MEMÓRIAS DESDOBRADAS: TRAÇOS ESPECTRAIS NA FICÇÃO DE HELIO SEREJO
MEMÓRIAS DESDOBRADAS: TRAÇOS ESPECTRAIS NA FICÇÃO DE HELIO SEREJO
SILVA-SANTOS, Serley (UFMS)
Existe em todo historiador, em toda a pessoa apaixonada pelo arquivouma espécie de culto narcísico do arquivo, uma captação especular da narração histórica pelo arquivo, e é preciso se violentar para não ceder a ele. (Roudinesco, Elisabeth)
Abrir um arquivo serejoano é, mergulhar nas histórias dos ervais, é colher em páginas
comumente esquecidas, relações intersubjetivas descritas em cenas na escritura de Serejo. É
ao mesmo tempo sentir uma paixão, um frêmito na alma. É um deslocar da visão simplista do
arquivo, é uma paixão que transcende um efeito comum dos elementos depositados. É, antes
de tudo, adentrar um espaço de arquivamento não adormecido, mas revigorado num tempo
sem presente, sem passado e sem futuro. A noção do arquivo numa primeira visada parece
apontar para um passado, [...] “o arquivo deveria por em questão a chegada do futuro1”.
Retiram-se camadas sobrepostas no arquivo, cada uma delas traz em si, o sumo da erva mate,
traduzido na poética de Serejo.
O arquivo reserva um espaço de memória cuja receptividade propicia um alastramento
das histórias dos ervais. Esse alastramento somente acontece no momento que se efetivam as
histórias. A efetivação se processa mediante uma configuração de escritura. Embora se
vislumbra uma memória impactuada numa antecipação representativa, ela é antecipada num
espaço atemporal, que por si só reúne os elementos anteriores em estado de latência. Serejo
agrega e alimenta a memória autoral com as histórias dos ervais.
As camadas retém um fluxo significativo de memória, que não se inscrevem no espaço
comum da vida cotidiana do ervateiro, mas retratam elementos presos às malhas cotidianas de
uma realidade subjetiva, uma realidade ficcional que se traduz em efeitos de realidades. Esses
efeitos, menos contidos, estão presos à esfera circunferêncial num espaço de memória. Ao
mesmo tempo, estão vinculados à tessitura escritural que transmite um sentido de memória. “A
memória, isto é, a força (macht) sempre atuante de uma experiência, depende de um fator, que
se chama a quantidade de impressão2”. Um sentido que parte de um efeito na ordem de uma
memória “factual”. “Quando aquele moço de olhos brilhantes teve a idéia de levantar morada
ali, na mata fechada, para fazer erva, julgaram-no UM FRACO DO JUIZO3”.
Opera-se na escritura de Serejo, um processo de acolhimento dos elementos da
memória antecipadora, receptiva à abertura de suas camadas. Tais aberturas propiciam uma
inserção da memória autoral. Não há uma transferência das histórias de uma memória a outra,
cada história ficcionalizada traz em si suas especificidades. Serejo cria uma ambientação
apropriando-se de elementos extrínsecos à vida do ervateiro.
“O anu, afirmam renomados estudiosos, é ave crioula, veio ao mundo para robustecer o
crioulismo que já engatinhava em rincões diferentes, dando início a uma legião de pássaros que
formaria a nação nativista4”.
Como Serejo recolheu elementos de antecipação de memória? Estamos circulando um
espaço existente receptivo de memória ervateira. Observa um certo “adormecimento” dessa
1 Derrida, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana, 2001, p. 48.
2DERRIDA, Jacques. Freud e a cena da escritura, 1995, p. 184.
3 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 133.
4 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 147.
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memória entecipadora, Serejo estabelece uma relação natural com essa memória, usufruindo
de todos os elementos presentes em estado de latência. Esses elementos não surgem
aleatoriamente, pode-se dizer que eles se “regeneram” na memória construída por Serejo.
