Poesia: imanência oral da Verdade
Há quem diga que a poesia surgiu como um complemento à música para poder cristalizar melhor as imagens ilusórias produzidas pelas melodias escutadas. Ou seja, seu valor é um pouco menor daquele que se atribui à música (clássica, etheral instrumental). A música possibilita à nossa imaginação uma liberdade maior em criar situações imaginárias que sejam relativas às sensações que a harmonia da música provoca em nós. Já a poesia – por ser de caráter menos imediato, presa na linguagem escrita ou oral que obriga o leitor a utilizar-se do processo decodificador ou mesmo da gramática aí embutida – serviria justamente para facilitar a apreensão da música. Mas precisar quem surgiu primeiro ou quem é complemento do outro não é o objetivo aqui.
Por detrás dessas duas fontes de beleza está o gênio, aquele que intui a Verdade e tenta (e não consegue plenamente) criar uma obra para demonstrar Aquela aos outros. Porém, muitas dessas criações são produzidas com fins comerciais e perdem de cara seu sentido original que é nos levar à contemplação instantânea; logo a arte verdadeira está livre de valor comercial e portanto não deveria ser tão molestada pelos pseudos artistas que se utilizam de técnicas criadas pelos mestres que estavam ligados à Imagem Transcendental para encobrir a pouca beleza que existe em sua obra.
O poeta, embora considerado por muitos estudiosos da estética ou mesmo da filosofia do belo como pertencente à uma classe mais baixa de gênio – se comparado ao compositor ou pintor, também vive imerso nas vagas da fantasia. Dentro do estado poético que manifesta quase subitamente a verdade encontramos o estado lírico.
O estado lírico é talvez o mais intuitivo e por isso o mais espontâneo da universalidade de um sentimento. Devido a tal situação, é mais comum se espelhar nas palavras ouvidas de um poema de expressão emotiva do que de caráter analítico; e como todos passam pelas mesmas dificuldades perante as vicissitudes existenciais, é comum até mesmo a uma pessoa sem aptidão genuína para a poesia, ao efetivar um estado – no imediato momento em que sente (podendo ser tristeza, desespero, júbilo) – conseguir tocar aqueles que o lê. Aí está um exemplo de que há algo comum a todos e que não se baseia apenas nas experiências pessoais de cada um, pois primeiro lemos as palavras, depois é que comparamos o que foi lido com algum momento semelhante que ocorreu conosco; por tal motivo, o gênero lírico é tão belo em sua essência, pois até hoje a Tristeza ainda é Tristeza, quem a sente sabe que sente e sabe o que sente, logo percebemos que ela é universal.
Outra característica do poeta é a origem de sua inspiração. A inspiração ou vislumbre momentâneo que o artista (músico, poeta etc.) recebe do subconsciente não se manifesta de imediato, pois requer um trabalho para que se torne uma obra realmente boa, já que essa é resultado do artista que soube modelar e lapidar as imagens e sons de tal inspiração. Então o bom artista seria de fato aquele que sabe selecionar e agrupar as idéias. Para o poeta a tarefa é mais complicada, pois seu instrumento é a linguagem e essa é passível de interpretações diversas, embora essas não tirem a intenção original mantida na poesia. Mas está claro que mesmo os versos reunindo diversos elementos de uma vez como por exemplo:
“Tem muitas claves a terra. Lá onde a melodia se ausenta, fica a desconhecida península. A beleza é fruto da Natureza.”* são capazes de sintetizar em conceitos a manifestação de um Essência, embora necessite de um grau maior de intuição. Entretanto o ritmo, a rima e a métrica podem favorecer uma apreensão célere do que está além das palavras. O poeta é movido não pelo caráter racional – isso só ocorre após ele ter sido entorpecido pelo raio celeste da inspiração. Ao retornar à imediatez da realidade de seu ego, tenta expor o que sentiu naquele estado de torpor, porém nem sempre consegue traduzir com total clareza, mas assim mesmo o que criou foi ocasionado por um estado superior ao simples exercício da razão ou jogo lingüístico.
A dúvida está na questão: quem é de fato o poeta? Existem inúmeras respostas possíveis, mas como o relativismo aqui não possui vigor, então afirmo que o poeta é aquele que – embora nem sempre esteja – está em contato coma realidade sidérea imanente e que desconhece essa circunstância, achando que os seus delírios são motivados por sua leitura vasta ou por achar-se perdido nos recônditos abismos do conjunto de si (inconsciência, self).
Se o poeta fosse alguém que apenas sabe trabalhar as palavras e criar versos extraordinários devido ao abrangente vocabulário que possui, logo essa obra ficaria a cargo do tempo e do espaço, ou seja, só valeria em determinada época e seria útil na sua cidade ou país. Mas não, o poeta consegue intuir uma verdade universal que vale para todos os lugares e todos os períodos. Eis alguns nomes que vejo necessidade em citar: Goethe, Schiller, Blake, Rimbaud, Shakespeare, Byron, Augusto dos Anjos; percebe-se que faltam vários, porém a intenção é demonstrar que cada um deles são eternos, suas palavras irão se perpetuar, pois refletem a realidade de toda a humanidade.
A poesia é palavra e palavra é sempre algo oral, falado. Então todo poema primeiramente deve ser lido em voz alta, sem qualquer interrupção lógica, para poder alcançar seu objetivo que é a ruptura com o ego determinado pela sociedade, assim atingindo o estado sensitivo. Então é o som o responsável por toda a beleza dos versos; não devemos perder essa característica, pois vimos que embora a música instrumental nos transporta imediatamente ao ser ouvida para outra esfera de sensibilidade, o mesmo pode acontecer coma leitura dum belo e bom poema.
Se a Natureza afeta o indivíduo com imagens, como esse é capaz de transformá-las em sons e qual das duas é a mais genuína manifestação do Universal? Bem, os sons são imagens convertidas em palavras e essas, após terem sido incessantemente associadas às imagens, praticamente se tornam imagens. Por exemplo: quando falo a palavra “aranha” logo a representação imagética da mesma está intrinsecamente ligada ao som ou à palavra no mesmo momento que a pronuncio. E assim ocorre com a poesia, nós já temos um vasto repertório de sons e imagens e fica fácil lembrar dum objeto ou emotividade simplesmente recorrendo à sua denominação correspondente.
O signo se torna significado e significante ao mesmo tempo. Mas toda linguagem é fruto das regras semânticas e sintáticas do mundo e por isso – mesmo com imagens eidéticas produzidas pelos versos – não fora dado crédito suficiente para a poesia como sendo uma fonte primeira na apreensão do Uno, atribuindo à música essa manifestação a priori da Essência de tudo.
Concluo que a poesia sim, é capaz de trazer uma verdade obscura aos olhos filosóficos, mas uma verdade dotada de beleza ímpar que não necessita de nenhuma análise científica. Concluo também que existem poetas que, mesmo capazes de vislumbrar a Beleza, deturpam bastante o encanto contido nesse vislumbre ao criarem poesias com exageros lingüísticos, dificultando toda a capacidade imediata de entorpecimento que a poesia direta, recheada de imagens incompreensíveis nos causa.
* versos de Emily Dickson