METÁFORAS, MEDALHÕES MACHADIANOS
A vaidade é uma insígnia abstrata, de que se reveste o nosso consciente de forma emblemática. Cada um de nós é, ou vive, conforme o seu medalhão. É o que pude observar estudando as metáforas nos textos de Machado de Assis. Para isso não obedeci à norma que exige o destaque das citações mais longas. Preferi incorporá-las ao texto, já que deste elas passam a fazer parte nas relações pelas quais me propus no caminho de leitura.
O “medalhão(1) é uma metáfora-programa, concretizada no comportamento da maioria dos personagens machadianos que alcançam prestígio social, levantando-se “acima da obscuridade comum e firmando-se como ornamento indispensável” da sociedade. No alferes Jacobina, que o narrador “astuto e cáustico” recorda no conto “O Espelho” (2) para provar a teoria das duas almas – uma interior e outra exterior -, “o alferes eliminou o homem”. “Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza e passou a ser cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado”.
O Palha de Quincas Borba(3), fundamentando o seu prestígio no sucesso social de Sofia, personagem que irradia profusamente signos mundanos – “gostava da mulher, como sabemos, a ponto singular de publicá-la...”
Carlos Maria(4) era um “medalhão”, cortejado como a primeira figura dos salões, “frio e superior”, comprazendo-se na “contemplação subjetiva”, “com os seus grandes olhos de espectro”, “natureza de pelintra, de cínico, de fútil, vadio, egoísta e anfatuado”, que convidou Sofia “à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão”.
Sofia (5) era um “medalhão” que brilhava e encantava e no entanto mantinha as aparências que convinham ao “regimem do aprumo e do compasso” (6): “Para as despesas da vaidade bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos; podemos compará-los à lanterna” de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para os hóspedes. A lanterna fazia parar toda a gente, tal era a lindeza da cor, e a originalidade dos emblemas; parava, olhava e andava. Para que escancarar as janelas? Escancarou-as, finalmente; mas a porta, se assim podemos chamar o coração, essa estava trancada e retrancada.”(7)
Foi de “medalhão” o comportamento de Sofia ante a Desgraça de Rubião: “A compaixão de Sofia – explicado o mal do Rubião pelo amor que ele tinha - era um sentimento médio, não simpatia pura nem egoísmo ferrenho, mas participando de ambos”. “Nas horas em que Rubião estava lúcido, escutava-o e falava-lhe com interesse – até porque a doença , dando-lhe audácia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normais. Não sorria como o Palha, quando o Rubião subia ao trono ou comandava um exército. Crendo-se autora do mal, perdoava-lhe; a ideia de ter sido amada até a loucura sagrava-lhe o homem”.
Brás Cubas(8) sonhou ser “medalhão” quando ideou inventar “um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”. Já do outro lado da vida, quando defunto-autor, confessa; “o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressos os jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas de remédio, estas três palavras”: “Emplasto Brás cubas”. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam este defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; do outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor de glória”.
A ideia de “medalhão”, que traz, como as medalhas, duas faces. Na relação intertextual, as duas metáforas (a da “medalha” e a do “medalhão”) se supermetaforizam, não deixando o narrador de acentuar a organização lógica da imagem, pela analogia com um referente exterior ao texto.
Quincas Borba, personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, retorna no romance Quincas Borba, para transmitir a sua doutrina de humanitismo ao herdeiro discípulo Rubião. Mas este só se realiza como metáfora desta doutrina no “não senso” da loucura. A realização objetiva do humanitismo está nos personagens que não enlouquecem e se realizam socialmente, através do “bom-senso” de uma sociedade de vaidosos, ambiciosos, sonegadores, parasitas, ignorantes, mas bem falantes... O discurso do não-senso” do filósofo louco( Quincas Borba) é que nos permite aceitar o comportamento social do senso- comum que vive nas não dizem na linguagem o sentido de “ Ao vencedor, as batata”.
Rubião não realizava completamente os postulados do Humanitismo: era altruísta, caridoso, humilde... Só quando tresvariava é que punha em prática certos preceitos da pregação do amigo, passando a ambicioso e megalomaníaco. Justamente quando, de certa forma, se aproximou do comportamento dos “normais”, é que o bom-senso destes últimos o rotulou de “louco”. Foi então que ele praticou, em alto grau, a adoração de si próprio, uma das necessidades impostas pelo humanitismo, já que o homem não é simples veículo de Humanitas, mas é, ao mesmo tempo, “veículo, cocheiro e passageiro” - “ o próprio Humanitas reduzido”. Alternando a antinomia timidez/audácia, conforme transpunha ou não o limite razão/sandice, Rubião só se realizou completamente na comunidade quando louco.
A antinomia habilidade/modesta - que se firma como tal nas relações peculiares ao sistema do texto – separa aqueles que reconhecem talento na vaidade mórbida de Brás Cubas, no seu amor de arruído, daqueles que devem arguí-lo de defeito.