“Tudo era rústico ao seu redor. Fez questão absoluta de ser fiel ao primitivo, não introduzindo
na ranchada nenhuma inovação. O bruto, o nativo estava em seu sangue5”.
Essa memória antecipadora propicia uma abertura para o devir das histórias dos ervais.
“A condição para o que o por-vir continue por vir é que seja não apenas não-reconhecido, mas
também que não seja cognoscível enquanto tal6”.
A memória antecipadora possui traços inapagáveis nas histórias dos ervais? Arriscamonos
adentrar as cavernas de memórias de grau significativo. Nela se antevê uma idéia que
postula cenas no devir, que são transformadas em fatos ficcionais na escritura de Serejo.
Arriscamos descer as esferas densas desse abismo, e tentamos esboçar um suposto lugar do
arquivo no erval, embora corremos sério risco em supor uma atitude vaga. Não nos limitamos
apenas na abertura do arquivo, mas nas condições reais de antecipação do espaço circulatório
dos arquivos, e na agregação dos elementos presentes nas histórias dos ervais.
A existência dessa antecipação é reconhecida em uma pré-disposição de memória em
favor do guardião Serejo (guardião do templo ervateiro). Seria ele o único a estabelecer um
vínculo com as histórias dos ervais? Ou estaria preso à idéia de traços inapagáveis na
memória? Na concepção de Derrida (2001), o que autoriza a afirmação incondicional de um
traço inapagável é, a anterioridade de um arquivo. Ou como ele é interpretado pelo arquivista.
Se Serejo trilha nas densas camadas do arquivo, interpretando-o a partir de uma
concepção de memórias, as histórias dos ervais estariam numa condição de traços
inapagáveis, que ao serem solicitados, pela memória autoral, se corporificam no núcleo da
narrativa. A narrativa se apresenta como meio, que possibilita um não-retardamento do
apagamento das memórias dos ervais. Serejo utiliza-se da escritura como um recurso
fundamental, estabelecendo um vínculo seguro com o leitor. “Carrego comigo, porém
diuturnamente, aquela mimosura de moitinha-imagem que jamais desaparecerá da mente
sertaneja. (...)7”.
A ambivalência de Serejo com leitor, na inserção com as memórias dos ervais, distanciase
do “mal de arquivo”, pois são “absorvidas” outras memórias selando um feixe de relação
desdobrável de memória. O arquivo não sofre uma pulsão de morte, que sempre é uma
condição destruidora do arquivo, “ a pulsão de morte não é um princípio. Ela ameaça de fato
todo o principado, todo o primado arcôntico, todo o desejo de arquivo8”. Ao corporificar as
histórias na narrativa perde o sentido de pulsão de “morte” arquivíca dos elementos presentes
num arquivo, pois eles se revitalizam em outro espaço de memória. A escritura propicia um
alastramento das memórias presentes num arquivo, assim elas não se desfalecem com o
tempo.
A consignação desses elementos no arquivo se processa mediante um desejo de Serejo
incontido de memória. Esse desejo impõe uma força de resistência de pulsão de morte, de
agressão ou mesmo de destruição que possibilita que as histórias dos ervais possam ser
pintadas em novas máscaras na pele crioula. Serejo pinta seus ídolos ervateiros que não se
reduzem em figuras humanas, pois se agrega num mesmo estatuto, o crioulismo. Dele nascem
os inúmeros personagens que contam as histórias dos ervais. “ Quando o crioulismo formou
seu império na terra, veio logo a cachaça de inumeráveis denominações. A guaripola,
entretanto, foi a dominadora9”.
5 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 134.
6 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana, 2001, p.92.
7 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 166.
8DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana, 2001, p.23.
9 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 149.
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Para se compreender a inserção de Serejo na memória anteciapdora tomamos como
ponto referencial um arquivo, posto subjetivamente num entre-espaço, que pode ser
vislumbrado nas regiões fronteiriças com Mato Grosso do Sul, onde Serejo colhe as histórias
dos ervais.
“Presidente Epitácio, bom comprador, companhia Viação São Paulo-Mato Grosso, Campo
Grande, Via porto Jupiá- Três Lagoas, a própria empresa Mate, e Vila Encarnación, via Guaira.
Forneceria os exércitos de Bela Vista e Ponta Porã10”.
Não há definição desse entre-espaço, no sentido de localidade, pois ele somente pode
ser (re)visto numa condição de memória ficcionalizada nas histórias dos ervais. Porém, pode se
vislumbrar um espaço num conceito metafórico de espaço ervateiro, a partir de uma memória
ficcionalida. Um entre-espaço que se concretiza no âmbito textual. Há um entrelaçamento de
memória posta subjetivamente neste entre-espaço com a memória construída na narrativa
serejoana. “Quem recorda vive...vive das andanças felizes, vive das coisas más, dos golpes
traiçoeiros do destino e de tudo aquilo que lhe moldou a vida, longa caminhada....”.
Essa memória funde suas raízes num conceito de antecipação deferindo os elementos
presos a uma carga significativa de memória. Esses elementos estão ligados em feixes de
relações, cujos significados aparecem na medida em que as histórias vão sendo reveladas.
“Rio Grande do Sul, Paraná e Argentina, produzem erva ‘tipo exportação’, mas não se iguala,
em sabor, ao mate de Mato Grosso (antes da divisão do estado) e do Paraguai11”.
Ao abrir o arquivo, que circula no entre-espaço, deparamos com a memória
antecipadora presente na narrativa de Serejo. “O arquivo sempre foi um penhor e, como todo
penhor, um penhor do futuro. Mas trivialmente: não se vive mais da mesma maneira aquilo que
não se arquiva da mesma maneira12”. Nessa memória esconde-se a grande metáfora do
porongo. O porongo, pertence crioulo, é um valioso guardador de tradições. O porongo reserva
e consigna as histórias dos ervais num processo de antecipação. As histórias são consignadas
na memória autoral, porém não perdem o vínculo anterior, pois estão respaldadas no interior da
memória antecipadora. As histórias trazem uma outra roupagem sem desfigurar sua natureza
primeira.
“Sabe que o bocão do porongo tem que ficar cheio, até derramar pela barriga........13”.
Derramam-se as histórias dos ervais na memória construída em solo narrativo, este
derramamento propicia um não-esquecimento das histórias dos ervais. “Como andante do
crioulismo, já enchi até os tampos o meu porangão14”.
Circulam no interior do porongo, filetes que se entrelaçam e formam uma cadeia de
relações que cantam nas histórias dos ervais, o crioulismo ou crioulame. Estas estão “em tudo,
no chão de todas as distâncias, no murmúrio das águas cristalinas, nas flores mimosas dos
campos, na aragem perfumada que se levanta de manhãzinha da várzea de muitos segredos e
na sinfonia das Taboas (...)15”.
Ao deslocar os filetes, Serejo mergulha em camadas de memórias, nelas estão
guardadas o enigma do arquivo. Por meio da memória autoral, pode-se compreender esse
enigma. Um enigma que é desvendo com um mapa ficcional que permite compreender nas
trilhas da narrativa, as memórias do homem ervateiro a partir de uma concepção de memória
antecipadora. É dessa memória que Serejo colhe as primeiras histórias dos ervais (primeiras
não no sentido das primeiras histórias que foram depositadas no arquivo, estas não se podem
precisar suas origens, mas uma primeira inserção das histórias serejoanas).
10 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 110.
11 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 135.
12 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana, 2001, p.31.
13 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 163.
14 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 164.
15 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 148.
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Nessa memória aglomeram-se elementos que se regeneram num espaço ficcionalizado
da memória autoral. Esses elementos ou compostos de histórias dos ervais apresentam outros
significados na narrativa. “É a experiência única do significado produzindo-se
espontaneamente, dentro de si, e, contudo, enquanto conceito de significado, no elemento da
idealidade e da universalidade16”. Um significado que estabelece em si ou em torno de si,
relações duradouras que produzem sentido das histórias dos ervais. Sua criação acontece num
espaço não circunscrito de memória. “Sentia, balangando na rede vistosa, que existia em todos
os contornos, exuberância vegetativa, representando vida, com raízes, firmando as plantas para
que, no futuro, eclodissem as flores e frutos17”.
