POBRE CAPITU!...

Não há, em toda a história da literatura brasileira, quiçá universal, personagem tão injustiçado quanto Capitu, criação imortal de Machado de Assis, nosso escritor maior. Por mais de um século, o livro Dom Casmurro vem provocando controvérsias, suscitando discussões acaloradas e causando dúvidas no meio acadêmico ou onde quer que se faça a clássica pergunta: afinal de contas, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

Todos - do simples mortal secundarista ao impávido imortal da Academia - já se dedicaram a esmiuçar o romance mais enigmático da literatura brasileira, na doce ilusão de encontrar resposta para esta pergunta. Sem dúvida, Machado de Assis conseguiu o seu intento ao deixar aos leitores a resolução do enigma: tornar Dom Casmurro o clássico mais lembrado pelos brasileiros.

Mas será que essa é mesmo a pergunta mais importante do livro? Haverá outra discussão que leve o leitor a perceber que saber se Capitu traiu ou não Bentinho é questão de somenos importância? Talvez fosse mais interessante descobrir como a imaginação de um homem pode torná-lo completamente infeliz, ou então que o ciúme em excesso é altamente prejudicial a qualquer relacionamento. E quanto a Capitu, por que nunca se defendeu das insinuações do marido? Teria ela culpa no cartório, como pensava Bentinho, ou simplesmente sentiu-se tão magoada com a dúvida do marido que preferiu calar-se a ter que lhe dar explicações?

São perguntas difíceis sobre as quais iremos nos debruçar para chegarmos à conclusão de que Capitu, em que pese já ter sido julgada e condenada, inclusive por juristas, nunca teve o benefício da dúvida, tampouco um julgamento justo.

Talvez estejamos diante do mais claro caso de imparcialidade jurídica desde que Jesus Cristo foi julgado e condenado por um tribunal escuso. Não queremos aqui comprovar a inocência ou a culpabilidade da personagem, mas apenas passar a limpo diversas situações que tornam o caso tão apaixonante quanto saber quem matou o vilão da última novela da TV.

A primeira pergunta que devemos nos fazer é a seguinte: como acreditar em tudo o que Bentinho, o principal interessado no caso, nos conta? Ora, tudo o que sabemos a respeito das situações acontecidas nos chega por intermédio dele. Não há nenhuma prova de absolutamente nada do que tomamos conhecimento através da narrativa em primeira pessoa que não provenha da boca, isto é, da pena de Bentinho. Como aceitar que ele tenha sido totalmente justo e imparcial, se desde o primeiro momento ele deixa bem claro ser aquela a sua versão dos fatos?

"Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo."

Observando imparcialmente a personalidade de Bentinho, deixada como uma fotografia antiga nas páginas do romance por ele mesmo, percebemos claramente o ser psicótico que teria sido. Em um primeiro momento vemos um Bentinho fraco e manipulável, sem forças para resistir à vontade da mãe, que faz uma promessa sem o menor cabimento e, ao invés de colocar-se a si mesma como credora de Deus, coloca seu filho.

Em seguida, temos o Bentinho sonhador, quando, ao passar pela comitiva imperial, imagina-se alvo dos favores do próprio Imperador do Brasil.

"Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava."

Ao contrário dele, Capitu sempre foi uma mulher de personalidade forte e decidida, desde criança. A forma como conseguiu livrá-lo do seminário é emblemática e mostra o quanto ela estava à frente de Bentinho, no que se refere à personalidade – tudo reconhecido pelo próprio - e à frente do seu tempo, ao não se conformar em perder o homem com o qual havia decidido se casar. O que este tinha de fraco, ela tinha de forte, sempre fora uma mulher que sabia muito bem o que queria.

"Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também."

Um dos argumentos mais utilizados pelos que acreditam piamente na traição contada pelo personagem-narrador é o de que um homem do final do século XIX jamais admitiria ter sido traído pela própria esposa, pois isso seria uma vergonha inconfessável para o seu orgulho de macho. Refutamos esse argumento com a seguinte colocação: fosse um homem comum, do povo, talvez agisse de acordo com o pensamento do século XIX; Bentinho, porém, não era um homem comum. Culto, estudou em seminário parte da infância e cursou Direito no início da sua vida adulta, portanto não pode ser tomado como um qualquer, nem comparado à maioria dos homens iletrados do seu século, e o próprio ato de escrever a respeito já fala por si: quantos homens se proporiam a contar a história que ele conta, mesmo que a traição não fosse verídica? Também devemos levar em consideração que, ao escrever a sua versão da história, ele já é um homem cansado da vida fútil que leva, à espera da morte enquanto tenta driblar o vazio existencial em que sua vida se tranformou após perder a esposa. O Bentinho que se nos apresenta é um homem em final de carreira, velho, amargurado e solitário, que leva uma vida burocrática como suas amizades e seus amores passageiros, sem forças para reagir e que procura apenas justificar-se, muito mais perante sua própria consciência do que propriamente para (im)prováveis leitores que viesse a ter, pois sabe que é o principal responsável por ter estragado a própria vida.

