Saramago

“Temos a arte para não morrermos da verdade.”

Nietzsche

Cada obra que li de Saramago foi uma viagem de múltiplos destinos e em todos encontrei um fio condutor que o tornou único. O que o incomodava mais era a banalidade, a ilusão de que o mundo não pudesse ser outro. Escrever era para ele uma necessidade, literária e política, existencial e ética. Inevitavelmente teria que ser polémico, a desconstrução do modelo civilizacional era possível pela palavra, um instrumento eficaz de denúncia quando se ascende aos patamares mais altos da interpelação do humano, demasiado humano. O pessimismo ou mesmo o niilismo não bloqueiam nenhuma esperança, antes despertam o pensamento, com humor e lucidez, a questionar o que a tradição tornou estável e anestesiado. É dos poucos escritores onde a ficção e a realidade ganham contornos de interpelação recíproca, permitindo à luminosidade do que é dito o pretexto para um fulgor algo inesperado do que ainda pode ser dito mais além. A sua escrita assume um diálogo trágico para que cada um se reencontre numa espécie de exigência máxima de estar vivo. Daí uma literatura de vínculo político, de empenhamento, de valorização do homem enquanto cidadão determinado por ideais e convicções. Saramago nunca recuou, enfrentando a anomia colectiva e os poderes imanentes, impondo, contra o cânone – sejam eles quais forem - uma visão inovadora que em muito liquefaz, ou para isso contribui, a pacificação cómoda de uma ordem institucional estabelecida. A literatura, a arte em geral, pelo próprio contéudo representacional, não se limita a interpretar a realidade, mas a abrir fissuras experienciais que configuram a urgência de transformação. O discurso de José Saramago – contra as tentativas do “bom senso” e “senso comum” - deve permanecer num estádio de acontecimento conflitual que garanta a sua radicalidade.