A memória autoral absorve as histórias expostas a uma condição antecipadora de
memória. Essas histórias trazem em si, elementos que denunciam as histórias do ervateiro, e
consequentemente o crioulismo, imanente na vida do homem dos ervais. Há uma proximidade
espetacular de memória antecipadora com a memória autoral, não se pode precisar uma fusão,
mas interação substantiva que remete a um sentido de memória construída. Esta construção
dá-se em sentido relativo, pois se configura no âmbito textual. “O ‘pingo de ouro’ adorado, foi
parte integrante do meu chão crioulo, a minha vivência sertaneja, a prova do meu desmedido
amor pelo crioulismo18”.
O sentido de memória autoral na narrativa de Serejo submete-se a presença do
guardião dos temas na memória. Uma arquivista ou o primeiro arquivista, um arqueólogo, talvez
o arconte do arquivo, que abre o arquivo onde estão compactadas as histórias dos ervais. “O
primeiro arquivista institui o arquivo como deve ser, isto é, não apenas exigindo o documento
mas estabelecendo-o. Ele o lê, interpreta e classifica19”. Serejo classifica as histórias que
trazem intrinsecamente a cultura do ervateiro ou elementos presentes nessa cultura: “Aos
sábados, período da tarde, a tarefa era preparar lenha e graveto para a cozinha, limpar o olho
d’água, procurar palmito, goiaba e araçá do mato20”.
Essa memória autoral se confere num sítio arqueológico, propicio a determinadas
escavações. “Para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia
da indiferença, que ele deixa do domínio da insignificância21”.
Em geral, as histórias seguem em ordem não seqüencial, daquilo que é mais
representativo na vida do homem ervateiro. Considera-se desde a religiosidade, as
superstições, as crendices, hábitos, costumes, dentre outros elementos presentes na cultura.
“Da majestosa figueira, só restava o tronco, apontando para o céu, com augúrio de uma
maldição. Naquele vazio, ficou algo que não era obra de Diós. 22”.
A memória autoral, no caso da obra de Serejo, produz traços meramente fictícios. Não
centra suas posições na relação de temas-imagens factuais, numa visão mais ou menos plena
de realidade, remete-se a uma imisção de adequações elementares de temas-imagens
operando em campo ficcional. Retomar uma imagem produz um certo alastramento de
concordância natural de imagens das imagens numa presença anterior, que já estavam em
condições modificadas. Modificadas num tempo (im)preciso, pois podem ser vistas em imagens
que possuem relações intersubjetivas na memória autoral. Essas imagens ao serem produzidas
deixam traços, que podem ser considerados elementos mnemônicos produtivos de memória. As
imagens representam uma realidade ficcional na narrativa de Serejo, sujeitas a modificações,
que se processam como operações naturais no contexto narrativo. “Sem a figueira hospedeira,
16 DERRIDA, Jacques. Gramatologia, 2006, p. 24.
17 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 142.
18 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 144.
19 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana, 2001, p.73.
20 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 65.
21 DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte de memória?, in: Papel da memória, 1999, p. 25.
22 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 160.
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o limpo perdeu sua graça e uma tristeza imensa estendeu seu véu negro sobre aquela paragem
que deixava pasmo o caminhante (...). O vazio ficou para o desgosto de muitos varadores de
sertão23”.
A memória autoral, cujo vínculo está em uma memória anteciapodara, cria na narrativa,
imagens novas, produzidas no interior de um traço, novas não no sentido de produzir novos
elementos de imagens, mas que mantém entre si laços estruturados anteriormente com outras
imagens, esses traços não são desfigurados com o tempo, ao contrário, são alimentados por
“ondas” de imagens numa cadeia continua.
