A PRESENÇA DA DIÁSPORA E DA IDENTIDADE CULTURAL EM “A NOVA CALIFÓRNIA” DE LIMA BARRETO

Resumo

O artigo, intitulado A presença da diáspora e da identidade cultural em “A Nova Califórnia” de Lima Barreto, visa aplicar os conceitos de diáspora e identidade cultural de Stuart Hall na análise de um conto do autor brasileiro pré-modernista Lima Barreto.

Palavras-chave: Diáspora, identidade cultural, Lima Barreto.

O conto “A nova Califórnia”, escrito a dez de novembro de 1910 e publicado pela primeira vez em 1916, em conjunto com “O homem que sabia javanês” e com a versão na íntegra de Triste fim de Policarpo Quaresma, pelo brasileiro Afonso Henriques de Lima Barreto, servirá de objeto de análise deste artigo e o embasamento teórico serão os conceitos de diáspora e identidade cultural postulados pelo escritor jamaicano Stuart Hall.

Segundo Ernani Terra e José de Nicola (1997, p.292), Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 1881, filho de pai português e mãe escrava. Mestiço, de condição paupérrima, socialista e com o pai portador de insanidade mental, o autor sofreu com o preconceito racial por conta da sua natureza híbrida, com traços europeus e africanos imiscuídos em seu sangue e a sua criação como homem na América Latina, berço das miscigenações, numa época em que o negro ainda lutava pela sua libertação, e pode viver intensamente todas as formas de contradição e revolução que imperavam no mundo no início do século XX. Tendo uma existência tão excêntrica e conturbada para a sua época, não há que se discutir suas internações em sanatórios e o vício pelo álcool. O autor vem a óbito em 1922, um dos anos mais marcantes para a Literatura Brasileira.

Ainda de acordo com Ernani Terra e José de Nicola (1997, p. 292):

"Lima Barreto deve ser estudado como um pré-modernista por sua visão da realidade brasileira; é consciente de nossos verdadeiros problemas, ao mesmo tempo em que critica aquele nacionalismo ufanista, exagerado, utópico, herança romântica. Por outro lado, o estilo de Lima Barreto, tão duramente criticado pelos ainda parnasianos de sua época, é outro ponto de contato com o Modernismo: é leve, fluente, propositadamente frouxo para os padrões do final do século XIX; aproxima-se da linguagem jornalística, estilo que faria escola entre vários autores após 1922."

“A nova Califórnia” narra a história de um episódio curioso que acontece na pequena cidade do interior do Rio de Janeiro, Tubiacanga. Tal episódio é de certa forma uma sátira à “corrida do ouro”, que aconteceu nos Estados Unidos, no final do século XIX, e isso justificaria, em grande parte, a escolha do título. Portanto, chega a Tubiacanga um novo morador, aparentemente estranho e que acaba por intrigar a todos com seu comportamento sempre fugidio e discreto. Após algum tempo, em decorrência das mais diversas especulações em torno do seu caráter, descobre-se que o forasteiro é um importante químico, e isso faz com que o mesmo se torne admirado tanto pela profissão, quanto pela generosidade e a brandura com que trata às pessoas. Raimundo Flamel, o químico, na solidão de sua casa, onde passa a maior parte do tempo, faz uma importante descoberta e para patentear seu feito necessita de três testemunhas, as quais vai buscar com o auxílio do farmacêutico Bastos, homem das ciências, que recomenda mais duas pessoas importantes e respeitadas do lugar, que são o Coronel Bentes, considerado quase um ateísta, e o Tenente Carvalhais, coletor e maçom. A descoberta de Raimundo Flamel consiste em transformar ossos humanos em ouro. Misteriosamente, após a revelação do objeto de sua pesquisa, o químico desaparece sem deixar rastros.

