A EVOLUÇÃO DO TRÁGICO: COMPARAÇÃO ENTRE AS OBRAS "ÉDIPO REI", DE SÓFOCLES, E "MACBETH", DE SHAKESPEARE
RESUMO: O objetivo do presente artigo é estabelecer, a partir do estudo da definição aristotélica de tragédia, as principais diferenças entre as obras "Édipo Rei", de Sófocles, e "Macbeth", de William Shakespeare. Também foram averiguadas as semelhanças, para, por fim, esboçar uma conclusão a respeito da peça shakespeariana, revelando se há inovações no modo de representação trágica.
UNITERMOS: Tragédia; teatro; Aristóteles; Sófocles; Shakespeare.
• Apresentação
Aristóteles, filósofo grego do século IV a.C., dedica parte de sua obra para definir as características fundamentais da arte poética, estabelecendo os conceitos básicos da mimese, comparando suas formas e meios de manifestação, além de dar especial atenção ao gênero trágico, dissertando sobre sua origem, seus elementos e suas partes estruturais. Caracteriza a poesia como a imitação de ações de seres superiores, inferiores ou iguais aos demais, sendo que cada tipo de imitação designava um gênero diferente. Na poesia, o homem representa aquilo que “poderia ser” e não aquilo que realmente é, respeitando sempre os limites estabelecidos pela verossimilhança – as ações devem existir e ter coesão dentro da própria obra, mesmo que não faça parte da realidade em questão. No que diz respeito à arte trágica, ressalta que seu surgimento pode estar relacionado com o conflito entre o mundo mítico e o mundo racional da Grécia do século V a.C. O mundo grego vivia sob os preceitos da religião olímpica, repleta de deuses e com um destino imutável, o que foi amplamente incorporado à tragédia grega. Sófocles (V a.C.) foi um de seus mais importantes teatrólogos, suas peças se baseavam na impossibilidade de se evitar a dor, e, por isso, apresentou personagens em extrema agonia e amargura. Uma de suas mais importantes peças é "Édipo Rei" (427 a.C.), uma tragédia que se passa na cidade de Tebas, e que conta a história de Édipo, um homem condenado pelo próprio destino, e que, por desconhecer a verdade sobre si mesmo, comete os piores dos crimes e é punido por isso. Essa peça é tida por Aristóteles como a mais perfeita representação do modelo trágico. Com o passar do tempo, a tragédia foi sofrendo grandes transformações, distinguindo-se por completo do modelo exaltado por Aristóteles. Durante o período elisabetano, na Inglaterra do século XVI, o maneirismo teve grande influência sobre a área artística, colocando o paradoxo existencial como tema central das peças trágicas. Shakespeare foi seu maior expoente, apresentando personagens de maldade maquiavélica, carregados de esperteza e astúcia. Uma de suas mais famosas tragédias é "Macbeth" (1603-1606), que retrata um cenário de ambições frustradas e de ganância, narrando a história de um homem que despreza todo e qualquer valor moral e social para alcançar o posto de rei. Tendo como base de análise a definição aristotélica de tragédia, o presente artigo se propôs a averiguar as principais diferenças entre as peças citadas, explicando como os elementos trágicos se apresentam, para, por fim, revelar se há inovações na obra trágica shakespeariana.
• As partes da tragédia e suas manifestações em "Édipo Rei" e em "Macbeth"
De acordo com Aristóteles, uma peça trágica consiste na representação de uma ação grave, completa e de alguma extensão, que imita os homens de caráter superior, e é composta por partes essenciais – hybris, phatos, ananké, reconhecimento, peripécia, catástrofe e catarse, que têm como finalidade suscitar no público o terror e a piedade.
Hybris
A hybris é definida como o sentimento capaz de conduzir o herói trágico à violação da ordem, seja ela social, política ou divina; é o orgulho desmedido que o faz desafiar as leis morais vigentes e as regras instituídas pelos deuses a todos os mortais. Cometer a hybris é cometer um ato que busca ultrapassar o limite humano na tentativa de atingir o universo dos deuses. Em "Édipo Rei", de Sófocles, a transgressão desse limite ocorre no momento em que Édipo tenta ludibriar os deuses para fugir do seu destino – assassinar seu verdadeiro pai, e casar com sua própria mãe. Acreditando poder controlar todos os seus passos, ele sai em busca de um destino diferente, não dando ouvidos às profecias do oráculo e interpretando-as à sua maneira, julgando-se acima dos deuses:
ÉDIPO:
Fui em sigilo a Delfos, de onde - flâmeo -
Foibos, sem dar-me o prêmio da resposta,
me despediu, mas, num lampejo, disse-me
o que previa: miséria, dor, desastre.
Faria sexo com minha própria mãe,
Gerando prole horrível de se ver;
Seria o algoz do meu progenitor.
Ouvi, fugi da pátria; mensurava
pelo estelário o quanto ela distava.
Queria achar um canto onde não visse
Cumprir-se a infâmia desse mau oráculo. [...]
(ÉDIPO REI, v. 786-796)
A cena em que Édipo foge de Corinto após ser alertado pelo oráculo das coisas que aconteceriam em seu futuro, é a que desencadeia sua hybris, pois é na tentativa de evitar que seu destino se cumpra que ele passa a se considerar o detentor de toda a verdade e único responsável por seu futuro. Neste momento, seu orgulho passa a prevalecer sobre a razão e sobre a ordem, ultrapassando, assim, o limite humano.
Quanto a "Macbeth", na sociedade elisabetana não há deuses nem o destino cego, há um único deus criador de tudo e todos, mas que deu ao homem o livre arbítrio. A ordem existente consiste numa estratificada hierarquia, formada de divisões sociais por meio das quais cada indivíduo tem sua posição estabelecida, pois tudo tem seu lugar no universo; caso essa ordem seja rompida, de alguma maneira ela deve ser restabelecida. Em "Macbeth" há uma violação dessa ordem hierárquica, desfeita pelo desejo exacerbado de Macbeth pelo poder – que é facilmente reconhecido na carta que ele manda a sua esposa, Lady Macbeth, quinta cena do primeiro ato, na qual ele conta a predição das bruxas sobre o seu futuro promissor, despertando um desejo incontrolável por um poder ainda maior:
LADY MACBETH: "They met me in the day of success, and
I have learned by the perfectest report they have more in
them than mortal knowledge. When I burned in desire to
question them further, they made themselves air, into
which they vanished. Whiles I stood rapt in the wonder of it.
came missives from the king, who all-hailed me 'Thane of
Cawdor,' by which title, before, these weird sisters saluted
me, and referred me to the coming on of time with 'Hail,
king that shalt be!' This have I thought good to deliver thee,
my dearest partner of greatness, that thou might’st not lose the
dues of rejoicing, by being ignorant of what greatness is
promised thee. Lay it to thy heart, and farewell."
(MACBETH, I, v, 1-12)
Quando mata o rei para ocupar seu lugar, movido pelo sentimento de ambição e poder, seguindo seus instintos mais primitivos e negando as leis dos homens e de Deus, Macbeth vive sua hybris, pois ele não só comete um assassinato, mas também desfaz a harmonia do universo. Assim, enquanto "Édipo Rei" reflete o mundo grego antigo, repleto de deuses e com um destino imutável, "Macbeth" representa o mundo elisabetano, fundamentado numa sociedade hierárquica e com um só deus no topo. Portanto, a definição aristotélica de hybris não está presente na obra de Shakespeare do mesmo modo que está na peça de Sófocles, mas seria errôneo dizer que ela é inexistente, pois ela somente se transformou, adequando-se ao contexto elisabetano.
Pathos
Pathos representa todo o sofrimento e a amargura que o herói vive em decorrência de suas ações desmedidas, ou seja, sua hybris. Atua como uma espécie de punição por desafiar as leis divinas, fazendo-o dar-se conta de sua posição inferior diante do destino, e sofrer as conseqüências de todos os erros. Em "Édipo Rei", Édipo sofre diante de seu destino incerto, que, conforme vai se revelando, vai lhe causando ainda mais dor e angústia. Desde que é alertado pelo Oráculo sobre seu futuro, vive atormentado por saber que um dia mataria o pai e se casaria com a própria mãe; mas, mesmo lutando constantemente para fugir desse destino, sempre teme que ele se concretize:
ÉDIPO:
Aguardar o pastor, somente e só;
é o que me resta de Élpis – a esperança.
[...]