Pode-se dizer que a memória possui, desde sua concepção, outras faces, que nos
permite valer de uma outra memória, no caso a memória autoral. Esta segue uma linha
imaginária sobrepondo um estado pleno na textualidade.“É a experiência única do significado
produzindo-se espontaneamente, do centro de si, e contudo, enquanto conceito significado, no
elemento da idealidade ou da universalidade24”.
Nessa linha subjetiva paira redes de significações, com grau superlativo de memória. A
memória autoral desdobra-se em outras memórias, este desdobramento dá-se na tessitura do
texto numa ambientação favorável e receptiva aos temas dos ervais. “Hauria-animando os
pulmões, o cheiro do capim da nascente que o vento brincalhão carregava em seu bojo no
instante mágico do entardecer25”.
Há na memória autoral a existência do ser-presente, que articula as ações primeiras e
as insere em memórias desdobradas. O eu-presente, marca seu lugar como um eu-do-lugar ou
um eu-presença na memória autoral. É ele que agrega os temas ordenando-os em condições
para se inscreverem em outras memórias. “Ser, pelo qual é assinalado todo o ente singular
como tal, ser significa pre-sentar. Pensado sob o ponto de vista do que se apresenta, pré-sentar
se mostra como pré-sentificar26”. Hiedegger denominou o modo de ser do homem, nossa
existência, apropriando-se da palavra Dasein, cujo sentido é ser-aí, estar-aí. Esse conceito
filosófico nos leva a inferir o ser-presença na memória autoral. Difere no entanto do ser (Serejo)
que propicia condições para que o eu-presença possa articular os temas e as imagens
presentes na memória. “ Todas as coisas querem perseverar em seu ser, escreveu Spinoza. A
pedra quer ser pedra, o tigre, um tigre, eu queria voltar a ser Hermann Soergel27”. O ser
trabalha em favor de si, em favor de preservar seu estado de memória, assentado sempre num
querer, numa potência de vontade.
O ser-presença torna-se uma figura espectral na narrativa. Embora possua desejos e
vontades no campo de suas idéias, é um ser espectral do narrado. Sua condição é ao mesmo
tempo espetacular e indispensável, pois é relegado a ele uma “autoridade” de comando
arquívico, onde relata as histórias do homem do erval. Numa visão mais restrita do serpresença
parece que sua existência se prepondera num campo meramente abstrato, mas essa
idéia é descontruída no momento em que ele fala por si mesmo, fala pelos outros. Apresenta-se
efetivando um caráter que pode figurar um estado de concretude de sua presença. O próprio
sentido de concretude não foge a condição de abstração nas histórias dos ervais, embora o serpresença
se configure num estado de presença espectral, narrando à vida do ervateiro. A
memória antecipada fornece subsídios das histórias “factuais” ocorridas nos campos selváticos
dos ervais. “Pensar o ser propriamente exige que se abandone o ser como o fundamento do
ente em favor do dar que joga o velado no desvelar, isto é, em favor do dá-se28”.
23 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 160.
24 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2006, P. 24.
25SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 143.
26 HIEDEGGER, Martin. Tempo e Ser. Trad. Ernildo Stein, 1999, p. 254.
27 BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare, 2000, p. 451.
28 HIEDEGGER, Martin. Tempo e Ser. Ernildo Stein, 1999, p. 254.
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O sentido de existência do ente na narrativa se fundamenta numa presença na ordem
figurativa para a composição das histórias, vistas do olhar espectral. O ente, enquanto “meio”
de existência e de ligação com o espectro, propicia condição para relatar as histórias do
homem ervateiro. Essa é uma idéia vaga, ao mesmo tempo imprecisa se depararmos com o ser
“no sentido de essência, não só do homem Serejo29, mas de todas as coisas”.A questão que me
preocupa não é a existência do homem e sim a questão do ser em seu conjunto e enquanto
tal30”. Ficamos com o ser-presença da memória construída na narrativa de Serejo, que nos
remete a outras memórias desdobradas a partir de um ser-presença espectral. Pode-se dizer
que ele figura como a essência do ente Serejo, que se corporifica a partir de um estado
espectral. Ele é um segundo arconte das histórias, pois detém certa “autoridade” , e reúne um
certo saber da vida do homem ervateiro. Um arconte espectral que se integra naturalmente com
o homem ervateiro. Essa integração que o leva a conhecer os passos do homem ervateiro,
[...] o ervateiro Otaviano, com sua peonada de primeira linha, estocava
10 mil quilos de erva por dia, garantindo, com esse total, o preparo de
7.500 pacotes. No caso do tempo virar de repente, o experimentador
ervateiro determinava que fosse preparado o el paredon (...) (SEREJO,
1998, p. 136).