O significante “morbidez” perde o significado dicionarizado, para semantizar-se inovadoramente no sistema, segundo o do texto literário. As interpretações antitéticas do “amor da glória temporal” passam a constituir-se em metáforas de duas carreiras – a eclesiástica e a das armas: amor da glória = “perdição dos homens” x amor da glória = a coisa mais verdadeiramente humana que há nos homens, a sua mais genuína feição –“ (9)
O conto “O Espelho”(10) entendido como uma grande metáfora-síntese, desdobra-se em duas metáforas antitéticas – a do discurso da arte x a do discurso filosófico. Este discurso da filosofia, é representado pelo debate de “questões de alta transcendência”, na narrativa do autor implícito, que introduz o conto interno – o conto propriamente dito, encaixado no conto externo.
O “espelho” , como metáfora que, na sua polivalência, reflete tanto a indefinição da alma interior quanto a nitidez da alma exterior do personagem, é o mediador através do qual o alferes se olha e é olhado, contempla e é contemplado. Quando o espelho está devassando o personagem no seu eu profundo, revela-lhe o que ele deixa de ver – a sua alma interior, fragmentada e evanescente, latente no conteúdo no conteúdo manifesto das “feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes...” na desintegração da sua exterioridade. Ao revés, quando o espelho reflete a alma exterior, do personagem, mostra-o na sua integridade interior.
E porque é muito mais potente a sua alma exterior,a solução do clímax da estória é constituída, no discurso do jacobina narrador, como emersão da memória involuntária, que faz o sujeito passar a objeto passivo, através da regência do verbo lembrar: “ - Lembrou-se vestir a farda de alferes”. E já agora, refazendo-se, o alferes passa a agente: “Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos e... não lhes digo nada; o vidro, reproduziu então a figura integral.... era eu mesmo, alferes, que achava, enfim, a alma exterior”. O espelho realiza a metáfora-programa do “medalhão”.
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1 MACHADO DE ASSIS, "Teoria do medalhão" - Papeis Avulsos.
2 MACHADO DE ASSIS, "O Espelho" -Papeis Avulsos.
3 MACHADO DE ASSIS, Quincas Borba.
4 id., ibid.
5 id., ibid.
6 MACHADO DE ASSIS, "Teoria do Medalhão.
7 MACHADO DE ASSIS, Quincas Borba.
8 MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
9 Ver memórias Póstumas de Brás Cubas.
10 MACHADO DE ASSIS, " O Espelho".
A vaidade é uma insígnia abstrata, de que se reveste o nosso consciente de forma emblemática. Cada um de nós é, ou vive, conforme o seu medalhão. É o que pude observar estudando as metáforas nos textos de Machado de Assis. Para isso não obedeci à norma que exige o destaque das citações mais longas. Preferi incorporá-las ao texto, já que deste elas passam a fazer parte nas relações pelas quais me propus no caminho de leitura.
O “medalhão(1) é uma metáfora-programa, concretizada no comportamento da maioria dos personagens machadianos que alcançam prestígio social, levantando-se “acima da obscuridade comum e firmando-se como ornamento indispensável” da sociedade. No alferes Jacobina, que o narrador “astuto e cáustico” recorda no conto “O Espelho” (2) para provar a teoria das duas almas – uma interior e outra exterior -, “o alferes eliminou o homem”. “Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza e passou a ser cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado”.
O Palha de Quincas Borba(3), fundamentando o seu prestígio no sucesso social de Sofia, personagem que irradia profusamente signos mundanos – “gostava da mulher, como sabemos, a ponto singular de publicá-la...”
Carlos Maria(4) era um “medalhão”, cortejado como a primeira figura dos salões, “frio e superior”, comprazendo-se na “contemplação subjetiva”, “com os seus grandes olhos de espectro”, “natureza de pelintra, de cínico, de fútil, vadio, egoísta e anfatuado”, que convidou Sofia “à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão”.
Sofia (5) era um “medalhão” que brilhava e encantava e no entanto mantinha as aparências que convinham ao “regimem do aprumo e do compasso” (6): “Para as despesas da vaidade bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos; podemos compará-los à lanterna” de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para os hóspedes. A lanterna fazia parar toda a gente, tal era a lindeza da cor, e a originalidade dos emblemas; parava, olhava e andava. Para que escancarar as janelas? Escancarou-as, finalmente; mas a porta, se assim podemos chamar o coração, essa estava trancada e retrancada.”(7)
Foi de “medalhão” o comportamento de Sofia ante a Desgraça de Rubião: “A compaixão de Sofia – explicado o mal do Rubião pelo amor que ele tinha - era um sentimento médio, não simpatia pura nem egoísmo ferrenho, mas participando de ambos”. “Nas horas em que Rubião estava lúcido, escutava-o e falava-lhe com interesse – até porque a doença , dando-lhe audácia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normais. Não sorria como o Palha, quando o Rubião subia ao trono ou comandava um exército. Crendo-se autora do mal, perdoava-lhe; a ideia de ter sido amada até a loucura sagrava-lhe o homem”.