Ladrões mataram Laio, ele afirmou,
tu o disseste. Se confirmar o número
plural, concluo não ser o matador,
pois o um não pode ser igual a muitos.
Se mencionar um só viajante - um único -,
então a culpa incide sobre mim.
(ÉDIPO REI, v. 836-846)
Enquanto espera por uma resposta que revele tanto seu passado quanto seu destino, Édipo vive a amargura e o desespero que é causado diante do desconhecido, mas quando descobre que realmente poderia ter sido o assassino de Laio, vive intensamente sua phatos, que é causada pela descoberta e confirmação de sua total ignorância e de sua incapacidade diante dos deuses e do próprio destino.
Em "Macbeth", a pathos vivida pelo herói é resultado de suas próprias ações, pois no momento em que infringe a ordem hierárquica, ele atenta contra si mesmo, e sofre as conseqüências disso. Macbeth padece com suas ações desde o início da peça – quando decide matar o rei almejando ocupar seu lugar; no entanto, é depois de mandar matar Banquo que é tomado por uma crise de consciência, atormentado não apenas por seus pensamentos, mas também, pelo fantasma do inimigo, o que o faz perder toda a tranqüilidade e sofrer diversas alucinações:
[The Ghost of Banquo enters, and sits in Macbeth's place
[...]
MACBETH: The table's full.
LENNOX: Here is a place reserv'd, sir.
MACBETH: Where?
LENNOX: Here, my good lord. What is't that moves your
highness?
MACBETH: Which of you have done this?
LORDS: What, my good lord?
[...]
MACBETH: Prithee, see there! behold! look! lo! how say you?
Why, what care I? – If thou canst nod, speak too. –
If charnel houses and our graves must send
Those that we bury back, our monuments
Shall be the maws of kites. [Exit Ghost.
(MACBETH, III, iv, 46-73)
A visão do fantasma de Banquo é extremamente perturbadora para Macbeth, e evidencia que seu sofrimento não é causado pelo destino, mas por sua própria consciência, que passa a atormentá-lo após todos crimes. Logo, é possível notar que a pathos age de modo distinto em cada uma das peças: enquanto Édipo sofre diante do desconhecido, temendo que o destino se cumpra, Macbeth sofre com sua própria consciência, pois teme perder o controle de sua vida e das conseqüências de seus atos.
Ananké
Segundo a tradição grega, o destino está acima das vontades e dos atos de qualquer ser humano ou deus, não podendo ser modificado ou contestado. Ao nascer, o destino de cada homem já está traçado, e tentar modificá-lo, além de ser impraticável, é o mesmo que atentar contra a ordem divina, ludibriar os deuses em favor próprio, colocando-se no mesmo nível que eles. Em Sófocles, quando Édipo resolve modificar seu destino na busca de uma melhor fortuna, ele comete a hybris. No entanto, todos os seus atos só fizeram com que ele fosse cada vez mais de encontro com aquele destino que lhe fora traçado, não evitando a consequência trágica de suas ações:
ÉDIPO:
Tristeza! Tudo agora transparece!
Recebe, luz, meu derradeiro olhar!
De quem, com quem, a quem - sou triplo equívoco:
ao nascer, desposar-me, assassinar.
(ÉDIPO REI, v. 1182-1185)
A fala de Édipo relata exatamente o momento em que ele se dá conta de que o destino que lhe fora predito havia se cumprido, confirmando o fato de que não há meios de enganar os deuses, de fugir, de que o destino é sempre implacável.
Em Shakespeare, não há o destino soberano e implacável, existe apenas uma relação de causa e conseqüência devido às próprias ações, já que Deus deu aos homens o livre arbítrio. Macbeth é consciente de seus atos, e faz do seu livre arbítrio o meio para alcançar qualquer objetivo, mesmo que para isso tenha que infringir a ordem; sua ascensão ao poder é resultado de suas ações, assim como sua queda:
MACBETH. [...] I will to-morrow,
(And betimes I will) to the weird sisters:
More shall they speak; for now I am bent to know,
By the worst means, the worst.
For mine own good,
All causes shall give way: I am in blood
Step't in so far that, should I wade no more,
Returning were as tedious as go o'er:
Strange things I have in head, that will to hand;
Which must be acted ere they may be scann'd.