O ser-presença em uma ordem espectral não se desfigura com o tempo, pois Serejo
relega a ele um labor no campo da memória autoral, assim o ser-presença mantém vinculo
com poder do patriarca do templo ervateiro. Um patriarca que não se esconde nas cortinas do
ser-presença, entre eles há uma ligação que se estabelece com as histórias do homem
ervateiro num espaço meramente metafórico.“O desprendimento do ser como transcendendo as
categorias do ente, a abertura da ontologia fundamental são apenas momentos necessários
mas provisórios31”. As memórias de serejo são efetivadas pela palavra do ser-presença, ele as
traduz ressaltando com riquezas de detalhes, tudo que circunda o imaginário do homem
ervateiro.
[...] Para o norte, no planalto, as nascentes do Aquidaban, nas
cercanias da Fazenda Santa Virgília, contrapondo-se á nascente do
Lageado, já no Brasil, afluente do Rio São João, que nasce há 12
quilômetros do local onde, recebia eu, a aula inesquecível (SEREJO,
1998, p. 126).
A “autoridade” conferida ao ser-presença permite que ele opere no desdobramento das
memórias. O desdobramento não ocorre aleatoriamente, há um querer, um desejo de memória
impulsionada pela memória autoral, que articula e condensa os elementos presentes na cultura
ervateira, criando uma nova ambientação, o mais próximo do estado “natural”, onde circulam as
cenas cotidianas do ervateiro.
As memórias se desdobram a partir da memória autoral, nesta há uma impregnação de
memórias já emancipadas. Suas origens remontam uma memória antecipadora. A consignação
primeira dos elementos regenerados foi por intermédio da memória autoral, esta que propicia
uma flexibilidade para que as memórias sejam desdobradas. Temos que considerar que,
embora o ser-presença esteja numa condição espectral, possui uma “autoridade” que lhe
permite emitir juízos de valores dos assuntos circundantes nos ervais. Não podemos afirmar um
29Estamos circulando um campo específico na narrativa serejoana, o conceito filosófico heideggeriano
estende-se para o homem no sentido ser existente no mundo.
30 HIEDEGGER apud COTRIM. O Sentido do Ser. In : Fundamentos da filosofia, 2004, p. 217.
31 DERRIDA, Jacques. Gramatologia, 2006, p. 27.
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estado pleno de sua “autoridade”, sabe-se que pela palavra ordena as memórias, e que,
portanto, pode também inferir outros valores de suas próprias memórias.
“O sentimento físico de nossos males é mais limitado do que parece; mas é pela memória, que
nos faz sentir sua continuidade, é pela imaginação, que os estende o futuro, que lhes nos
tornam verdadeiramente lastimáveis32”.
Nada impede o ser-presença de elaborar suas memórias a partir da memória autoral,
pode-se dizer que suas memórias também reservam um sentido de desdobramento, e não
estão presas a um círculo somente. No momento em que são ouvidas podem ser deslocadas
para um outro estado de memória. E lá serem captadas por outro ser-presença, num processo
de pura continuidade. Não há um rompimento das memórias dos ervais a partir de Serejo, o
próprio leitor pode figurar como um ser que estabelece relações interiores com sua própria
essência, operado no campo das idéias, assim que tiver contato com as histórias, no caso
específico da obra de Serejo, desdobra sua memória em outras tantas memórias. Em cada uma
delas a uma presença discutível, que participa ativamente. “Ser, presença é transformado.
como presentificar faz parte do desocultar, permanece incluído no dar como dom. Ser não é.