Brás Cubas(8) sonhou ser “medalhão” quando ideou inventar “um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”. Já do outro lado da vida, quando defunto-autor, confessa; “o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressos os jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas de remédio, estas três palavras”: “Emplasto Brás cubas”. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam este defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; do outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor de glória”.
A ideia de “medalhão”, que traz, como as medalhas, duas faces. Na relação intertextual, as duas metáforas (a da “medalha” e a do “medalhão”) se supermetaforizam, não deixando o narrador de acentuar a organização lógica da imagem, pela analogia com um referente exterior ao texto.
Quincas Borba, personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, retorna no romance Quincas Borba, para transmitir a sua doutrina de humanitismo ao herdeiro discípulo Rubião. Mas este só se realiza como metáfora desta doutrina no “não senso” da loucura. A realização objetiva do humanitismo está nos personagens que não enlouquecem e se realizam socialmente, através do “bom-senso” de uma sociedade de vaidosos, ambiciosos, sonegadores, parasitas, ignorantes, mas bem falantes... O discurso do não-senso” do filósofo louco( Quincas Borba) é que nos permite aceitar o comportamento social do senso- comum que vive nas não dizem na linguagem o sentido de “ Ao vencedor, as batata”.
Rubião não realizava completamente os postulados do Humanitismo: era altruísta, caridoso, humilde... Só quando tresvariava é que punha em prática certos preceitos da pregação do amigo, passando a ambicioso e megalomaníaco. Justamente quando, de certa forma, se aproximou do comportamento dos “normais”, é que o bom-senso destes últimos o rotulou de “louco”. Foi então que ele praticou, em alto grau, a adoração de si próprio, uma das necessidades impostas pelo humanitismo, já que o homem não é simples veículo de Humanitas, mas é, ao mesmo tempo, “veículo, cocheiro e passageiro” - “ o próprio Humanitas reduzido”. Alternando a antinomia timidez/audácia, conforme transpunha ou não o limite razão/sandice, Rubião só se realizou completamente na comunidade quando louco.
A antinomia habilidade/modesta - que se firma como tal nas relações peculiares ao sistema do texto – separa aqueles que reconhecem talento na vaidade mórbida de Brás Cubas, no seu amor de arruído, daqueles que devem arguí-lo de defeito.
O significante “morbidez” perde o significado dicionarizado, para semantizar-se inovadoramente no sistema, segundo o do texto literário. As interpretações antitéticas do “amor da glória temporal” passam a constituir-se em metáforas de duas carreiras – a eclesiástica e a das armas: amor da glória = “perdição dos homens” x amor da glória = a coisa mais verdadeiramente humana que há nos homens, a sua mais genuína feição –“ (9)
O conto “O Espelho”(10) entendido como uma grande metáfora-síntese, desdobra-se em duas metáforas antitéticas – a do discurso da arte x a do discurso filosófico. Este discurso da filosofia, é representado pelo debate de “questões de alta transcendência”, na narrativa do autor implícito, que introduz o conto interno – o conto propriamente dito, encaixado no conto externo.
O “espelho” , como metáfora que, na sua polivalência, reflete tanto a indefinição da alma interior quanto a nitidez da alma exterior do personagem, é o mediador através do qual o alferes se olha e é olhado, contempla e é contemplado. Quando o espelho está devassando o personagem no seu eu profundo, revela-lhe o que ele deixa de ver – a sua alma interior, fragmentada e evanescente, latente no conteúdo no conteúdo manifesto das “feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes...” na desintegração da sua exterioridade. Ao revés, quando o espelho reflete a alma exterior, do personagem, mostra-o na sua integridade interior.
E porque é muito mais potente a sua alma exterior,a solução do clímax da estória é constituída, no discurso do jacobina narrador, como emersão da memória involuntária, que faz o sujeito passar a objeto passivo, através da regência do verbo lembrar: “ - Lembrou-se vestir a farda de alferes”. E já agora, refazendo-se, o alferes passa a agente: “Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos e... não lhes digo nada; o vidro, reproduziu então a figura integral.... era eu mesmo, alferes, que achava, enfim, a alma exterior”. O espelho realiza a metáfora-programa do “medalhão”.
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1 MACHADO DE ASSIS, "Teoria do medalhão" - Papeis Avulsos.
2 MACHADO DE ASSIS, "O Espelho" -Papeis Avulsos.
3 MACHADO DE ASSIS, Quincas Borba.
4 id., ibid.
5 id., ibid.
6 MACHADO DE ASSIS, "Teoria do Medalhão.
7 MACHADO DE ASSIS, Quincas Borba.
8 MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
9 Ver memórias Póstumas de Brás Cubas.
10 MACHADO DE ASSIS, " O Espelho".