onde circula o protagonista Ireneo, o narrador-memorialista os apresenta com aspecto lúgubre, para não se distanciar do tom melancólico pretendido na narrativa:

[...].Me dijo que Ireneo estaba en la pieza del fondo y que no me extrañara encontrarla a oscuras, porque Ireneo sabía pasarse las horas muertas sin encender la vela. [...] Había una parra; la oscuridad pudo parecerme total. Oí de pronto la alta y burlona voz de Ireneo. Esa voz hablaba en latín; esa voz (que venía de la tiniebla). [...] la pieza olía vagamente a humedad. (BORGES, 2003, p. 266-267).

A melancolia faz parte do mundo íntimo de Ireneo, ele revela certa tendência ou prazer em viver na escuridão. A escuridão reside no imo de Ireneo, ela transcende à alma e provoca certa desaprovação do mundo em que ele vive. Essa escuridão expande-se e denuncia seus conflitos interiores, como: a solidão, a incompreensão, a paralisia e mesmo a capacidade mnemônica. Conjugações que se refletem em seu estado emocional.

Considerando a beleza como elemento periférico, que se acentua e ganha dimensões significativas no eixo central da narrativa, ou seja, a memória, o tom denuncia a construção do efeito; é aí que se observa a beleza apresentada ao longo da narrativa. Poe (2000, p. 41) assevera que “a beleza é a única província legítima do poema”.

No conto Funes el memorioso, a beleza está na capacidade de memorização de Funes e no tom melancólico como a história é construída:

[...] Nosotros, de un vistazo, percibimos tres copas en una mesa; Funes, todos los vástagos y racimos y frutos que comprende una parra. Sabía las formas de las nubes australes del amanecer del treinta de abril de mil ochocientos ochenta y dos y podía compararlas en recuerdo con las vetas de un libro en pasta española que sólo había mirado una vez y con las líneas de la espuma que un remo levantó en el Río Negro la víspera de la acción del Quebracho. Esos recuerdos no eran simples; cada imagen visual estaba ligada a sensaciones musculares térmicas, etc.

[...] Había aprendido sin esfuerzo el inglés, el francés, el portugués, el latín. (BORGES, 2003, p. 268- 270)

Na concepção de Poe, a beleza é o elemento que cria um efeito de impacto no poema (ou conto). “Designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los” (POE, 2000, p. 41). O belo transcende as formas românticas e caracteriza-se enquanto instância artística.

No conto Funes el memorioso, a dicotomia tempo-espaço é valorizada na extensão do efeito. Considera-se a extensão do efeito nas impressões criadas pelo narrador-memorialista ao retratar a capacidade de memorização de Ireneo, cujo intuito é despertar a chama do fantástico no imaginário do leitor.

Me dijo que hacia 1886 había discurrido un sistema original de numeración y que en muy pocos días había rebasado el veinticuatro mil. [...]. Aplicó luego ese disparatado principio a los otros números. En lugar de siete mil trece, decía (por ejemplo) Máximo Pérez (BORGES, 2003, p.268 - 269).

Assim, “podemos adiantar já que as noções de significação, de intensidade e de tensão que hão de nos permitir, como se verá, aproximarmo-nos melhor da própria estrutura do conto” (CORTAZR, 2006, p. 152).

Segundo Poe ( 2000, p. 39), “ se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão”. Assim, a reação ou o efeito objetivam provocar excitação e emotividade no leitor.

Portanto, a brevidade está vinculada a um ponto de equilíbrio, no centro, pois um poema ( ou conto) não pode ser longo demais, nem breve demais (cf. GOTLIB, 1988, p. 33).

O espaço na narrativa é a cidade de Fray Bentos, que fica a oeste do Uruguai e faz fronteira com a República Argentina. “Mi padre, ese año, me había llevado a venerar a Fray Bentos”(Borges, 2003, p. 264). E também na Estância de San Francisco, local em que Ireneo sofreu o acidente “ me contestaron que lo había volteado un redomón en la estancia de San Francisco. Segundo Rodriguez (ON LINE, 2007, p. 7), “Estancia de San Francisco, los primeros españoles que reconocieron la región, salidos desde la recién fundada ciudad de Córdoba “(...).