Ser é dá-se como desecultar do pré-s-entar33”.
As memórias desdobradas, na condição de desdobramento, são deslocadas de um
sentido de permanência. A ocultação que em princípio aparece se desfalece na condição de
desdobrada. “Tinha que ser ali mesmo, um lugar apropriado com inúmeros favarecimentos. (...).
Ali plantaríamos as roças, fruto de um acerto entre meu pai e a administração da mate. O lugar,
de aspecto agradável, ficava no fim do mundo34”.
O ser-presença busca outros significados nos traços desdobrados. Pode-se
compreender o desdobrar das memórias na narrativa serejoana, como um processo
desconstrutivo de memória. O espectro, num primeiro momento desconstrói na rede de
relações, significados ocultos ou de aparência oculta, trazendo para uma “realidade” objetiva,
outros significados de memórias, “inaugura a destruição não a demolição mas a desedientação,
a desconstrução de todas as significações que brotam do logos 35”. Num processo
desdobrável as histórias vão sendo desconstruídas, para se chegar ou se tentar chegar ao
sentido de ocultação das histórias dos ervais, o espectro desfaz os significados opondo-se a um
principio único de verdade absoluta.
Assim caminha para uma disseminação de possíveis verdades presentes nas histórias
dos ervais. Descontruir verdades é romper com uma idéia de memória logocêntrica. Há em
Serejo a presença de uma memória autoral, mas não se pode conferir a esta um poder
absoluto, pois ela mantém em suas bases internas relações com a memória antecipadora, esta
por sua vez, mantém relação com outras memórias que possibilitaram, no principio, a absorção
de elementos mnmemônicos, que estavam presente em outro espaço de memória. Segue-se
assim um desdobrar de memórias, onde o espectro se integra obliquamente. Sua presença
marca o sentido das memórias construídas na narrativa.
Serejo constrói a partir de núcleo narrativo as memórias ervateiras, elas se apresentam
como num desfolhar de um livro, no dobrar de uma esquina, conforme pontuou Borges. Podese
dizer que nesse desfolhar desfolham-se as camadas de memórias metaforicamente presente
no porongo. O porongo sustenta uma idéia de alastramento das memórias, esse alastramento
dá-se no “derramar da água pela barriga” do porongo, as memórias são derramadas para
outras camadas solidificando seus traços de permanência.
“O crente, meigamente, desceu a mão, e conservando os olhos fechados, sem
hesitação, repetiu uma por uma, as frases lidas. Mestre Jobim exultou. Tinha diante de si, sem
32 ROUSSEAU apud Derrida. Gramatologia, 2006, p. 233.
33 HIEDEGGER, Martin. Tempo e Ser. Ernildo Stein, 1999, p. 254.
34 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 139.
35 DERRIDA, Jacques. Gramatologia, 2006, p. 13.
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nenhuma dúvida, um cérebro privilegiado, um cristão incomum36”. A memória do crente, no
conto serejoano, extrapola o comum, ele é detentor da mnemotécnica é capaz de memorizar
capítulos bíblicos inteiros ou mesmo um poema de Martin Fierro, sem nenhum sofrimento
aparente, reúne condições psicológicas que não se desestruturam ante um texto. Semelhante
ao Funes el memorioso, de Jorge Luis Borges, supera-se em sua memória “mi memoria, señor,
es como vaciadero de basuras. Uma circunferencia em um pizarrón, um triángulo rectángulo,
um rombo, (...). Había discurrido un sistema original de numeración y que en muy pocos días
había rebasado el veinticuatro mil37”.