Tubiacanga é descrita como uma cidade absolutamente pacífica, em que o único crime acontecido fora por conta de disputa política há muito tempo e que em nada alterou sua rotina interiorana e sua exportação de café. No entanto, passam a ocorrer uma série de assaltos e profanações aos túmulos do único cemitério do lugar, o Sossego. As pessoas, mesmo as não religiosas, ficam alvoroçadas e revoltadas contra tamanho atentado ao repouso eterno e mobilizam-se para manter a guarda voluntária no cemitério. Os voluntários conseguem, durante a madrugada, prender os profanadores, sendo que um deles falece em decorrência da violência do aprisionamento. Descobrem que se trata de duas pessoas de suma importância, o Tenente Carvalhais (o que vêm a falecer) e o Coronel Bentes, que para tentar permanecer vivo e justificar suas ações, delata o terceiro envolvido no caso, o farmacêutico Bastos. Este último é intimado em sua casa, pela população, a revelar a causa das profanações de sepulturas, e conta a todos sobre a descoberta de Raimundo Flamel, prometendo que se tiver matéria-prima poderia realizar o feito.

As pessoas retornam para suas casas com o pensamento voltado para um único objetivo: obter uma riqueza, aparentemente fácil, e que resolveria, de imediato, todos os problemas, sustentaria os luxos e as fantasias de grandeza de cada um. A cidade demonstra uma aparente calmaria, mas com a chegada da noite, de maneira dissimulada e furtiva, todos os habitantes, de todas as classes sociais, títulos, sexo e idades, dirigem-se ao cemitério buscando desesperadamente armazenar a maior quantidade de ossos possíveis para a fabricação do ouro. A ganância da população gera um tumulto, que divide famílias e acaba em tiroteio, esfaqueamentos e mortes, com as pessoas se dilacerando por causa dos despojos.

Apenas duas pessoas permanecem alheias ao massacre coletivo, o primeiro é o bêbado Belmiro, que achando uma venda aberta e abandonada apropria-se da bebida, a qual irá saborear as margens do rio que permeia a cidade; e o segundo, é o farmacêutico, que foge muito tranquilamente, carregando todo o ouro que havia conseguido.

Ao analisar o conto, uma das principais características pré-modernistas que se encontra é a do perfil humano marginalizado, como por exemplo, o abandono em que se encontram as crianças carentes, as pessoas mais humildes e o bêbado de Tubiacanga. O autor demonstra ainda, com profunda evidência, sua afeição pelos negros, sendo ele próprio de origem negra; e um misto de misericórdia e desprezo pelos brancos pobres. Isso atesta o que postula Ernani Terra e José de Nicola (1997, p. 292): "Em todos os seus romances, percebe-se um traço autobiográfico, suas experiências aparecem transpostas em alguns personagens, principalmente negros e mestiços, que sofrem o preconceito racial."

No conto, sua afeição fica evidente quando descreve as diferenças entre as peles das crianças abandonadas à sorte dos trópicos, as negras são descritas como “crianças pretas, tão lisas de pele”(BARRETO, 1993, p. 88) e as brancas, “de pele baça, gretada e áspera” (BARRETO, 1993, p.88). A figura do bêbado também se assemelha com a biografia do autor, alcoólatra e sempre se sentindo a margem dos grandes fatos que ocorrem na sociedade de sua época.

Outra característica, ainda mais particular em Lima Barreto que em outros autores do mesmo período é o misticismo, o fascínio pelas artes ocultas, que surge com a religião e as superstições de um povo. Em “A nova Califórnia”, tem-se à referência à diversidade de religiões e credos do povo de Tubiacanga: ateus e “quase ateu” (BARRETO, 1993, p. 93), como o Coronel Bentes; maçônicos, como o Tenente Carvalhais e o Major Camanho, os muçulmanos, como o mercador Miguel e os “seis presbiterianos do lugar – os bíblicos, como lhes chama o povo” (BARRETO, 1993, p. 94). Há que acrescentar o profundo medo da morte, que toma as pessoas inicialmente com os assaltos ao cemitério, e fazem com que imaginem os mortos a se revoltarem contra as violações aos túmulos e também a ver a morte como à figura a qual todo ser humano teme e está subordinado. E, por fim, a figura do alquimista, homem místico que estuda as causas secretas da humanidade, apresentado no personagem do químico Raimundo Flamel.

O personagem tido como principal e causador de toda a reviravolta por que passa Tubiacanga, Raimundo Flamel, possui dois traços peculiares: o primeiro é a mansuetude do caráter, pois o personagem tem um temperamento sossegado e sua conduta reta com as demais pessoas inspiram admiração; o segundo é o mistério que antecede sua vida e sua descoberta. Flamel, da mesma forma como surge na história, desaparece e ainda levando consigo o segredo da fabricação do ouro.