O narrador-memorialista enfatiza em suas reminiscências os momentos felizes em Fray Bentos, que ficaram presos em sua memória no “entardecer de marzo ou febrero del año ochenta y cuatro” (BORGES, 2003, p. 264). Conheceu Ireneo Funes nesse dia: “Volvíamos cantando, a caballo, y ésa no era la única circustancia de mi felicidad (BORGES, 2003, p. 264). Talvez a felicidade que nutria seu espírito foi conhecer o uruguaio Ireneo Funes, “literato, cajetilla, porteño (BORGES, 2003, p. 263), que marcou com sua memória a memória do narrador-memorialista. Por isso, “o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (...). Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada (BENJAMIN, 1986, p.200).

O narrador-memorialista tece seu conselho na substância pura da memória de Ireneo. Ele detém a sabedoria na arte de contar história e para que ela não se apague nas linhas do tempo, o ouvinte a reproduz e a transmite para outras gerações.

O narrador-memorialista constrói a história a partir de outros textos, faz recortes, amarrando a rede de significações tecida na narrativa. O sentido da significação compreende a tessitura no encaixe do recorte na narrativa.

Relata o narrador-memorialista que “Funes era un precursor de los super-hombres (un Zarathustra cimarrón y vernáculo) (BORGES, 2003, p.264).

O narrador-memorialista apropria-se do recurso da intertextualidade, com o livro Also sprach Zarathustra (Assim Falou Zaratustra), de Friedrich Nietzsche, o qual alude “os seres humanos a uma forma transicional entre macacos que denominou Übermensch que significa ‘além-do-homem’, geralmente traduzido como ‘super-homem” (ON LINE, 2007, p. 01). “O nome se refere mais particularmente à imagem do sol que vem além do horizonte ao amanhecer demonstrando toda a força da vitória (ON LINE, 2007, p. 01)”.

Dessa forma,

todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética, lê-se pelo menos como dupla (KRISTEVA,1969, p. 64).

Zarathustra representa o sol da vitória; inquirimos então: será que Ireneo consegue sobrepor-se à sua memória? A vitória estaria na busca do sol interior, na paz da memória, ” pero no hay que olvidar que era también un compadrito de Fray Bentos, con ciertas incurables limitaciones “(BORGES, 2003, p.264).

Assim, o narrador-memorialista imprime na narrativa sua marca “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN,1986 p. 205). Ireneo pode ser comparado ao filósofo Zarathustra, mas não se pode esquecer que ele “no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos (BORGES, 2003, p. 270). Por isso, nada foge a aguçada observação do narrador-memorialista, porque “quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte”( BENJAMIN, 1986, p. 204).

Considera Bakthin (apud Brait, 1994, p. 31) que “o sentido do texto e a significação das palavras dependem da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação dos textos”.

O conto Funes el memorioso é um verdadeiro mosaico de citações, e se perscrutarmos o texto, não teremos dificuldades em encontrá-las:

despúes, en el enorme diálogo de esa noche, supe que formaban el primer parrafo del vigesimocuarto capítulo del libro séptimo de la Naturalis historia. La materia de esse capítulo es la memória; las palavras últimas fueron ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum (para que as mesmas palavras não voltem a ser ouvidas ) (BORGES, 2003, p. 267).

A teoria bakthiniana classifica a intertextualidade em diálogo entre interlocutores, ou seja, a “relação entre interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores de textos” (BAKTHIN apud BRAIT,1994 p. 31). A intertextualidade é um vasto campo de significações que enriquece a narrativa.

O narrador-memorialista registra em suas lembranças detalhes característicos da memória de Ireneo, pois eles marcaram no relógio do tempo, a história de um homem que pode ser comparado à de um super-homem em sua capacidade de memorização. Porque Ireneo era capaz de memorizar, um simples traço numa folha de árvore, as formas das nuvens austrais ou mesmo os brotos e cachos e frutos de uma parreira. Ireneo “podía reconstruir todos os sueños, todos os entresueños. Dos o tres veces había reconstruido un día entero (BORGES, 2003, p.268).

