Ser poeta
Ser poeta
É atentar-se aos mistérios envoltos por densa névoa, quando, em gentis orlados, aljofradas gotas se desprendem ante o sol da vida como o éter ao ar a embalsamar a atmosfera antevendo a ambigüidade imaterial deste boreal contato;
É poder sentir na epiderme a espiritualidade orvalhada pela natureza fleumática e ao mesmo tempo convulsa;
É assistir de perto a beleza de uma flor campesina abrolhar-se sobre a relva macia ciciadas pelos ventos da primavera e, ao aspirar o perfume das pétalas, ver-se em lágrimas regradas pelo bálsamo do criador, que por augusta benevolência, oferta gratuitamente este incomensurável frontispício mostrando todo o glamour a divinizar, mesmo em solo infértil, a sua onipresença;
É ser gratifico até pelas noites mais brunas, onde enrubescidas nuvens seguem-se tétricas aglomerando-se, como a um presságio apocalíptico a trazer consigo as tempestades e tufões a vergastarem moradias eriçando corpos e no funéreo distúrbio assistir eletrizado o esvoaçar dos coleópteros a luminar o breu entrecortado pelo relâmpago desnudo;
É reverenciar dos altos cerros o coruscarem das estrelas, quando entrecobertas ainda pelos véus periféricos e adjacentes, emoldurando-as com as risonhas faces, igual à flor de lótus a rebentar-se em pleno turbilhão existencial;
É sentir nas carnes desnervadas pela lâmina do sentimento e o gotejar sanguíneo das platônicas virulências a chagarem a alma já desfiada pelo desgosto, como as línguas de fogo a lamber o arco atmosférico e a lacerar a mil e um golpes o orbital blecaute instalando o caos perante o matiz da volatilidade permanente;
É aquiescer à lufada morna da discordância o eriçar dos sobrolhos acordando à ébria e difusa emoção do descontentamento do mais que querer não se sobrelevando às alturas da intemperança;
É deixar que o desmesurado amor se transborde e inunde a matéria já dúbia de esperança, mesmo que o oceano da amargura defraude o último suspiro;
É compactuar de perto o rol de amizade conciliando à irmandade do agora às clarividências da plácida essência do depois a divagar fantasmagoricamente entre as pradarias das ilusórias vaidades e, nos tristes ais, poder brindar do mesmo cálix o néctar da contrição;
É deixar a amada desperta sobre a relva macia e extenuada da consciência, e no borracho insaciável do sorriso, dividir face a face o leve oscular da brisa;
É exaurir-se na voluptuosidade insaciável dos desejos e na languidez da cumplicidade do olhar mitigar a bulimia que ora abraseia a paixão a aniquilar estremecida pela lassidão dos anseios compartilhados;
É crer nos filhos do agora e nos do porvir o supremo desejo de um mundo melhor, que dos alindados tetos à espavorida esperança, conceder o obséquio da reconstituição àqueles do hoje o milagre da continuação;
É entregar-se às ortografias do mundo e, na idiossincrasia da proeminência, derramar o virginal canto sem antecipar aos convivas o ato de quem ousa contestar sob o véu da ignorância o idílio inconteste;
É rimar-se à dança das palavras, sem ter que pedir licença poética aos aleivosos sofistas camuflados de bons samaritanos ou sequer se deixar agrilhoar pelos condões da falsa modéstia e, à sombra do latinismo, fazer das letras a própria canção;
É sentir na quintessência das harpas os acordes e notas a nortear os avanços da alma, assim como quem no ébrio o fogo do licor, o vinho, nos eflúvios e ressábios, à fronte, o gênio viria à flor dos lábios;
É ver na amada uma barda sublimada e, a um olhar negro, pressentir a noite esvaecer sobre a curvilínea silhueta banhando-se ao luar jambo com a promessa de Nostradamus e a proposta de Afrodite;
Enfim: é poder mergulhar em si mesmo e se reencontrar, até que os ônus dos eu-viventes obedeçam aos pentagramas da vida e, ao réquiem final, seja cumprido o altivo passamento: foi poeta, viveu e não se estremeceu ante o eterno Morfeu...