(MACBETH, III, iv, 130-140)
Na cena, Macbeth, atormentado pelo rumo que sua vida estava tomando, pretende sair à procura das bruxas para que elas lhe revelem algo que diminua seu tormento e responda a seus questionamentos, mas ele sabe que não é possível evitar sua queda, não se pode voltar atrás, e seguir em frente não é mais uma opção viável. Diferentemente do que sucede em "Édipo Rei", em Macbeth a queda do herói não ocorre como cumprimento do seu destino, mas como uma conseqüência de seus próprios atos, afastou-se da ética e das leis; divergindo do ideal trágico, no qual não importava as atitudes dos homens já que o final estava predeterminado, como é comprovado por Édipo.
Peripécia e Reconhecimento
Aristóteles ainda ressalta que existe um melhor tipo de representação trágica – a que se dá quando a peripécia e o reconhecimento ocorrem concomitantemente. O estagirita define o reconhecimento como o momento em que o herói sai de sua ignorância e conhece a verdade, provocando sempre uma situação de felicidade ou sofrimento; e a peripécia como uma alteração no rumo dos acontecimentos, mudando todo o curso da tragédia e provocando uma situação completamente oposta àquela esperada. Em "Édipo Rei", a peripécia ocorre como conseqüência do reconhecimento do herói no momento em que Édipo descobre não ter nenhuma ligação de sangue com aqueles que acreditava serem seus pais, percebendo que havia vivido na ignorância e que seus atos haviam sido vãos:
MESSAGEIRO
Não tinhas parentesco com Políbio.
[...]
Nem mais nem menos que este com quem falas.
ÉDIPO
Então devo concluir: ninguém me fez?
MENSAGEIRO
Nem ele te gerou, nem eu gerei.
[...]
Te recebi das mãos de outro pastor.
(ÉDIPO REI, v. 1016-1040)
Descobrir que não é filho dos reis de Corinto faz Édipo viver um momento de lucidez, desvendar a verdade sobre sua vida, seu reconhecimento. Em decorrência, ele vive sua peripécia, pois descobre que as coisas aconteceram de forma oposta àquela que ele buscou desde o inicio, e seu destino havia se cumprido.
Em "Macbeth", o reconhecimento e a peripécia ocorrem concomitantemente, pois no exato momento em que Macbeth se dá conta de que poderia ser derrotado e que seus atos haviam sido equivocados, ele também se encontra no caminho oposto àquele que ele buscava, indo de encontro à sua derrota:
MACBETH: Thou losest labour:
As easy mayst thou the intrenchant air
With thy keen sword impress, as make me bleed:
Let fall thy blade on vulnerable crests;
I bear a charmed life, which must not yield
To one of woman born.
MACDUFF: Despair thy charm,
And let the angel whom thou still hast served
Tell thee, Macduff was from his mother's womb
Untimely ripp'd.
(MACBETH, V, 7, 9-16)
Macbeth descobre que seus atos foram insuficientes, e que ele acabaria derrotado por seu maior inimigo. Ele esteve consciente durante toda a peça – cometer a hybris fora sempre seu propósito, no entanto, quando percebe que poderia ser derrotado, vive seu reconhecimento, dando-se conta dos próprios erros, distinguindo-se assim do reconhecimento de Aristóteles e de "Édipo Rei", já que Édipo comete sua hybris devido sua ignorância. No entanto, nas duas peças, o reconhecimento é o motivador da queda do herói.
Catástrofe
A catástrofe, desenlace trágico da peça em conseqüência da hybris e da ananké, culmina numa situação perniciosa e de extrema dor. Normalmente, resulta num ato de mutilação ou morte, decorrência do reconhecimento pelo herói de todos os erros e crimes cometidos. Em "Édipo Rei", quando Édipo toma consciência de sua desgraça, a existência humana torna-se insuportável, fazendo com que ele se conduza à mutilação:
ARAUTO
Ele arrancou das vestes de Jocasta
os fechos de ouro com que se adornava,
e, erguendo as mãos, o círculo dos olhos
golpeou. Gritava então que não veriam
o mal causado nem o mal sofrido,
mas no porvir-negro e veriam quem não
deviam, sem conhecer quem Ihes faltava.
Um hino funerário! E, abrindo as pálpebras,
golpeava repetidamente os olhos.