Observa-se na narrativa um certo antagonismo nas elocuções do narrador- memorialista: de um lado, ele compara Ireneo a Zarathustra, de outro, compara-o a um cristão. Idéias que divergem, pois Zarathustra atesta “a morte de Deus”, o que contradiz os ensinamentos cristãos. A frase “Deus está morto”, encontra-se no livro Die fröhliche Wissenschaft (A Gaia Ciência) de Nietszche ( ON LINE, 2007, p.01).

Porque

(...) a morte de Deus, para Nietzsche, representa o fim e o declínio da formulação do Deus que a metafísica clássica ocidental construiu: o de ser absoluto e supremo. Quer dizer que a idéia do Deus do cristianismo deveria morrer na consciência do ser humano enquanto mantenedor do sistema tradicional de valores. Como resultado disso, alguém deveria ocupar o seu lugar – o próprio homem (EXISTENCIALISMO, ON LINE, p.01).

O narrador-memorialista retrata que Funes

(...) había sido lo que son todos los cristianos: un ciego, un sordo, un abombado, un desmemoriado. (Traté de recordable su percepción exacta del tiempo, su memoria de nombres propios; no me hizo caso). Diecinueve años había vivido como quien sueña: miraba sin ver, oía sin oír, se olvidaba de todo, casi todo (BORGES, 2003 p. 267).

Assim tece uma crítica aos cristãos cegos e surdos, àqueles que ainda estão presos à letra e não à essência dos ensinamentos cristãos.

Jesus, o grande psicoterapeuta, sabia que forças estranhas atuam na mente; elas, muitas vezes, impendem-nos de olhar as pessoas ou observar situações e simplesmente não vê-las, ou mesmo ouvir as pessoas falarem e não escutá-las. Dessa forma, justifica-se a referência ao texto bíblico: “ouvireis com os ouvidos e não entendereis, olhareis com os olhos e não vereis” (MATEUS, 13:11-14).

A memória de Ireneo liberta-se de um mundo turvo, para um mundo sem fronteiras, onde ninguém pode impedi-lo de seguir. Para o narrador-memorialista o importante é que “nos dejan vislumbrar o inferir el vertiginoso mundo de Funes” (BORGES, 2003, p. 269). Nada foge à sua privilegiada memória, nem o mais infinitesimal dos seres, tudo é registrado: “repito que el menos importante de sus recuerdos era más minucioso y más vivo que nuestra percepción de un goce físico o de un tormento físico” (BORGES, 2003 p. 270).

O conto borgiano apresenta-se numa grande tela, construída de pequenos mosaicos. Cada mosaico é composto de elementos mnemônicos que não se fragmentam, ao contrário, aglutinam-se para que não se perca nada, nenhum detalhe pode ficar esquecido. Os detalhes são pintados com as tintas frescas das lembranças, das reminiscências, dos registros de memória presos ao passado. As tintas desenham os traços finos na memória de Ireneo, pois ele “no sólo recordaba cada hoja de cada árbol, de cada monte, sino cada una de las veces que la había percibido o imaginado. Resolvió reducir cada una de sus jornada pretéritas, a unos setenta mil recuerdos, que definiría luego por cifras (BORGES, 2003, p. 269).

É necessário que “o acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretudo, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da comunidade social (DAVALLON, 1999, p. 25).

A memória de Ireneo é como um “vaciadero de basuras”, abarrotado de arquivos. Quando abertos, eles provocam um efeito sinistro de perplexidade e de pavor e sugerem ao narrador-memorialista uma impressão que pode permanecer impregnada na memória de Ireno. Tal impressão associa-se ao registro preservado pelo arquivo e consequentemente será conservado na memória de Ireneo. Talvez seja esse o temor do narrador-memorialista, imaginar que “cada una de mis palabras (cada uno de mis gestos) perduraría en su implacable memoria; me entorpeció el temor de multiplicar ademanes inútiles” (BORGES, 2003, p. 271).

Ireneo Funes morreu 1889, de uma congestão pulmonar, embora fosse “solitario y lúcido espectador de un mundo multiforme, instantáneo y casi intolerablemente preciso” (BORGES, 2003, p. 270). Sua memória, no entanto, continua viva, sendo lembrada por muitos, porque sempre há alguém em algum lugar que quer contar uma história... e alguém que deseja ouvi-la.

REFERÊNCIAS

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