Lima Barreto também valoriza (na realidade, satiriza) alguns aspectos nas pessoas, tais como conceder títulos aqueles que são estudados ou ricos, como os importantes tenentes e coronéis que permeiam a obra, o Capitão Pelino (gramático), dentre outros; e também ao título de “sábio” (BARRETO, 1993, p. 88) para aquele alguém instruído que fosse caridoso ou tivesse bom caráter, como no caso de Raimundo Flamel.

Ainda há o elemento fantástico do onírico, representado pelo sonho insano da população de Tubiacanga, que na ânsia de fazer ouro com os ossos dos defuntos, agiram como animais selvagens; mostrando a transmutação de seres humanos em criaturas mesquinhas, vis, movidas sordidamente pela ganância, como “Cora, com seus lindos dedos de alabastro, revolvia a carne das sepulturas, arrancava as carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia...” (BARRETO, 1993, p. 98). Toda a população cega pela desinteligência chega a ponto de matarem-se uns aos outros.

O conto faz uma profunda crítica ao sucesso e a sordidez do ser humano, em que as pessoas fazem de tudo para conseguir enriquecer facilmente, praticamente, uma piada mórbida contra a selvageria do capitalismo.

Após tomar ciência sobre o que trata o texto de Lima Barreto e suas principais características, é que se pretende abordar as teorias postuladas por Stuart Hall. Vale ressaltar, que antes é necessário saber quem é esse teórico e quanto sua teoria tem validade dentro do conto em questão.

Stuart Hall é um teórico cultural jamaicano, nascido em 1932 e que desenvolveu grande parte do seu trabalho no Reino Unido. Seu trabalho tem contribuído grandemente para o desenvolvimento dos estudos culturais na contemporaneidade e versam sobre hegemonia, teoria da recepção, discurso midiático, construção e desconstrução da identidade, diáspora, multiculturalismo, dentre outros assuntos que trata.

Em sua obra, A identidade cultural na Pós-Modernidade (2003, 102p), Stuart Hall conceitua o que vem a ser identidade cultural, tenta verificar porque se comenta sobre a crise desta identidade e o que seria essa crise e para onde estaria se dirigindo na época pós-moderna. Para tentar constatar tais fatos, estuda o processo de fragmentação do indivíduo moderno ressaltando do aparecimento de novas identidades, sujeitas neste momento ao plano histórico, político, representativo e diferencial.

A preocupação de Stuart Hall também se ocupa para o modo como foi alterada a percepção de como seria entendida a identidade cultural. Todos esses aspectos constituem-se como fases de um procedimento analítico que visa descrever o processo de deslocamento das estruturas tradicionais ocorrido nas sociedades modernas, assim como o descentramento dos quadros de referências que uniam o indivíduo ao seu mundo social e cultural. Tais mudanças teriam sido ocasionadas, na contemporaneidade, pelo processo de globalização.

A globalização modificaria as noções temporais e espaciais, desalojaria o sistema social e as estruturas fixas e possibilitaria o surgimento de uma pluralização dos centros de exercício de poder. Quanto ao descentramento dos sistemas referenciais, Stuart Hall constata que seus efeitos nas identidades modernas, ressaltando as identidades nacionais, ao observar o que gerou, quais as formas e quais as consequências da crise dos paradigmas do término do século XX. Portanto, pode-se separar o estudo da obra de Stuart Hall, através dos seis capítulos (ou seis partes) que constituem A identidade cultural na Pós-Modernidade: o primeiro trata sobre a identidade em questão, o segundo sobre o nascimento e a morte do sujeito moderno, mostrando o descentramento do sujeito como o responsável pelo surgimento de identidades mutantes, inacabadas e até contraditórias; o terceiro versa sobre as culturas nacionais como comunidades imaginadas, ao analisar as identidades nacionais como possibilidades de unificação e homogeneização; o quarto apresenta a questão da globalização e as possíveis tensões entre o “global” e o “local” na modificação das identidades; o quinto analisa os efeitos da globalização sobre as identidades e indica ainda a possibilidade desta de produzir novas formas de identificações globais e locais; e o sexto e último faz uma breve abordagem sobre fundamentalismo, diáspora e hibridismo.

No primeiro capítulo (2003, p.07-22), em particular, conforme Stuart Hall, as “velhas identidades”, que durante muito tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo com que apareçam novas identidades e consequentemente, a fragmentação do individuo. Nesta primeira parte, o autor apresenta as mudanças que vem acontecendo nos conceitos de identidade e de sujeito. Para Stuart Hall (2003, p. 08-11), a identidade cultural do indivíduo surge do mesmo pertencer a uma série de culturas, que englobam etnia, raça, língua, religião e nacionalidade, sendo passível de três formas de concepção: a primeira faz referência ao sujeito do Iluminismo, marcado como um indivíduo centrado, racional e individualista; a segunda seria a do sujeito sociológico, que surge no século XIX e reflete o crescente grau de complexidade que se insere no mundo moderno e a necessidade das relações de alteridade para o entendimento do núcleo interior de cada ser; e a terceira concepção, seria a do sujeito pós-moderno, marcado como sujeito sem identidade fixa, fragmentado e em constante alternância com os sistemas culturais.

Segundo o autor, ao concluir sua obra, cada vez mais surgem identidades culturais que não são fixas, que estão em permanente processo de transição. Stuart Hall postula finalmente que, embora alimentada sob muitos aspectos, a “globalização pode acabar sendo fonte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente” (2003, p. 97).

Já em sua obra Da diáspora – identidades e mediações culturais (2003, 434p), Stuart Hall reúne uma série de artigos em que analisa questões diaspóricas, multiculturalismo, conceito de etnias, pós-colonialismo, dentre outros assuntos que se embrenham pelos estudos culturais e, ao mesmo tempo, sempre acrescentando dados de suas experiências pessoais.

Inicialmente, e o que mais particularmente interessa a este artigo, é abordado o conceito de diáspora, palavra de origem judaica, que remete à mudança, deslocamento, descentralização, espalhamento. Para Stuart Hall (2003, p. 25-50), a diáspora é representada como parte do homem e responsável pela grande diversidade de identidades, pois o indivíduo que se desloca numa situação diaspórica, não o faz exatamente a passeio, como um turista ou alguém que decide mudar para local melhor, mas sim porque se vê obrigado a tal, sua cultura, sua experiência, toda a bagagem cultural que o sujeito carrega é contrastada por meio de outro local que se lhe impõe, fazendo com que o mesmo sofra novas mudanças em sua identidade. A situação forçada, que é a diáspora, colabora intensamente para o processo de miscigenação, em especial na América Latina, pois, conforme o autor, não existe uma identidade pura, mas um conjunto de identidades formadas pelo choque e deslocamento cultural do indivíduo. A diáspora é vista como “uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação” (HALL, 2003, p. 36)

Ainda nas primeiras partes de sua obra, Stuart Hall procura diferenciar os termos “multicultural” e “multiculturalismo”. O primeiro é designado como um adjetivo que serve para descrever características e problemas que ocorrem no seio das identidades dentro de certa sociedade. O segundo termo é classificado como um substantivo, que representa as estratégias variadas adotadas para a administração de uma sociedade de caráter múltiplo. De acordo com o teórico jamaicano, a identidade se constitui de hibridismo e como resultado de várias situações de choque.

Num segundo momento, Stuart Hall analisa as fragilidades e as limitações das sociedades perante o colonialismo e o legado deixado no pós-colonialismo. Em sua concepção, os colonizadores tentaram colocar os colonizados dentro de uma moldura, sem respeitar as diferentes individualidades, pois a diversidade funcionava como pretexto para impor valores e costumes culturais, o que levou durante muito tempo a história ser contada apenas pelo ponto de vista do colonizador.

Na próxima unidade, o autor aborda especificamente a cultura negra e a figura do homem negro, e salienta que tanto o modernismo como o pós-modernismo não deram conta de abarcar essa cultura, que para muitos outros teóricos, ainda é vista meramente como cultura popular, de massa, desprovida de valores. Mas, segundo seu parecer, é a cultura popular responsável, mesmo que de forma contraditória, pela forma dominante e histórica da cultural global.