(ÉDIPO REI, v. 1016-1040)
O desenlace trágico da peça ocorre no momento em que Édipo, depois de descobrir que seu destino havia se cumprido, julga não merecedor da vida que levava em Tebas e, por isso, após o suicídio de sua mãe e esposa, usa o broche de sua túnica para arrancar os próprios olhos, pois, se antes ele era cego da verdade, agora ele o seria por completo.
Em "Macbeth", o herói sofre sua catástrofe quando se dá conta dos erros cometidos, punido por ter desfeito a ordem do Universo. Macbeth, diferentemente de Édipo, não realiza um ato de mutilação, mas a sua punição também ocorre no momento da morte de sua esposa, quando ele percebe que perdeu muito mais que uma mulher, perdeu quem motivava e dava razão para todas as suas realizações e conquistas:
SEYTON: The queen, my lord, is dead.
MACBETH: She should have died hereafter;
There would have been a time for such a word. –
Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day,
To the last syllable of recorded time;
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death.
(MACBETH, V, v, 16-23)
Nesse momento, Macbeth vive sua queda, pois percebe que não há mais propósito em nada, que seus atos não haviam sido suficientes para alcançar o que tanto almejara, fazendo com que a catástrofe de Shakespeare seja, de certa forma, distinta daquela definida por Aristóteles, pois não é o destino que pune o protagonista, mas, suas próprias atitudes, que resultam num final trágico para ele.
Catarse
A catarse pode ser entendida como a finalidade da peça trágica, o efeito de purificação das emoções e das paixões que pretende causar no público, inspirando o terror e a piedade. Esse efeito é alcançado fazendo recair sobre o herói uma desgraça da qual é merecedor por seus erros, mas que é passível de compaixão, pois são frutos do seu desconhecimento e do destino. Em "Édipo Rei", Édipo causa o terror no público por ter matado o pai e casado com a própria mãe; entretanto, também causa a compaixão, pois todos seus erros foram frutos do seu desconhecimento:
CORO
Terrível presenciar o teu sofrer!
De tudo quanto eu vi, o mais terrível.
Que delírio, infeliz, te atropelou?
Qual deus-demônio, de um só salto,
transpassa uma distância máxima,
impondo os pés sobre tua moira demoníaca?
Triste Édipo!
Se te encaro, esmoreço. E havia
tanto a inquirir,
tanto a saber,
tanto a sondar!
Tremor sem par em mim suscitas.
(ÉDIPO REI, v. 1297-1307)
No momento em que fura os próprios olhos e deixa a cidade, Édipo provoca a comiseração do público, que o condena por seus atos, mas o compreende diante de sua ignorância e sofrimento.
"Macbeth" tem como finalidade provocar no público uma reflexão sobre a sociedade e o papel de cada indivíduo dentro dela. Suas cenas são, por vezes, semelhantes a situações da realidade, pois se a classe social das personagens não condiz com às do público, não é preciso ser um rei para enfrentar situações de cobiça, raiva, perda etc. O público não enxerga apenas um general capaz dos atos mais cruéis para se tornar rei, mas enxerga alguém capaz de qualquer atitude para alcançar seus objetivos, a propensão que qualquer homem tem de se desvirtuar da moral e da ética para concretizar um anseio, o individualismo prevalecendo sobre o coletivo. A catarse ocorre no momento em que o público se dá conta da semelhança da peça com a sua própria realidade, despertando sua capacidade crítica sobre o ser humano e a sociedade em que vive. Por isso, a catarse de Shakespeare é distinta daquela apresentada em "Édipo Re"i, pois, enquanto este suscita o terror e piedade no seu público, "Macbeth" desperta o senso crítico e social, além de uma análise de consciência.
• Estrutura das peças
Aristóteles também dedica parte de sua obra para definir a estrutura da peça teatral, dividindo a tragédia em seis partes quantitativas que são de fundamental importância para constituir a mimese trágica Essas partes são o prólogo, os episódios, o êxodo, o canto coral e, somente em algumas, o kommós.
Na tragédia de Sófocles, essas partes são facilmente identificadas, já que foi a partir de "Édipo Rei" que Aristóteles definiu essa estrutura. A peça é dividida em prólogo – início da tragédia, quando Édipo, o sacerdote e Creonte conversam, revelando ao público o tema central da peça, a busca pelo assassinato de Laio para livrar Tebas da peste; em intervenções do coro – párodo; quatro estásimos; e kommós, sendo que os membros do coro representam a voz do povo tebano; em cinco episódios que revelam ao público o desenrolar da história; e no êxodo – desfecho trágico da peça, quando Édipo vive sua catástrofe.
