DESENGANO DOS PECADORES - uma crítica social de 1735

Na literatura homilética do Brasil colonial, geralmente, apenas se destacam os sermões do padre Antônio Vieira. Pela ênfase dada à obra de Vieira, esquecem-se talvez outros escritos do mesmo gênero. Por exemplo, tenho em minhas mãos a 3a. impressão da obra do jesuíta padre Alexandre Perier, "Desengano dos Pecadores", impressa em Lisboa em 1735, e dedicada a Dom Manoel, Infante de Portugal. O livro de Perier, que estava pronto para impressão em 1711, compõe-se de 14 discursos, frutos de sua atividade missionária no Brasil, ao final do século XVII e inícios do século XVIII. O padre Perier era natural de Turim, Itália, mas cedo entrou na Ordem dos Jesuítas, e, durante algumas décadas, coordenou as missões dessa ordem religiosa no Nordeste brasileiro. Pouco se conhece da biografia desse padre, mas seus discursos revelam um espírito ardente. No meu entender, o "Desengano dos Pecadores" mereceria um destaque maior na literatura luso-brasileira do período colonial.

Os discursos de Perier refletem a imagem do mundo daquela época e intentam afastar os homens de seus vícios. Tomando em consideração que o livro de Perier foi publicado poucas décadas antes da expulsão dos jesuítas do Brasil, sob argumentos que os taxavam de malfeitores do Reino de Portugal e, considerando que alguns historiadores ainda hoje legitimam a atitude do Marquês de Pombal, aceitando seus pseudo-argumentos, anulando a importância da obra civilizadora dos "filhos" de Inácio de Loyola no Novo Mundo, chamou-me a atenção a preocupação social de Perier em seus discursos. Diante desta pregação, pergunto-me se a história, porventura, não menosprezou, até hoje, um dos prováveis motivos que levaram o Marquês de Pombal a banir os jesuítas das terras portuguesas: a pregação jesuítica contra a opressão tirânica aos escravos. O que naturalmente conflitava com os interesses e o modo de vida dos poderosos. Especialmente no Discurso X, o padre Perier faz críticas violentas aos tiranos que maltratam seus escravos, e lhes aponta o mais profundo dos infernos como seu lugar na outra vida. Assim terão pregado outros jesuítas sob as ordens do padre Perier. Tais discursos não podiam deixar de acirrar os ânimos dos poderosos contra alguns jesuítas. E o lobby de interesses junto a Pombal poderá ter influenciado o ministro de Dom José I a querer se livrar do entrave que os jesuítas significavam para a continuidade de sua política exploradora nas colônias.

Para exemplificar a pregação social do padre Alexandre Perier, transcreverei algumas passagens de seu X Discurso, citando-as do livro "Desengano dos Pecadores", de 1735. Diz Perier: "Eu aqui movido de compaixão, e zelo, me sinto inspirado a advertir algumas causas sobre a tirania, e mau tratamento, que no Brasil, e em outras conquistas do Reino de Portugal, se usa com os escravos. Oh quantos senhores de engenho, feitores mores e lavradores de fazendas estão no inferno pela crueldade, e mau trato, que têm dado aos seus escravos! Primeiramente não lhes dão outro vestido, mais que aquele, que tem Cristo crucificado na c ruz, nem modo, nem tempo para o ganhar. Querem cada dia dele o serviço completo, e às vezes sobre as forças, e em faltando, açoites sobre açoites, e não lhes dão o sustento, para terem forças para trabalharem. Dizem que lhes dão o domingo livre para plantarem o seu milho, para se sustentarem, e enquanto o milho se planta, nasce e cresce, que hão eles de comer? E se Deus ordena que o domingo se guarde, e não se trabalhe, com que consciência sois causa de que eles trabalhem... Os escravos, que trabalham toda semana com tanto vigor, quando hão de descansar?... Muito mais é castigarem... as escravas... porque não querem consentir no pecado... Basta que a pobrezinha de uma escrava, porque vos teme, há-de padecer, e chorar a sua miséria; e o senhor, que injustamente a castiga, há-de rir... Ah que Deus não dorme, nem permite que semelhantes tiranias durem por muito tempo". E Perier continua incriminando as crueldades e a tirania dos poderosos da terra, e incita-os a usarem de piedade e compaixão para com os cativos e servos. Admoesta os senhores de engenho e feitores a não maltratarem os escravos com injúrias e palavrões. Pois os escravos, que são nossos irmãos, "deploram a sua infeliz sorte de se verem mais aperreados entre a nação portuguesa, que é flor da cristandade, do que seriam entre os mouros de Berbéria. E é certo que na Berbéria se usa talvez de maior caridade assim no sustento como nas enfermidades dos escravos..." Perier compara a situação dos escravos à parábola do rico e do pobre Lázaro, narrada nos Evangelhos. E lembra aos senhores de engenho que um dia a sua tirania, suas crueldades, falta de compaixão e iras descarregadas sobre os pobres e indefesos escravos serão julgadas pelo justo juiz, que aplicará as devidas penas.

A pregação do padre Perier é pouco conhecida, pois o seu livro "Desengano dos Pecadores" é raríssimo, e não tenho notícia de reedições posteriores. Prova, no entanto, que antes da expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, havia uma pregação social contestadora por parte de alguns membros da Ordem. E isso era um espinho na carne de muitos poderosos senhores escravocratas, e adeptos da continuidade de uma colonização exploratória. Por isso, levanto uma hipótese, que talvez pudesse ser mais testada pelos historiadores, no sentido de examinarem até que ponto a pregação social dos jesuítas da época motivou a sua expulsão do Brasil, e, finalmente, a extinção da Ordem no séc.XVIII. Por outro lado, o Discurso X do padre Perier nos mostra que os nossos donos de escravos não foram tão bonzinhos, como muitas vezes se tentou ensinar. Será que a tirania, a insensibilidade das elites de ontem não explicam um pouco a dramaticidade da situação social em que se encontra parte da população brasileira de hoje, diante da qual muitos em nossas elites permanecem totalmente insensíveis?

Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife/PE