A rigor, não há em Dom Casmurro uma única passagem em que Bentinho admita ter flagrado a esposa no ato de adulterar. Até mesmo a cena do enterro de Escobar, que aos olhos de marido ciumento foi o divisor de águas entre a desconfiança e a certeza, não resiste a um olhar mais profundo. A nós, parece que era exatamente aquilo que parecia ser: um gesto de amizade intensa, mas desinteressado, pelo grande amigo Escobar.

"Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. (...) Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala."

O próprio Bentinho, fosse um homem mais sensível à devoção que Escobar em vida lhe dedicara, teria derramado lágrimas verdadeiras pelo falecimento do amigo em tão trágica situação. Ele nunca tivera certeza, nem mesmo dessa vez – afinal, sempre fora um homem inseguro em todos os sentidos. Havia encontrado Escobar próximo de sua casa algumas vezes, quando chegava ou saía, mas eram grandes amigos, portanto, nada de estranho aconteceu. Também temos apenas a sua palavra de que Ezequiel, pretenso filho de Capitu com Escobar, era uma cópia em miniatura do amigo, dado que apenas ressalta a imaginação de Bentinho trabalhando contra sua própria felicidade.

Apesar de não haver provas da traição, Bentinho coloca o seu casamento a perder. Ele não tem coragem de acusar a esposa abertamente (mais uma vez a famosa insegurança), mas deixa claro através de atitudes e palavras. Na sua mente doentia, até mesmo tentativa de assassinato contra o filho toma forma, e só não é sacramentada no último resquício de sanidade que ainda possui. Mas a essa altura, já o seu relacionamento com a esposa está destruído, apesar da boa vontade de Capitu, sempre à espera de uma palavra conciliadora, de um gesto de boa vontade que nunca virá, pois o coração de Bentinho já fizera a sua escolha.

"Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando."

A Capitu que Bentinho descreve, anos depois, não se parece com uma mulher amargurada pela morte do amante, mas com uma mulher que ainda ama ao marido que a rejeita, e que aguarda com esperança que ele volte atrás. Ela o encarava nos olhos, e esperava...

A separação era inevitável, mas para Bentinho, até mesmo uma separação era desculpa para usar a imaginação: forja uma viagem à Europa e deixa por lá a esposa e filho. Apesar dos insistentes pedidos de Capitu para que vá visitá-la, ele mantém-se firme e nunca mais torna a vê-la. Ela morre no exílio a que foi condenada pelo marido, provavelmente se sentindo abandonada. Aqui cabe uma pergunta: se era adúltera, por que nada se diz a respeito de uma possível vida amorosa em solo europeu? Capitu teria todo o direito do mundo a reconstruir sua vida longe do Brasil, abandonada que foi por Bentinho, e segundo as palavras de Ezequiel, em seu retorno, morreu bonita. Entretanto, parece que preferiu terminar os seus dias sozinha a arranjar outro marido. Estranha decisão para uma mulher considerada adúltera.

Já no final da vida, porém, Bentinho confessa que não conseguiu esquecer Capitu, apesar de ter tentado ser feliz em outros braços.

"Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente."

Analisando todo o romance à luz dos fatos relatados, chegamos à conclusão de que não há provas da traição de Capitu, há tão somente os esforços de um homem amargurado e no final da vida para justificar ter abandonado a esposa e rejeitado o filho, muito embora tenha feito de tudo para não exteriorizar os dois fatos. Só temos a palavra do narrador quanto à Ezequiel ser muito parecido com Escobar, o que, por si só, poderia ter sido apenas uma coincidência, já que ambos eram caucasianos – isto se o caso fosse, de fato, verdadeiro. Mas ainda assim, partindo do pressuposto que esta afirmação fosse verdadeira, restaria uma dúvida: seria possível que Bentinho fosse estéril e a esposa, percebendo isso e também como o marido seria infeliz em não poder gerar-lhe um filho, tivesse decidido dar-lhe esse descendente a qualquer custo, mesmo utilizando-se para isso dos favores do melhor amigo do marido? Mas isso é apenas uma conjectura – eis que parece que o vírus que atingiu a Bentinho fez uma nova vítima...

Na realidade, qualquer juiz teria, forçosamente, que inocentar a ré por absoluta falta de provas, já que nenhum tribunal que se diga sério poderia condenar alguém baseado apenas nas palavras do acusador. Segundo as leis brasileiras, cabe ao acusador o ônus da prova, coisa que o advogado formado não consegue. Não há nenhuma prova ocular ou testemunhal da pretensa traição, apenas os delírios imaginativos de um marido ciumento.

Consideramos injustas, pois, as várias opiniões referentes a esta suposta traição, já que todos são considerados inocentes até que se prove o contrário. E, a bem da verdade, ninguém jamais conseguiu provar que Capitu tivesse sido infiel, em que pese o texto ser conduzido de acordo com as normas machistas vigentes em fins do século XIX.

Mas então por que ela se calou e não se defendeu das acusações do marido? Talvez por se sentir injuriada a ponto de preferir abortar o casamento caso Bentinho não confiasse mais nela, talvez pela decepção que tal acusação lhe causava, talvez por ter, finalmente, visto a verdadeira face do homem com o qual se casara, talvez por crer que não havia do que se defender, quem saberá a verdadeira intenção do autor? O único fato palpável do romance Dom Casmurro é que nunca houve mulher como Capitu na literatura brasileira. Nas palavras do próprio Bentinho, "talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada".