Augusto E Seus Anjos
Linguagem é a capacidade específica da espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos (ou língua), que investe numa técnica, por vezes complexa, e supõe a existência de uma função simbólica e de centros nervosos geneticamente especializados.
Linguagem é um sistema de signos vocais utilizado por um grupo social determinado, ou comunidade lingüística, que constitui uma língua particular. A linguagem (cada linguagem) é objeto de análises muito diversas, que implicam relações múltiplas: a relação entre o sujeito e a linguagem, domínio da psicolingüística, entre a linguagem e a sociedade, domínio da sociolingüística.
Há a relação da linguagem entre a função simbólica e o sistema que constitui a língua. Entre a língua como uma estrutura completa e as partes que a constituem; entre a língua como um sistema universal, e as línguas que se constituem em suas formas particulares; entre a língua particular como forma comum a um grupo social, e as diversas realizações dessa língua pelos falantes, sendo tudo isso o domínio da lingüística. Esses diversos domínios são, necessária e estreitamente, ligados uns aos outros.
Augusto dos Anjos usa uma linguagem, presumida por muitos críticos, de difícil e complexa interpretação, a exigir do leitor conhecimentos científicos multidisciplinares, e filosóficos. Apesar dessas supostas dificuldades, é um dos poetas brasileiros mais recitados nas escolas e nos ambientes aonde há representação de dramas e declamações.
A linguagem complexa não inibe seus declamadores de interpretá-lo musicalmente, desde que há um ritmo, uma sonoridade peculiar em sua poesia, que favorece sobremaneira a memorização de seus versos.
É um poeta que cultiva a negação, o pessimismo, o exótico, o esdrúxulo, o estranho, o mórbido. Ela, a poesia de Augusto dos Anjos, resiste ao tempo diacrônico da linguagem, às metamorfoses verificadas no tempo das sucessivas escolas literárias. Seu estilo atípico, continua relevante para a pesquisa de qualquer autor, em momentos posteriores à sua criação literária.
Por que sua perene "atualidade"? Porque é a própria vida que pulsa do coração dilacerado de um poeta que vê a vida, de maneira precoce, devastada em sua finalidade última, que é o pasto dos tapurus. O futuro da criança, do adolescente, do homem adulto ou do idoso, é o nada, mesmo que não haja atingido a maturidade de suas idéias, a excelência de suas potencialidades.
Quando a lagarta homem chega ao estado de borboleta, a natureza já está a prenunciar-lhe a finalidade trágica, por mais que seja pródiga a vida, da morte. As trevas, as sombras, a escuridão, a obscuridade, a fantasmagoria, o inusitado mistério de uma ilusória pós-vida: o fatalismo nadificador da morte. A sartreana "Náusea", enquanto ela não chega.
É nesse "leitmotiv" que a lamentação subterrânea da psique do homem, de sua angústia à Schopenhauer, se afirma. A repetição do discurso literário poético em seu versos niilistas, que rimam com a supremacia do mal e da morte, configuram uma certa obsessão do poeta na impossibilidade do homem manter a vida, as esperanças, e ficar ao abrigo de seus projetos de desenvolvimento físico e espiritual. O aniquilamento da vida se faz onipresente em seus poemas:
VOZES DE UM TÚMULO
Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fonema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!
Para Augusto dos Anjos as faculdades do homem, a disposição, o talento, as tendências, o engenho, a inteligência, a criatividade, mal começam a se manifestar, e já a morte está a cobrar seu dízimo medonho, fúnebre. Não apenas com relação ao homem que morre, mas à sua descendência. O primeiro verso do primeiro terceto sugere que as sementes do homem não morrerão. Mas é uma sugestão rápida, como se o morto sobrevivesse no ADN dos filhos, conforme o terceiro verso do segunto terceto:
VOZES DA MORTE
Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!
Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!
O homem, em verdade, não consegue sair do caos dos sentidos. Mal sai do abismo telúrico do útero materno para a infância, e já a puerilidade e a inocência são substituídas por uma demência de oposições do psiquismo, por antagonismos e refutações de significado dos sentidos que nutrem as resistências e as imperfeições, as abstrações contraditórias de seu psiquismo:
VÍTIMA DO DUALISMO
Ser miserável dentre os miseráveis
Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
e as mais opostas idiossincrasias!