A tragédia shakespeariana, "Macbeth", não pode ser dividida segundo as partes quantitativas definidas por Aristóteles, já que essa divisão se dá de acordo com a participação do coro, e este elemento está ausente na tragédia de Shakespeare. Desse modo, a peça é apenas dividida em atos, e estes, por sua vez, em cenas, numa divisão particular do autor, sem limites de episódios ou personagens – cinco atos que congregam um total de 27 cenas, distribuídas de maneira irregular; distinguindo-se por completo da peça trágica grega.
• Considerações Finais
Analisando os elementos da tragédia em cada uma das peças, é possível observar que, enquanto os elementos essenciais estão presentes, mesmo que de forma distinta, os elementos estruturais diferem por completo. Enquanto "Édipo Rei" é o modelo trágico grego a ser seguido, a tragédia de Shakespeare apresenta todos os elementos definidos por Aristóteles adequados ao contexto elisabetano, refletindo a sociedade inglesa do século XVII – uma sociedade hierárquica e monoteísta. O homem adquiriu o livre arbítrio, livrando-se do destino soberano e implacável; a sociedade se transformou, e também seus ideais e conceitos. Os elementos essenciais se transformaram no decorrer do tempo, alterando-se de acordo com a época em questão, fazendo com que a tragédia ganhasse uma nova feição, não contrariando aquela descrita por Aristóteles, mas modificando-a. Em "Macbeth" não ocorre uma eliminação dos elementos essenciais da tragédia, mas uma alteração no modo como eles são representados. No entanto, quanto ao aspecto estrutural, não se pode encontrar semelhança entre as peças, a não ser aquela que diz respeito ao verossímil, dando coesão aos fatos encenados. O principal motivo dessa alteração estrutural é a eliminação da participação do coro na tragédia de Shakespeare, pois nas tragédias gregas é o coro que serve como parâmetro para a divisão estrutural da peça; sem o coro, não há elementos estruturais fixos a serem seguidos, o autor realiza apenas uma divisão em atos e cenas, mas essa medida varia de acordo com o seu propósito, não há um modelo pré-fixado. Pode-se concluir que embora tenha sido empregada por Sófocles e tão aclamada por Aristóteles, a maneira como a idéia e o propósito do trágico são levados por Shakespeare ao público se modificou por completo. Desse modo, a inovação em Shakespeare ocorreu não apenas quanto a forma, mas também quanto sua capacidade de adequar os elementos essenciais da tragédia à realidade de sua época.
The Evolution of the Tragic: Comparison between the works Oedipus Rex, Sophocles, and Macbeth, Shakespeare
ABSTRACT: The objective of this paper is to establish the main differences between the plays Oedipus the King, of Sophocles, and Macbeth, of Shakespeare, based on the Aristotelian definition of tragedy. Were investigated the similarities and differences of them, to ultimately draw a conclusion about the Shakespearian play, revealing whether or not an innovation in the way of representation.
KEYWORDS: Tragedy, drama, Aristotle, Sophocles, Shakespeare.
• Referências bibliográficas
SHAKESPEARE, William. "Macbeth". London: Penguin, 1996.
ARISTÓTELES. "Poética". New York: Penguin Classics: 1996
BRERETON, Geoffrey. "Principles of Tragedy". A Rational Examination of the Tragic Concept in Life and Literature. Coral Gables, Florida: University of Miami Press: 1970
MCDONALD, Russ. "Shakespeare: An Anthology of Criticism and Theory" – 1945-2000. Maldem, MA: Backwell Publishing, 2004
VIEIRA, T. "Édipo Rei de Sófocles". São Paulo: Perspectiva, 2001.
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Artigo baseado no relatório do projeto de iniciação científica realizado no ano de 2008 - DANIELE FERANANDES NARDELLI - Universidade Estadual Paulista / UNESP. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas / IBILCE - Departamento de Letras Modernas (DLM). São José do Rio Preto - SP - Brasil. Orientador: Prof. Dr. Peter James Harris