O ser-presença reúne elementos mnemônicos como num jogo articulatório na memória
autoral, essa memória pode ser reconhecida como espaço de criação, de acumulação e de
repetição. Neste jogo o ser-presença integra-se naturalmente como um eu-do-lugar. Ele detém
um certo “poder” em manipular os elementos contidos nessa memória autoral. Sua força ou
“autoridade” não o impede de sofrer substituições futuras. Substituições que des-mantelam o
ser-presença, ao mesmo tempo, surge outro na mesma intensidade de sua presença. As
substituições não demonstram mudanças efetivas. Com o passar do tempo, o ser-presença
pode apresentar uma memória sem presente, sem passado e sem futuro, mas em condições
“reais” e “normais” de serem desdobradas. Essa condição de aparente des-mantelamento do
ser-presença acontece em uma ordem ficcional, as substituições sofridas não alteram as
histórias do ervais, no caso da obra de Serejo. “Alimentava meu espírito com o canto da
passarada, o ornamento matuto daquele recanto – criação emplogante do Onipotente (...).
Como era bom balangar naquela rede de três cores, vendo chegar a noite silenciosa! 38”.
A memória preenche um vazio aparente nas camadas estratificadas, onde se solidificam
as histórias dos ervais.
A referência de Serejo, em que confere uma memória construída na narrativa, é o
homem ervateiro, sua presença é denunciada pelo olhar espectral do narrador. Compreende-se
a memória como um espaço de impregnação, de absorção dos elementos mnemônicos. Esses
elementos aglutinam-se em camadas subjetivas na narrativa, refletindo nas imagens dos ervais.
As imagens estão presas as camadas que circulam um espaço livre, ou zonas periféricas de
aglutinação do pensamento imagem do ser-presença. As zonas periféricas estão subordinadas
a uma zona central, onde reside o pensamento-imagem. É nessa parte central que se expande
as imagens para as regiões periféricas. Tais regiões recebem as imagens em forma de
impressão que permanecem com o tempo., pois “o que é refletido desdobra-se em si mesmo e
não como desdobra o que reduplica. A origem da especulação torna-se uma diferença39”. Na
narrativa serejona não há uma reduplicação de imagens provindas, embora elas descendam de
uma memória antecipadora. No processo desdobrável as impressões permanecem, mas não
são instáveis, elas não são somente interpretadas pelo olhar de Serejo, elas padecem de um
outro olhar espectral, que pode fazer sua interpretação mediante outras observações
transcendendo um único olhar.
“Na ranchada, durante dias e dias, não se falava em outra coisa, a não ser na aparição
de Jesus Cristo e, na fuga do peão. Alguns acreditavam, piamente, na visita de Jesus.
Cercaram o lugar e ergueram uma cruz40”.
A impressão das imagens ocorre no centro até serem estendidas para a periferia. Atrás
de uma memória da vida real, há sempre uma memória circunscrita em feixes de relações
ficcionais. Essas relações são criadas em circunstancias “reais”, transferidas, acumulam-se em
uma memória autoral. Por detrás dessa memória há escrituras significativas, que surgem em
36 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 95.
37 BORGES, Jorge Luis. Funes el memorioso, 2003, p. 268-269.
38SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 143.
39DERRIDA, Jacques, Gramatologia, 2006, p. 45.
40 SEREJO, Helio. Helio Serejo; Contos Crioulos, 1998, p. 102.
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remessas ficcionais, sempre calcadas por uma presença espectral, que retira as máscaras das
histórias dos ervais.
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Bibliografia
BORGES, Jorge Luis. Funes el memorioso. In: Antología crítica del cuento hispanoamericano
del siglo XX (1920-1980): Alianza Editoral, p. 268-269, 2003.
___________________. A memória de Shakespeare. IN: Obras completas de Jorge Luis
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2002.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato J. Ribeiro. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
________________. Freud e a cena da escritura. In: Escritura e Diferença. Trad.Maria B.
Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, p. 179-251, 1995.
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de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
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Nunes.São Paulo: Pontes, p.23-32, 1999.
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São Paulo: Nova Cultural, 1999.
Roudinesco, Elisabeth. A análise e o arquivo.Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2006.
SEREJO, Helio. Helio Serejo Contos Crioulos. Campo Grande-MS: UFMS, 1998.