Muito mais cedo do que imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!
Psique biforme, o Céu e o inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
A idéia do homem logo encontra oposição a uma existência que, apesar de todos os esforços, não se consegue afirmar, apesar de todo o esmero e vontade da consciência, na aquisição do conhecimento, a coerência e a harmonia não logram presença persistente, apesar do esforço, por vezes homérico, do homem em adquirir essas qualidades, sem as quais a vida é pouco mais que nada:
VERSOS A UM COVEIRO
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!
À força do pensamento tenta libertar-se. O coração e a mente metamorfoseiam-se em palavras... As idéias buscam inutilmente, através da aquisição da cultura, do desenvolvimento e do progresso da competência mental, atingir um nível adequado de espiritualidade que permita livrá-lo da noção de ser, ele mesmo, homem, habitante do cenário de seu realismo naturalista, que, não obstante a aquisição de sabedoria, de instrução superior e de civilidade, não logra encontrar nos símbolos, a palavra adequada, mágica, que o liberte de ser um prisioneiro limitado pelos sentidos que parecem querer lembrá-lo, a todo momento, de sua nadificação, de sua finitude:
VENCIDO
No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.
Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!
Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
À vontade do vômito plebeu...
E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.
A existência do poeta se afirma, apesar da cultura, no encadeamento mecânico do mundo subjetivo e material. As realizações não possuem a permanência que permita fazê-lo transcender, poupar-se do caminho da morte, negociar com a herança do código genético determinista da condição de decadência, declínio, derrota, extinção. De que lhe serviam as catedrais imensas de seu coração humano, "as vísceras imensas" versejadas pela poesia do modernismo de Drummond? De que poderia lhe valer a interpretação sensual do pecado original, do paraíso perdido, se os micróbios e a putrefação estavam a contaminar a alma do poeta, antes mesmo da separação do corpo? Que sonho poderia resistir à implacabilidade da aziaga? A forma vermicular, presente nas primeiras fases da escala zoológica, parecia zombar dos empreendimentos, da conquista de uma linguagem poética, da elementaríssima semente do húmus. A palavra, a poesia, seu uivo, seus berros, seus gritos. Tudo inútil, na tentativa de buscar um ideal de transcendência. A estrutura óssea exausta não consegue fornecer-lhe vida material. Ele, homem, como subtrair-se do determinismo de desaparecer por entre as migrações das larvas? Como transcender esse rudimentar desespero, essa contingência obsessiva, essa representação malsã, deletéria, mórbida, doentia?:
VANDALISMO
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
A linguagem usada por Augusto dos Anjos é a linguagem sugerida pelo "Anjo Torto" do modernismo drummoniano:?
""Vai Augusto, ser "gauche" pela vida""
Ela transcende o tempo sincrônico da linguagem datada dos movimentos poéticos. Seus elementos mais pertinentes superam o estágio sincronizado da poética de sua época. Está resumida num único livro EU, editado em 1912. Sua poesia não se enquadra nos parâmetros aceitos no movimento poético vigente, nem na denominação de pré-modernista.
Pessimista, niilista, ele destoa da tematização dos problemas nacionais, sociais, da denúncia crítica ao subdesenvolvimento dos autores contemporâneos, denominados do Pré-Modernismo. Ele destoa não apenas quanto à temática, mas por ser poeta num momento em que a prosa (romances, contos, crônicas, ensaios, artigos, reportagens, entre outros), eram a forma literária predominante.