Por fim, a última parte da obra consiste numa entrevista de Stuart Hall, em que ele aborda as mais diversas questões que fazem parte de suas pesquisas e também dá exemplos tirados de sua própria vida. O autor encerra a entrevista enfatizando mais uma vez o hibridismo das identidades, da seguinte forma: "Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre hibrida. Mas é justamente por resultar de formações históricas específicas, de histórias e repertórios culturais da enunciação muito específicos, que ela pode constituir um “posicionamento”, ao qual podemos chamar provisoriamente de identidade". (HALL, 2003, p. 432-3).

Após breve entendimento sobre o que versam duas das principais obras de Stuart Hall, cabe, a partir deste instante, estabelecer um paralelo entre tais teorias e o conto “A nova Califórnia” de Lima Barreto.

Antes de tudo, são perceptíveis certos traços dos dois autores que se encontram na confluência do século XX: primeiro, pelo fato de ambos serem mestiços e terem sofrido “na pele” as marcas de um preconceito racial enraizado durante séculos no âmago das sociedades a que pertencem; o segundo traço consiste no caráter subversivo e revolucionário dos dois autores que, por meio de seus escritos, literários ou teóricos, conseguiram imortalizar muito do que sentiram e presenciaram; terceiro traço, que se adéqua às discussões e debates na disciplina O discurso crítico na América Latina, é o fato de ambos serem latinos e por fim, de uma forma ou de outra, ligados ao grande movimento que foi o modernismo (pré, suas fases e pós).

Em “A nova Califórnia”, a figura de Raimundo Flamel configura primordialmente a imagem do ser híbrido, dual, próprio do indivíduo sociológico, postulado por Stuart Hall, que precisa da interação com o outro para a construção da sua identidade. Ele pode ser tanto o indivíduo que está à procura do eu, que se utiliza do deslocamento para uma cidade pequena a fim de dar conta de importantes descobertas que poderiam mudar o rumo dos sistemas sociais, como o fabrico do ouro e o enriquecimento fácil, ligados aos desejos consumistas propiciados pelo capitalismo e sua forma desenfreada de poderio. Tanto que, durante um bom percalço do conto, não temos a identidade de Raimundo Flamel construída por ele, mas pelas pessoas que confabulam a respeito do seu caráter, da sua pessoa; suas atitudes e conduta diante da sociedade que acabam por fornecer o padrão que caracteriza o sujeito generoso, íntegro. São as descrições sobre o personagem que o fazem conhecido, sua identidade é construída da imagem que passa aos outros e a forma como eles a captam e a apreendem.

Além desse sujeito sociológico também é possível ver em Raimundo Flamel, a figura do colonizador, que sempre chega ao povoado envolvido numa aura de mistério, dissipada depois da constatação da mansuetude do seu caráter e da gentileza com que trata as pessoas, a primeira vista. Após isso, tenta alcançar o benefício e atrair apenas para a satisfação do seu objetivo de destacar-se na ciência; existe a promessa e o crédito em ser uma das pessoas importantes a quem ele permite presenciar a experiência. Depois de alcançar sua meta, parte, sem preocupar-se com as consequências dos seus atos, exatamente como grande parte dos colonizadores, que tentam extrair tanto quanto podem das terras em que se instalam, e logo após conseguir suas metas, abandonam o local e os que ali ficaram imersos na condição de colonizados. Portanto, um dos tópicos que se pode concluir sobre esse conto de Lima Barreto é que enquanto Tubiacanga serviu para Raimundo Flamel, ele ali instalou residência, quando atingiu seu objetivo ele partiu em busca de novos rumos, que contribuiriam para a consolidação da sua identidade na obra.

Essas duas caracterizações para o personagem de Raimundo Flamel se adéquam ao que Beatriz Helena Furlanetto (2008, p. 238) postula:

"A representação da identidade ocorre na intersecção que se estabelece na condição de homem, entre sua posição de ser produtor e ser produzido em uma realidade social. Tomada como uma síntese de múltiplas identificações ou um lugar sócio-cultural, a identidade pode ser considerada como identidade pessoal e identidade social".

Também ocorre transmutação na identidade dos habitantes de Tubiacanga, de pessoas pacatas do interior (“Tubiacanga era uma pequena cidade do interior de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica...” – BARRETO, 1993, p. 94) a criaturas enlouquecidas pela sede de poder (“A desinteligência não tardou a surgir, os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos” – BARRETO, 1993, p. 99). Tal mudança no comportamento dos residentes da cidade faz com que se verifique que, o homem, diante de uma situação extrema, coloca tudo o que tem como sua identidade formada, construída, em choque, em conflito. De certa forma, isso remete a um trecho do poema “Versos íntimos”, de Augusto dos Anjos, poeta contemporâneo de Lima Barreto, que diz: “O homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera” (2001, p. 61). Isso explica, porque a população tomada pela mesma ganância que atingiu os três participantes da experiência de Raimundo Flamel, parte, num ato de cupidez e desatino, à exploração massiva do cemitério.

Essa situação extrema em que a identidade individual e até mesmo a social é colocada à prova corrobora o que Stuart Hall (2003, p. 142) define por cultura: "[...] Como os sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições de existência e respondem a estas; e também como as tradições e práticas vividas através das quais “entendimentos” são expressos e nos quais estão incorporados”.

Percebe-se essa construção cultural no momento em que Lima Barreto expõe os pensamentos que leva cada um dos habitantes a invadir o cemitério, em busca dos ossos que serviriam como matéria-prima para a fabricação do ouro: o carteiro quer formar o filho, o escrivão precisa de recursos para construir um muro a fim de proteger sua horta e suas criações, o sitiante sonha com mais pasto e mais gado, a jovem Cora idealiza o dote que poderá lhe trazer um bom pretendente; enfim, todos têm motivos enraizados em seu interior, para de uma postura cultural anterior totalmente contrária à invasão do cemitério e a profanação dos túmulos, mudar para o desejo pelo ouro em prol de um padrão de vida melhor. Embora não seja uma mudança de lugar, tal mudança de comportamento pode ser caracterizada como diaspórica, por ir de um extremo a outro, e mexer com o que há de mais íntimo no ser humano, que é a ideologia a que cada pessoa segue desde a criação. É um total deslocamento, descentramento de personagens que levavam uma vida pacata e frugal para o desespero em tornar-se abastados de forma supostamente fácil.

Assim, muitas vezes, também é possível representar a situação do colonizado, deslumbrado diante das inovações trazidas pelo colonizador. É possível até mesmo estabelecer o conceito de colonizador, zona de contato (ou entre-lugar, ou ainda mediador) e colonizador postulados por Stuart Hall ao conto de Lima Barreto. Raimundo Flamel, como já mencionado é o colonizador; os mediadores são os três participantes da experiência, testemunhas oculares e que servem como elo de ligação para o colonizador alcançar o seu objetivo de registrar a patente, e para o povo, que os pressiona em busca do que eles ainda não possuem; e a população de Tubiacanga, encaixa-se perfeitamente à condição de colonizados, tendo suas identidades sociais totalmente alteradas pelo contato do colonizador; o colonizado almeja alcançar o que é do colonizador, ou seja, na obra, todos querem desfrutar da mística experiência da fabricação do ouro, para tanto, perdem a dignidade, o respeito, a própria individualidade para se tornarem seres abjetos, consumidos pelo que veio de fora pra dentro.

Em “A Nova Califórnia”, portanto, o colonizador Raimundo Flamel parte da mesma forma como chegou, no mais profundo mistério, deixando o rastro das suas ligações intermediárias (as três testemunhas) para lidar com a insanidade e a ingenuidade dos colonizados de Tubiacanga. O farmacêutico Bastos também é outro indivíduo que, na obra, é obrigado a se deslocar, fugir, para salvar a própria vida e desfrutar do ouro de que se havia apropriado. Bastos não pretendia mudar de Tubiacanga, pelo menos, não naquele exato momento, ou enquanto houvesse ossos que fornecessem material para a aquisição da sua riqueza pessoal. Logicamente, que mesmo sua situação sendo totalmente diaspórica, não torna irrelevante o fato de que, para conseguir realizar a sua mudança, foi preciso um ardil, como o de enganar as pessoas ao prometer-lhes que faria ouro, pois enquanto estas iam atrás do material, o farmacêutico fugia, rompendo o compromisso estabelecido. A partir do momento, em que, o mediador aceita participar do mundo do colonizador, o seu mundo de colonizado muitas vezes perde o sentido em detrimento do primeiro, e foi o que aconteceu com Bastos e os dois militares presentes à experiência.

Tal fato leva a crer que, o indivíduo sociológico da época em questão (início do século XX), por mais que baseie a construção da sua identidade pela alteridade, essa construção social sempre ficará em segundo plano quando se tratar da valorização do individual. Tal postura, é o que posteriormente, contribuirá para que o sujeito que chegue a pós-modernidade se torne fragmentário, pois além de carregar os estigmas da individualidade e do social dentro de si, estes estarão ainda mais divididos em outras parcelas do ser humano, que já não é puro, não é uno.

As três situações diaspóricas relatadas: a ida e a partida de Raimundo Flamel (o colonizador), a fuga do farmacêutico Bastos (o mediador, o colonizado que já não pode mais, por uma série de motivos, continuar na sua terra de origem), e a mudança de postura, ideologia e caráter da população de Tubiacanga (os colonizados frente às experiências deixadas pelo colonizador, que embora grandiosas, resultaram em desastre), levam, por fim, ao único personagem que não sofre alteração identitária: o bêbado Belmiro, que foi a “única pessoa (que) lá não estivera, nem profanara sepulturas [...]. Ele e o rio indiferentes ao que já viram, ao que viam” (BARRETO, 1993, p. 99)

A figura de Belmiro remete a um terceiro tipo de colonizado, aquele que é indiferente às mudanças que acontece à sua volta, talvez o alienado, o diferente, ou simplesmente aquele que percebe de longe, sem se intrometer nos grandes debates e movimentos que atingem a turba social, ou ainda aquele que é destituído de voz na sociedade, o indivíduo que está à margem dela, e que, no final, será a única testemunha que restará na construção de uma identidade sociológica. Um exemplo similar, e talvez relacionado um pouco com a história de vida de Lima Barreto (o mestiço e alcoólatra autor literário) e de Stuart Hall (também mestiço, vivendo no país do colonizador e teorizando sobre os estudos culturais), é que, ambos, com descendência africana, também registraram e sentiram na pele o que é ser um individuo a margem da sociedade, como o negro foi duramente tratado na América Latina e ainda mais, o mestiço, que no Brasil, pós-escravidão, não era considerado nem uma coisa nem outra, algo como um pária social, exatamente como são tratados os bêbados, e mais especificamente, o personagem do próprio Lima Barreto, Belmiro.

Como consideração final é pertinente salientar que, o conto “A nova Califórnia”, neste artigo, foi analisado de acordo com alguns dos pressupostos da teoria proposta por Stuart Hall, mas sem, contudo, explorá-la mais detalhadamente, o que acarretaria numa pesquisa deveras extensa, observando-se a riqueza tanto da teoria quanto do conto em questão. Espera-se que esta análise tenha cumprido seu papel de fornecer um pouco de luz aos estudos culturais relacionados com a literatura, ao resgatar um texto no início do século XX em que as teorias pós-modernas/contemporâneas podem ser perfeitamente passíveis de aplicação, por conta da riqueza de elementos que Lima Barreto deixou como legado para a posteridade.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto do. Versos íntimos. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 61.

BARRETO, Lima. A nova Califórnia e outros contos. Rio de Janeiro: Revan, 1993, p. 87-99.

FURLANETTO, Beatriz Helena. Múltiplas identidades na pós-modernidade – Uma polifonia em construção. In: II SIMPÓSIO DE VIOLÃO DA EMBAP. 2008. Curitiba. Anais... Curitiba: EMBAP, 2008, p. 236-47.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. 8ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

__________. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Trad. Adelaide Resende et al. Belo Horizonte: UFMG, Brasília: Rep. UNESCO no Brasil, 2003.

SANTOS, Sonia Regina dos. Das identidades como formações históricas: uma resenha da obra de Stuart Hall. Revista Teias. Rio de Janeiro: UERJ, ano 5, n. 9-10, jan/dez 2004, p. 1-4.

TERRA, Ernani; NICOLA, José de. Gramática, literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1997.

Ana Claudia Brida
Enviado por Ana Claudia Brida em 13/07/2010
Código do texto: T2375139
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