Em sua obra, a temática é a humanidade, sua decadência, corrupção, insanidade, perversão. O movimento intuicionista ou irracionalista, os alemães denominaram "Lebensphilosophie" ("filosofia de vida"), cujos expoentes foram Schopenhauer e Nietzsche, influenciaram sobremaneira a visão de mundo ("mundividência") do poeta Augusto dos Anjos. Pode ser considerada uma "poesia existencial"
Nestor Vítor, que Sílvio Romero definiu "no gênero (Siombolismo), o mais complexo dos escritores brasileiros" afirmou de Nietzsche, uma das influências de Augusto dos Anjos: "Louco, embora sua loucura, entanto, é venerável. Nietzsche agora ficará no mundo como um olho rubro, sem pálpebras, a perseguir todos os comediantes com pretensões a serem tomados a sério, todas as fofidades, todas as falsas quantidades pretendentes à uma cotação"
Eximindo-se as radicais diferença entre as obras desses dois poetas, Augusto dos Anjos e Baudelaire versejam a miséria da corrupção da carne. Não há no poeta paraibano a presença do satanismo associado à putrefação. Nele, as forças da matéria conduzem ao mal e à nadificação, ao mal, à migalha, à patavina.
O estilo de ambos é sincrético. O âmbito poético de Augusto dos anjos e Baudelaire é o diálogo com as diversas concepções da arte. Um e outro adotam alguns aspectos e rejeitam outros, desse ou daquele movimento artístico. Do Parnasianismo AA recusou a idéia de que alguns argumentos não merecem consideração artística. Mantém, porém, o rigor artístico dessa escola. Igual a Baudelaire, absorve a musicalidade do Simbolismo, mas rejeita a espiritualidade e a temática abstrata deste.
Ambos buscaram novos parâmetros literários, mas não na crítica social ou na literatura de denúncia. As imagens mórbidas e caricaturais aproximam-no da arte do Expressionismo. Este, movimento artístico mais associado às artes plásticas, teve seus representantes na literatura.
Leia-se o soneto a seguir:
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme, este operário das ruínas,
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
O verme é usado enquanto símbolo desse processo de degenerescência da matéria em putrefação.
Os vermes que habitam o húmus, são um tema recorrente na poética de Augusto dos Anjos. Ele exalta, inconscientemente, seu papel na vida universal. O humo, produto da decomposição parcial dos restos vegetais, corroe também os restos animais. Talvez ele, o poeta, AA, não considerasse, afinal, que os vermes, habitantes do húmus, em razão de suas propriedades coloidais, têm grande importância na constituição dos solos, aonde é a fonte de matéria orgânica para a nutrição vegetal. O humo favorece a estrutura do solo e retém a água energicamente.
Para a poesia de AA, o verme sobrevive ao corpo humano e ao corpo dos outros animais. Dele se alimenta e há de consumi-lo todo, exceto, talvez, os cabelos. O verme enquanto metáfora e metonímia da decomposição dos valores de uma sociedade preocupada apenas em saciar-se, antropofagicamente, de si mesma. Presente em seus poemas, a crítica ao canibalismo característico do capitalismo "cromagnon" (selvagem).
No poeta transparece o enjôo, a indignação, a repugnância, o nojo, o asco da volúpia. Ele define a aproximação dos corpos para o prazer e a sensualidade da libido, como sendo a representação: "Da matilha espantada dos instintos/parodiando saraus cínicos,/bilhões de centrossomas apolínicos/na câmara promíscua do vitello."
Acerca do amor: "Sobre histórias de amor o interrogar-me/É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;/Não sou capaz de amar mulher alguma,/Nem há mulher talvez capaz de amar-me"
Concernente ao prazer: "Se algum dia o prazer vier procurar-me,/Dize a este monstro que eu fugi de casa!"
Na musicalidade de suas poesias. O gosto pela métrica e pelo soneto. A fuga dos lugares-comuns verbais de seus antecessores. As palavras raras, a linguagem denotativa que se dilui em meio à quantidade de símbolos e de aliterações, sinestesias, inusitadas harmonias sonoras. Em que se pode afastá-los, mas não de todo?: Em Cruz e Souza as mulheres são símbolos de sensualidade, ainda que descritas sob a definição de "cruéis e demoníacas serpentes"
O conteúdo emocional, assim como as reações subjetivas de suas rimas e expressões bizarras, provocam reações subjetivas que exercem veemente e flamante domínio sobre o convencionalismo e a razão.
Alfredo Bosi define AA enquanto o mais original dos poetas brasileiros, entre Cruz e Souza e os modernistas.